BQVNC | Camila Garófalo e o conforto dentro do próprio caos

24/10/2016

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Nicolas Henriques

Por: Nicolas Henriques

Fotos: Divulgação

24/10/2016

Quando assisti pela primeira vez o clipe da música “Camarim“, de Camila Garófalo, fiquei maravilhosamente intrigado. Não apenas pela excelente canção ou apelo estético do clipe, um preto-e-branco expressionista, carregado, dramático, obra filmada inteiramente no celular pelos irmãos Guerra (Helena e Caio), mas meu arrebatamento se deu principalmente pela mensagem ali abordada.

O clipe conta com um objetivo que vai bem além da mera transmissão da música em outras mídias; um objetivo que é, hoje, político, de questões e lutas diárias de milhões de mulheres no mundo inteiro. É um clipe feminista, fluído, contemporâneo. Era, para a própria artista, acima de tudo, uma chance de se libertar e avançar em novos campos e discussões.

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“Eu sou mulher, eu gosto de mulher, eu acredito em mulher. É sobre tudo isso que se trata ´Camarim´. Não é apenas um romance entre duas cantoras, é uma história de amor entre todas elas.”

Diante desse grito que se faz cada dia mais necessário e com maior envolvimento de todas, resolvi conversar com a cantora visceral nos palcos, dona de um timbre grave que lembra prenúncio de tempestade, onde não há calmaria, mas há alento e conforto dentro do próprio caos. Na entrevista falamos sobre o clipe, a repercussão que ele está tendo e o cenário machista de nossa sociedade e do meio musical. Confira a entrevista após assistir “Camarim”:

Como surgiu a ideia do clipe e da junção de todas essas cantoras da nova safra da música alternativa do país?
Tudo foi espontaneamente calculado (risos). Acontece que conforme o conceito de Sororidade vai ganhando força, as mulheres automaticamente se unem para fazer coisas juntas. A velha e ultrapassada ideia de rivalidade entre nós, construída pela sociedade patriarcal, agora tem prazo de validade. Eu queria que esse conceito se refletisse na minha música, afinal escrevi “Camarim” pensando em outra mulher, em outra cantora. Naquele momento eu entendi que além de ter amor eu também tinha respeito por ela. Mais que isso, eu estava me colocando no lugar dela já que, além do gênero, eu também compartilho a profissão e os mesmos desafios de estar inserida no universo machista da música. Por isso, escolhi fazer um clipe com cenas entre as mulheres de paixão e amizade, tesão e cumplicidade, admiração e parceria.

Você esperava essa repercussão do clipe “Camarim” que, em menos de três semanas, já chega a mais de 70 mil visualizações?
Eu, sinceramente, desejei que o clipe fosse bem recebido, mas já tinha em mente que o assunto era delicado porque unia conceitos feministas com reivindicações do movimento LGBT. Tive sim meus receios em relação à minha família e à toda uma sociedade que poderia me julgar. Respirei fundo e me concentrei apenas em passar minha mensagem, afinal, é o mínimo que posso fazer pelas causas que acredito. Por um momento pensei que a ideia pudesse estar muito segmentada, mas, com poucos minutos na rede, já percebi que o clipe tinha agradado muita gente.

Por que você acha que veio essa repercussão?
Porque trabalhamos bem e porque nossa causa é verdadeira. Fiz essa música de peito aberto, com os convidados que sonhei (Luiza Lian, Nina Oliveira, Mônica Agena, Tika, Laya Layá, Lara Aufranc, Eduardo Santana e Rafael Castro) e com a equipe de filmagem que eu mais confiava. Escolhi os Irmãos Guerra para dirigir porque já conhecia o trabalho deles através de clipes de outras bandas, como o do Charlie e Os Marretas, Mel Azul e Tonico Reis. Eles sugeriram que gravássemos tudo pelo celular e essa ideia também me encantou. Meu orçamento era baixo e eu não recebi nenhum patrocínio, paguei tudo com o cachê que guardei fazendo shows em dois anos de estrada. Então eu diria que, além de todo o esforço e trabalho bem feito, essa repercussão também veio por conta do investimento. Hoje, todo artista independente precisa estar ciente dessa condição: se não existe um empresário por trás dele, deve-se fazer seu próprio pé de meia. Eu sei que os recursos são escassos e que a Música, assim como a Cultura no geral, passa por uma enorme carência de investimento. Eu sei que são poucos os editais e os programas de leis de incentivo, mas é preciso aprender a trabalhar com aquilo que se tem. Se o que temos é um celular então vamos filmar com um celular, porque o que vale é uma boa ideia bem executada e, claro, muitos amigos ajudando acontecer.

As pessoas que chegam até você para falar do clipe vem falando de maneira mais positiva ou negativa?
Recebi muitas mensagens positivas de diferentes estados do país, de homem, mulher, gay, lésbica e também heterossexuais. Pessoas de diferentes gostos musicais e isso me motiva muito: agradar a maioria. Não porque quero me encaixar num modelo, mas porque como artista, acho essencial ser compreendida, absorvida. Por outro lado senti uma pressão negativa absurda de boa parte da mídia. Alguns jornalistas desmereceram o meu trabalho e eu jamais vou saber se foi pelo conteúdo do clipe ou se foi simplesmente porque não gostaram. Tenho a impressão de que quando um homem se depara com uma situação na qual ele não tem papel nenhum, isso o incomoda, o repele e, muitas vezes, o enfurece. Estamos falando de um clipe com elenco formado apenas por mulheres, todas autossuficientes para fazer qualquer coisa, sem depender de ninguém, inclusive, de homem nenhum. Estamos falando de um mercado musical dominado por homens produtores que estão o tempo todo cometendo abuso de poder. Afinal em quantos nomes de mulheres produtoras você consegue pensar agora nesse momento? Cite três baixistas em dez segundos, por exemplo. Ou ainda tente lembrar o nome de uma mina que trabalha como técnica de som. Difícil, né? E não é que não existe. O mundo está cheio de instrumentistas, produtoras e mulheres extraordinárias capazes de carregar nas costas muito marmanjo por aí. Mas elas não aparecem, ou então estão correndo atrás do tempo perdido por terem sido subestimadas e apenas valorizadas quando são boas mães e ótimas esposas. ­É foda. Mas a gente não vai desistir e, apesar de me entristecer pela opinião negativa de algumas pessoas, eu não vou parar de fazer música de protesto.

Posso estar enganado, mas me parece que uma cena de beijo entre duas mulheres é “aceita” numa sociedade machista como a nossa. Sexualizada ao extremo. Você quebrou isso no clipe, mas as pessoas entenderam essa quebra ou você chegou a receber cantadas e assédio?
Não é que a sociedade aceita melhor duas mulheres juntas do que dois homens. Também, nesse caso, o machismo é tão gritante quanto, mas se manifesta de maneira diferente. Ao passo que a união entre dois homens representa, para essa sociedade, uma ameaça para a masculinidade de ambos, a união entre duas mulheres representa, na cabeça de um homem hétero produto dessa sociedade, a (falsa) possibilidade de fazer parte daquilo, como se fosse claramente um convite, para ele, o fato das duas estarem se pegando. Estamos falando de Fetichização, como se duas mulheres juntas não se completassem até o momento em que o macho alfa aparece para “satisfazê-las”. Percebe que o preconceito também surge a partir dessa mesma obsessão heteronormativa, que coloca a mulher como objeto do desejo do homem? Eu já sabia que seria assediada exatamente por causa desse fenômeno. Esse assédio está longe de ser uma cantada, mas é incrível como muitos deles encaram como se fosse. Esse efeito que o clipe causa também é proposital. Eu queria que esses homens nos desejassem e, automaticamente, se sentissem impotentes e impossibilitados de entrar em cena. E não, não é porque quero dar algum tipo de lição nos homens, é apenas para que eles reflitam que temos desejos independente da sua existência.

Atualmente temos visto muito clipes e cantoras abordando exatamente a sexualidade e a fluidez de gênero como um statement político e comportamental. Como o Silva com a música “Feliz e Ponto”, por exemplo. O que você acha desse movimento? Podemos esperar mais transgressão sua daqui pra frente?
Eu acho maravilhoso esse movimento de desmascarar a hipocrisia. Nesse clipe do Silva, ele quebra mais de um tabu: sugere a legalização da maconha, desconstrói a ideia de relacionamento monogâmico e lida com temas ainda mais mistificados como a bissexualidade. Assim como ele, Liniker, Lineker, As Bahias e a Cozinha Mineira, Jaloo, Johnny Hooker e outros artistas empoderados também dão força à outra causa importante, a de quebrar as regras do gênero, por exemplo. E portanto, sim. Podem esperar, sim, maiores transgressões da minha parte porque eu quero ser como eles: resistir para transformar.

E os próximos shows, quando teremos?
Vale dizer que a banda está com nova formação. Em novembro, 10/11, lançaremos o clipe “Camarim” no Sesc Campinas e teremos duas novas integrantes: Nath Calan na bateria e Keila Boaventura no teclado. O mesmo show acontece em São Paulo dia 18/11 na Associação Cultural Cecília. Trata-se de um sonho antigo que venho cultivando e tenho certeza que dividir o palco com essas instrumentistas maravilhosas vai, certamente, me influenciar muito na produção e concepção do próximo disco. Eu sempre convivi com mulheres e talvez tenha demorado pra entender que adoro estar rodeada por elas. Ainda há tempo. Juntas, com certeza, venceremos.

Ouça o primeiro álbum de Camila Garófalo, Sombras e Sobras:

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24/10/2016

Sou pesquisador e escrevo resenhas de shows pagando de crítico musical porque gosto muito de música e minha verdadeira intenção era ser multi-instrumentista ou vocalista de alguma banda. O problema é que falta habilidade para tocar até campainhas mais complexas e meu alcance vocálico lembra uma taquara rachada.
Nicolas Henriques

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