Desde o seu lançamento, o último disco que os Beatles gravaram marca a vida de muita gente no mundo inteiro, inclusive a nossa. Hoje, dia em que Abbey Road completa 45 anos, lembramos do editorial e da matéria de capa da edição #28 da revista NOIZE, publicada em outubro de 2009, época em que o álbum havia entrado na casa dos 40. Sérgio Dias, Júpiter Maçã, Hélio Flanders e Marcelo Gross estão abaixando nos ajudando a mostrar a você outras dimensões dessa grande obra.
Editorial | Os Beatles atravessaram a rua
E então os Beatles resolveram atravessar a rua. Para quê? Para ver o que tinha do outro lado. Cada um já atravessou pronto para seguir viagem. John, de branco, como aquele que irradia a paz, mesmo que carregue dentro de si muitos conflitos. Ringo e George num caminhar simples e sereno, e McCartney, sempre à vontade, com os pés descalços e o cigarrinho de quem acabou um serviço bem feito. Abbey Road é um trabalho impecável, mesmo que tudo nele tenha um quê de improviso. O medley, por exemplo, é uma reunião de músicas inconclusas. E é o máximo. A famosíssima capa foi alternativa para a intenção frustrada de Lennon, que queria uma foto dos quatro no pico do Everest. E, metáforas à parte, eis um disco a ser colocado no topo de qualquer montanha. Está perto do céu, como as coisas simples da vida. Assim tratamos Abbey Road na matéria de capa: como um personagem, tão puro que mesmo suas amenidades, suas sutilezas, seus detalhes podem ser contados como uma pequena história dos grandes.
Outros lados de Abbey Road
Por Fernando Correa
A história que segue pode ou não ter passado como um holograma em frente aos olhos de Paul Cole quando, pelos fins de 1970, o vendedor segurou a capa do LP que sua mulher deixara em cima da vitrola nova. Enquanto os dedos femininos tentavam, a algum custo, desferir contra as teclas certas o empenho que se convertia em “Something”, de George Harrison, Cole passou o olho algumas vezes pela cena que estampava o disco. Até que o recanto exato de sua memória foi acessado e ele se deu conta de que talvez tivesse pego carona em um disco dos Beatles. Mal sabia ele que aquela seria a capa de disco mais famosa da história.
No meio da quadra havia um homem…
Eram quase 10 horas da manhã de 8 de agosto de 1969, e Paul Cole percebia que, ainda que tentasse, não era um cara muito chegado à arte. Cada vez que a Sra. Cole adentrava mais um museu londrino, a posição de marido provavelmente o lembrasse do trabalho que o esperava em Deerfield Beach, na Flórida. Férias não eram para isso. “Já fomos a museus o bastante, vá você. Vou ver o que se passa lá fora”, disse à Sra. Cole, e antes que ela pudesse choramingar, ele já estava na rua. Na porta do museu, em uma viatura estacionada, um policial cuja idade regulava com a de Cole assistia à movimentação costumeira de Abbey Road. A via tinha um fluxo relativamente intenso, mas o que trazia mais gente àquele trecho entre a Groove End e a Hill era o estúdio que levava o nome da rua, um dos maiores de Londres.
Falador, Cole puxou assunto com o guarda. “Belo dia, hein?” “Dia normal, nada de incomum.” “Paradinha estratégica para o lanche?” “É… e para ver o que vai sair daquilo ali…”, disse, acenando com a cabeça em direção à faixa de segurança. Uma pequena movimentação dava a pista de que alguma produção de fotos iria acontecer. Mas Cole, que não era ligado nessas coisas, deu de ombros.
A poucos metros dali, Lain McMillan preparava o filme 35mm em sua Leica de lentes russas legítimas, cuidada e acariciada ao fim de cada dia. Quatro homens eram ajeitados para uma travessia histórica. Repetidas vezes, John, Ringo, Paul e George atravessaram Abbey Road de um lado para o outro, até que houvesse fotos suficientes para o propósito do dia. “Que malucos!”, julgou Cole vendo os quatro elementos, em especial o que caminhava descalço e o cabeludo da frente, de terno branco, líder da bizarra procissão, certamente digna de registro.
Encerradas as fotos, os quatro doidões provavelmente sumiram dali enquanto podiam. Alguns anos antes, seria completamente impossível: centenas de garotinhas faziam plantão na porta do Abbey Road Studio, aguardando ansiosas por um aceno do cabeludo, do descalço ou mesmo dos dois mais normaizinhos. Mas disso, Cole não se deu conta – se soubesse que os quatro homens eram The Beatles, não ficaria de papo furado com o guarda. Ninguém estagnaria diante da banda mais importante do mundo.
Tivessem os Beatles optado pela primeira ideia de capa para Abbey Road – uma foto das montanhas do Himalaia –, Cole não seria parte de uma das paisagens mais disseminadas pelo mundo (no encarte, em camisetas, canecas, cartões postais, cigarreiras, imãs de geladeira etc.). E o mundo não teria sabido da morte do “homem da capa de Abbey Road”, em 2008, aos 96 anos. É claro, Cole nunca gozou plenamente a fama de pano de fundo para os passos que John, Ringo, Paul e George deram, nessa ordem, rumo ao outro lado da rua. Até o Fusca branco experimentou assédio maior nos anos que se seguiram ao lançamento do LP.
…E no outro lado havia um Fusca
Sabe aquela piada do Fusca gelo que sumiu porque derreteu? O fusquinha de Abbey Road não derreteu, mas por pouco também não sumiu do mapa. Depois do fatídico agosto de 1969, o carro passaria a ser perseguido. Principalmente porque, menos de 10 dias antes de a capa vir a público, um artigo do estudante norte-americano Tim Harper deu início à lenda do “Paul is Dead”[+1]. A placa do “Beetle”, LMW 28 IF, era uma das principais provas da conspiração. A primeira parte significaria Lisa McCartney Widowed (sugerindo que a esposa de Paul ficara viúva), e a segunda seria uma forma abreviada de dizer que Paul teria 28 anos se (if, em inglês) estivesse vivo em 1969.
Não importava onde o fusquinha, que pertencia a um morador de Abbey Road, estivesse estacionado, a placa não escapava por muito tempo. O dono cansou e vendeu o carro, e aí começou a saga do branquinho por Londres. Supervalorizado, tornou-se alvo de beatlemaníacos. Chegou a valer £ 2.350 em um leilão de 1986, finalizado por um colecionador norte-americano. É provável que não desse mais tanto prejuízo com emplacamentos.De uma manhã de sol em Abbey Road, o Fusca branco ganhou o mundo, atravessou o Atlântico e hoje finalmente descansa. Apelidado de “Lennon Beatle”, ele é uma das estrelas do museu da Volkswagen em Wolfsburg, na Alemanha.
O lado B de um clássico
É muito cedo quando o Rei Sol chega para acordar o Senhor Mostarda. A vida não é fácil no lado B de Abbey Road, um dos discos mais famosos da história. Mostarda dorme na rua, em qualquer buraco, para economizar e comprar algumas roupas. É um cara egoísta, há de se reconhecer, ao contrário de sua irmã Pam, que de vez em quando o leva para ver a Rainha.
“Mean Mr. Mustard” e “Polythene Pam” estão juntos em Abbey Road. Uma música é a sequência da outra no medley que coroa a segunda parte do último disco a ser gravado pelo quarteto fantástico de Liverpool. Assim, o lado B de Abbey segue como um diálogo: cada música é a metade de uma história bizarra que começou na faixa anterior ou se encerra na seguinte.
Mas certamente o encerramento maior é o estabelecido pela própria gravação de Abbey Road. Trata-se, a um só tempo, da inegável obra prima que registrou composições de todos os Beatles, juntos em estúdio com o pressentimento do fim, do disco com a capa mais emblemática e a única de sua carreira a não conter título algum. E carrega o paradoxo de acabar no auge: com canções maravilhosas e um medley urgente de despedida, eles poderiam seguir seus caminhos tranquilos. Mas o conjunto impecável de canções, de criatividade transbordante, deixou um sentimento rançoso de que muito de genial ainda poderia sair daqueles quatro juntos.
Em janeiro de 1969, durante as “Get Back Sessions”, que originaram Let it Be, os Beatles já eram uma instituição dividida. Os gênios criativos John Lennon e Paul McCartney tinham seus egos separados pelo rio de fama e dinheiro decorrente da beatlemania desenfreada que definira aquela década na música pop. A instabilidade marcou as sessões e adiou Get Back para 1970, lançado como Let it Be e assim eternizado, equivocadamente, como último disco lançado dos Fab Four. Mas entre janeiro de 69 e o lançamento, em maio de 70, frustrado em sua busca às coisas como eram antes, McCartney esforçou-se em uma última tentativa que superasse a tempestuosa relação com Lennon e reunisse os quatro Beatles em estúdio para gravar, como antigamente.
Lado B não era sinônimo de música de menor potencial de venda desde que surgira o LP de 33 1/3 rpm [+2], com seus impressionantes 20 minutos em cada metade. Quer dizer, não era necessário preencher a segunda parte de Abbey Road com possíveis hits, mas daí a Paul McCartney transformá-la em uma grande salada de canções inconclusas, há um tanto de ousadia.
Foi o que Macca fez. Depois de “Here comes the sun” e “Because”, duas canções que não são propriamente parte dessa mistura, tem início o medley de despedida dos Beatles. Porque “The End”, que finaliza a sequência, é um evidente presságio do fim[+3]. E sim, há “Her Majesty”, faixa simpática e pouco importante a um só tempo – não por acaso, escondida no fim do disco e excluída do encarte do vinil original. Para os 16 minutos que separam “Because” e a piadinha de “Her Majesty”, McCartney orquestrou uma sinfonia formada por pedaços deixados de lado nas gravações de The Beatles (1968) (o “álbum branco”) e Let it Be (1970). Na verdade a própria faixa-escondida deveria estar localizada entre “Mean Mr. Mustard” e “Polythene Pam”, mas não caiu bem aos ouvidos de Paul e foi removida para as profundezas dos últimos 26 segundos do disco. Mas enfim, antes que se fale de mais do tal pout porri, e sem a intenção de sermos conclusivos, passamos a palavra para seis músicos brasileiros das mais variadas importâncias. Cada um deveria escolher uma dessas canções como mote para um devaneio, embora não tenha sido exatamente isso o que aconteceu. De qualquer forma, é legal ler esse medley de pílulas emocionais devidamente acompanhadas pela trilha sonora mais óbvia.Perdido, Garotas Suecas
“Eu curto muito ‘Because’. Tem um arranjo muito loucão, com um cravo no fundo e as três vozes na frente. Umas melodias lindas e uma harmonia muito ‘ácida’! Eu digo ‘ácida’ por que a impressão que dá é de que se acabou de tomar um ácido no meio de uma apresentação de coral! Essa faixa é muito bonita e muito loucona, tal qual o disco inteiro. Uma verdadeira obra prima!”
Júpiter Maçã
“Ainda que não faça parte do medley, a belíssma ‘Because’ que o antecede, é pra mim uma das faixas mais lindas do mundo! E acaba fechando totalmente com o conceito do medley. Mas em relação a ele em si, minha canção preferida é a própria ‘You never give me your money’, tema que acaba sendo o fio condutor de todas as outras, pois brota vez ou outra sob diferentes arranjos. O singelo, direto, expressivo e totalmente Beatle solo de bateria do Ringo ajudou a eternizar a opereta. Sem falar na incrivel jam de guitarras com George, Paul and John!”
Hélio Flanders, Vanguart
“Harrison avisou antes: ‘Here Comes The Sun’. Depois Paul veio e falou de dinheiro no começo desse lado B que é pro- vavelmente algo que foi tirado do fundo da mente dos fabs, algo nunca atingido antes. Lennon, pôs fim a seu silêncio no que parece tentar explicar que na verdade quem vem não é somente o sol, é o Rei do Sol ‘Sun King’ que com uma letra aparentemente sem sentido, consegue puxar minhas orelhas e me dizer tudo. Não há nada como se surpreender ouvindo John quase sussurrando palavras como ‘mi amore de felice corazón’ e por fim ‘obrigado’. Esse medley é sem dúvida o verdadeiro adeus de quatro homens para o seu passado. Obrigado, obrigado, obrigado.”
Tatá Aeroplano, Cérebro Eletrônico
“Uma melancólica alegria me toma quando escuto o medley do lado B do álbum Abbey Road, que até hoje me soa misterioso e será assim até os fins dos meus dias.‘Mean Mr Mustard’, prensada entre a belíssima ‘Sun King’ e a nervosa pré-punk ‘Polythene Pam’, traz aqueles acordes rapidinhos,‘PA Ra PA Pã’, que senhorita Rita Lee, mister Marc Bolan e o Lord David Bowie souberam usar muito bem posteriormente. Pa Ra Pa Pã!!!”
Pedro Metz, Pública
“‘Sonhos dourados enchem seus olhos’. Nesses anos que toco na Pública, fizemos não mais que uns 5 covers ou versões de músicas de outros artistas.Talvez nos falte vocação, saco, paciência, enfim, preferimos tocar nossas próprias canções. Mas uma dessas 5 músicas era ‘Golden Slumbers’, décima quarta faixa do Abbey Road, que está incluída numa espécie de medley que fecha o lado B.Talvez ela não seja minha preferida do disco, mas isso nem conta, porque com os Beatles a gente não pode ter posições definitivas. O que vale é o grande vocal do Paul, a letra simples e graciosa, e a excelente melodia. E precisa mais?”
Marcelo Gross, Cachorro Grande
“Terminando o medley e o disco (e os Beatles!), ‘The End’ começa emendada em ‘Carry that weight’, com uma pequena introdução antes do clássico solo de bateria que, diz a lenda, Ringo não queria, mas foi convencido pelos outros a fazer. Segundo Geoff Emerick, engenheiro de som do disco, o som encorpado se deve ao fato de que pela primeira vez se gravava a bateria em estéreo, pois estavam usando uma mesa de 8 canais transistorizada (com compressores e limiters em cada canal) em vez da velha mesa EMI de 4 canais valvulada. E a ideia dos solos de guitarra animou a todos na hora e tem a incrível sequência que começa com Paul, depois George e John, cada um tocando um trechinho do solo, com seus amplificadores enfileirados, mas tudo no mesmo canal de gravação. A parte final,concluindo não só o disco (‘Her majesty’ não vale), mas também a carreira brilhante da maior banda de todas (cujo tema e a mensagem principal sempre foram LOVE) termina com a frase ‘e no fim o amor que você recebe é igual ao amor que você gera’. Sábias palavras de quem viveu o maior romance de todos os tempos: THE BEATLES!”
Sérgio Dias, Os Mutantes
“Olha, é difícil, eu não gosto de classificar por músicas, entende? Principalmente com o Abbey Road, que é o ‘goodbye’ deles. Talvez fosse a ‘Her Majesty’ porque foi a última coisa que eles fizeram.”
Leia a NOIZE #28 aqui: