Entrevista | Seja abduzido para o mundo de Mãeana

11/01/2017

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Barbara Almeida/Divulgação

11/01/2017

Colocando-se como uma antena que recebe as ondas siderais ao mesmo tempo em que se nutre da força telúrica da Natureza, Mãeana aterrizou na cena musical provocando o mesmo encantamento estranho que você sentiria se visse um disco voador na sua frente.

O projeto capiteneado por Ana Cláudia Lomelino reúne um turbilhão de elementos estéticos que oscilam entre o futurismo extraterrestre e a visão ancestral de um mundo conectado ao poder dos símbolos, especialmente à potência criadora da força feminina. Após cerca de sete anos tocando com o Tono ao lado de seu marido Bem Gil, Ana sentiu necessidade de mergulhar no seu universo particular e dar vazão a essa vivência, como ela conta na entrevista exclusiva que você lê abaixo.

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Em 2015, saiu o seu disco homônimo de estreia e, no fim do ano passado, o trabalho foi coroado com o lançamento do DVD Mãeana no MAM. “Tínhamos a sensação de que precisávamos registrar esse show porque é um trabalho que não é só musical, é muito visual também, e é um processo visual muito mutante, que está sempre em transformação”, explica a artista.

De fato, a apresentação dela não se restringe à execução ao vivo de algumas músicas. Nela, o palco se transforma em um portal que liga o público a uma dimensão paralela repleta de glitter e raios laser, como se fosse um útero hi-tec de onde nasce a Mãeana. Basta ver os vídeos abaixo e ler as palavras de Ana Cláudia Lomelino para se abduzido por ela.

Você ficou cerca de sete anos com o Tono e foram três discos lançados. Nesse contexto, como e quando nasceu o projeto Mãeana?
Então, é um processo bem misturado, a Mãeana começou a vir de dentro do Tono. Na verdade, é uma coisa muito antiga, Mãeana foi um nome que surgiu há pouco, mas eu sempre tive essa compulsão pelas questões visuais, sempre manipulei materiais. Desde a infância, meu quarto é um ateliê onde sempre pintei as paredes e sempre tive meus figurinos. Na vida adulta, já havia essas estéticas e temáticas, tudo muito com essa cara da Mãeana, dentro desse universo. Quem me conhece há um tempo e vê um show da Mãeana fala: “Que bom poder ver aquilo que você sempre fez no palco, transformado em arte”. Então foi um processo muito natural, desde possibilidades que foram se abrindo através do Tono, a princípio, até uma necessidade de ter o meu projeto. O trabalho do Tono era todo autoral e eu tinha essa vontade de receber músicas de compositores diferentes. Pra isso, tinha que ter a Mãeana. Tinha muitas músicas que eu queria cantar que acabavam ficando de fora no Tono. E também esse lance estético, que é uma coisa muito minha, muito pessoal, que não dá pra impor no coletivo. Cada um é do seu jeito, e eu fui tendo essa necessidade de ter o meu lance, com a minha cara, e com os meus amigos, que nem sempre são da música, mas que fazem parte. Foi assim.

É impressão minha ou o Tono acompanhou esse seu processo? Porque os músicos da banda estão tocando contigo agora na Mãeana.
Pois é! Justamente, é um negócio muito família. O único do Tono que não está na Mãeana é o Rafael Rocha, que é um cara que também tem uma identidade artística mais de carreira solo. O Tono, na verdade, era pra ser a carreira solo dele, só que ele tinha o desejo de ter toda uma big band com vocalistas e instrumentistas, e aí o Tono foi virando um coletivo, meio contra a vontade dele. Mas naturalmente. Todo mundo começou a compor, a criar, mas tinha essa coisa. Às vezes, eu queria fazer um cenário, alguma coisa assim, e ele falava: “Não, isso tá muito Xuxa. Não combina, não é isso”. E eu gosto. Ao mesmo tempo, quem me colocou no Tono foi o Bruno Di Lullo, que é um cara com quem eu posso fazer o que eu quiser e vai dar certo. Vai ser sempre meu baixista, é um irmão, não tenho como fazer com outra pessoa. E o Bem [Gil], então, nem se fala. Foi um cara que eu conheci através do Tono, trabalhando juntos, e hoje somos casados, família total. Temos um filho [Dom, de 2 anos], estamos esperando outro. E esse trabalho de Mãeana é tão dele quanto meu. Se não fosse ele, nada disso seria assim.

Gilberto Gil feliz da vida com o neto que virá (Foto: Christian Calazans)

Gilberto Gil feliz da vida com o neto que virá (Foto: Christian Calazans)

Você já disse em outra entrevista que não se sente uma boa compositora de canções. Como você sente que o intérprete de uma obra se torna seu coautor? Até que ponto a interpretação também é uma criação, mais do que mera reprodução?
Isso aí é uma questão bem legal. Eu não tenho resposta pronta pra isso, mas não só a intérprete como os músicos, pelo arranjo que se dá à coisa e o caminho que a composição leva, também têm uma autoria. Eu me sinto criando. Acho que o artista cria, a minha criatividade também faz essa interpretação. Quando penso nesses assuntos, tendo a desapegar dessa coisa da autoria. Enfim, são vários caminhos. A gente vive um momento muito ligado à defesa da propriedade intelectual, dos direitos autorais, que é legal, é bem bacana, mas eu acho que, na verdade, diante da arte contemporânea mesmo, falando da arte como um todo, esse negócio de autoria já morreu, sabe? O ideal seria que existisse um sistema onde todo mundo ganhasse e que todo mundo assinasse junto. Ou então não se assina, só se cria e se transforma e a coisa vai ganhando caminhos diferentes. Mas infelizmente a gente ainda precisa dos direitos autorais pra viver. Acho que rola uma assinatura da criação quando ela está sendo executada. É uma mistura.

E sobre o repertório escolhido para o seu disco de estreia e o seu DVD, como é a sua relação com essas músicas?
Tenho uma relação bem profunda. A maioria das composições não é minha, mas foi feita pro projeto com carinho, sabe? São presentes que eu recebi e que, juntos, formam o universo mágico da Mãeana. E eu já tô super integrada com elas.

Como você disse, a Mãeana não é apenas um projeto musical, pois lida com todo um aparato audiovisual de maquiagem, roupas, jogos de luz… De onde que você busca essas referências que surgem ali?
Ah, é um negócio que vem lá da infância. Eu costuma citar a Xuxa, esse lance dos anos 80, mas que acho que principalmente é um negócio bem lúdico. Gosto muito do Saara, que é um mercado popular [no Rio de Janeiro] onde se encontra muito material pra artes e pra mim é o paraíso, realmente é o meu lugar. Tem muito material de carnaval, também gosto muito da estética de festa infantil, essa coisa meio folclórica. Acho que tem também um viés UFO, de uma coisa futurista. Um futurismo que já é até antigo, tipo o raio laser, mas que ainda é futurista, ainda remete a uma estética que está querendo falar de um outro momento. Um momento que não é tão comum hoje em dia, quer dizer, que aparece justamente no carnaval, em festas, mas a minha ideia seria trazer isso pro sempre. Como se pudesse se construir uma fábula, fazendo da realidade uma realidade mais fabulosa, mais criativa. Sou muito inspirada pela estética das coisas, isso alimenta muito os olhos e sentimentos. Eu acredito mesmo nas coisas, nos objetos, nas cores e nos detalhes, nos brilhos, nas coisas que refletem luz. Eu acredito que tudo tenha um poder, tenha um porquê, e faz daquilo uma experiência mais legal.

Sinto que a Mãeana tenta fazer sintetizar um mundo mais ancestral com um certo futurismo, talvez remetendo a uma noção tecno-xamanista. É de fato um objetivo seu conciliar esse mundo ancestral, preocupado com a espiritualidade e o simbolismo de tudo, com a estética do plástico, do papel celofane, do glitter?
É, total, você entendeu tudo. É bem isso. Porque… A maternidade é uma experiência muito primitiva e essa questão do sagrado feminino e da deusa, é muito primitiva mesmo, é uma coisa que está na terra, na água, é uma força que está no corpo da mulher. Ao mesmo tempo, tenho essa esperança no mundo das coisas, sabe? É contraditório, eu vejo isso pela quantidade de lixo no Saara… Enfim, eu tento reciclar tudo, meus cenários são sempre com os mesmos materiais, tô adquirindo cada vez menos coisas, mas é contraditório. Mesmo assim, tenho essa crença, essa esperança no mundo das coisas, de que a gente ainda vai conseguir conviver com as coisas tanto quanto a gente convive hoje quanto de uma forma muito mais consciente e mágica. Tentando trazer justamente a consciência pras coisas.

Também chama atenção a menção à ufologia, que volta e meia surge no seu discurso. Por mais que o Caetano Veloso esteja cantando sobre um “objeto não identificado” desde 1969, ainda é um desafio falar sobre esse assunto atualmente. O que motiva você a cantar que acredita em disco voador [na letra de “Mãe Ana”] e falar em “Ufolclore”?
Pois bem, eu tenho uma relação de vida com isso. Eu vejo coisas. Quando fui estudar ufologia, percebi que isso já fazia parte da minha vida, sabe? Coisas que lembro de ter visto quando era criança, numa aula de ufologia fui entender que tem um nome, que tem um monte de gente que vê, tem histórias, sabe? Comecei a ler sobre isso e, enfim, tem essa coisa do acaso, a gente vai perguntando pro universo e o universo vai nos dando as respostas. A maioria das respostas que eu tenho vem do universo da ufologia. Eu consigo ficar em paz com o mundo porque graças a Deus tem uma galera que canaliza os seres de Plêiades e escreve livros. Tem toda uma teoria, dá pra explicar o que é o planeta Terra, por que estamos vivendo isso, o que estamos fazendo aqui… Que são angústias que tenho muito desde pequena. Por que eu sou eu? O que eu tô fazendo aqui? Lembro de quebrar a cabeça quando era criança pensando nisso. Meu pai não sabia o que me dizer, e foi na ufologia que fui encontrar respostas que se encaixam, que não são de uma história que eu tô acreditando, não, parece que eu tô lembrando. Quando tô lendo essas coisas, fico: “ah, é isso mesmo”, é uma sensação de estar lembrando do que eu tô fazendo aqui, como se eu já soubesse. Tem uma questão muito legal que eles falam que é a missão de ser um demolidor do Sistema, sabe? Eu me vejo um pouco nesse lugar. E vejo isso como o lugar da arte. A arte ocupa esse lugar de desconstruir essa lógica clássica que se aprende na escola e demolir com isso, como se tivesse essa missão mesmo. Então, me ajuda pra caramba. Aí, claro que eu eu falo, na música, de um jeito mais tangencial, sabe? Quando tô cantando “eu acredito em disco voador só porque não quero viver sem teu amor”, eu penso, cara, isso é tão óbvio… É óbvio que eu acredito em disco voador. Mas por outro lado também é tão importante falar isso. Às vezes eu penso que é óbvio e às vezes eu fico emocionada, é uma mistura. Porque é óbvio, mas é isso aí mesmo, acredito sim, e tem muita coisa aí. Não é só “ah, acredito que existe disco voador”, isso é bem óbvio, mas tem muita coisa dentro disso, tem muita informação que tá dentro dessa simples canção.

Seu trabalho também enfatiza o poder visceral da criação feminina, cujo símbolo máximo é o próprio corpo da mulher. Há o objetivo, na sua obra, de ajudar as mulheres a se conectarem com uma dimensão sagrada dos seus ciclos e os homens a reconhecerem isso?
Pois é. É uma coisa básica. Porque também é óbvio, mas, por outro lado, está faltando muito. Está muito em falta a “Deusa”, estamos acostumado com “Deus”, um homem que criou e tal… E o mundo está muito fálico, está muito desequilibrado. Então qualquer esforço em função desse equilíbrio está valendo, é ultra necessário. Tanto para as mulheres reconhecerem o próprio corpo quanto pra todo mundo entender de onde que a gente vem. Porque temos essa passagem pelo útero e [reconhecer isso] nos ajuda a valorizar a vida de todo mundo. Se a gente aprendesse a valorizar a vida, com certeza a coisa não estaria do jeito que está. E acho que isso tem muito a ver com o valor da mulher e da Deusa.

Considerando essa dimensão da arte que pode ser chamada de metafísica, ou de espiritual, qual é o papel que um show tem pra você? Um show pode ser considerado um rito moderno?
Acho que sim, é como se fosse uma pílula disso. Às vezes, tem um resultado super prático em alguém que acabou de assistir e vem emocionado me dizer o que sentiu e que teve epifanias com a própria mãe, por exemplo. Isso acontece bastante. Aí fica claro pra mim qual é o propósito, por que eu tô cantando e tal. Mas também tem o lado do próprio autor buscando essa finalidade, e isso pode ser uma coisa inconsciente, sabe? Às vezes, as pessoas estão ali e não estão nem percebendo, mas aquela experiência tá passando pelo corpo, pela memória… É um campo onde, às vezes, as palavras estão dizendo uma coisa, mas a entoação e a vibração estão indo em um grau mais profundo que é inconsciente mesmo. Eu acredito nisso. No meu show, quando tudo dá certo, a sensação é de uma nave decolando. Quando isso acontece, é uma viagem. Acredito muito nessa coisa ancestral, do ritual que acorda pontos cegos. E nas forças que estão agindo em volta, deixando as coisas mais visíveis, desconstruindo, que eu acho que é a função da arte como um todo mesmo. Desconstruir aquela lógica, aquela aflição, e começar a focar nos outros pontos, tornando o invisível mais visível.

Faltou algum ponto importante você queira colocar?
Ah, acho que tem isso do feminino em todo mundo. A gente está um pouco distante disso, eu gosto muito de falar no não-fazer, sabe? A feitiçaria fala muito disso, que, pra gente poder construir um mundo mágico ou executar alguma magia ou materializar alguma coisa que não existe, primeiro, antes de qualquer coisa, tem que não fazer. Tem que parar o mundo. Isso é uma das coisas mais difíceis que existem hoje em dia. Você parar o mundo, tentar parar e desaprender, voltar ao estado de quando éramos bebês. Os bebês são os melhores espectadores da arte porque eles estão dando tudo, estão vendo tudo puro – e coisas que a gente não vê. Acho que esse ponto é o primeiro. Para um pouco, para tudo, esquece tudo. Aí vamos começar de novo.

Ouça abaixo Mãeana no MAM (2016) na íntegra e Mãeana (2015):


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11/01/2017

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

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