Um arrepio agudo parece subir pela espinha dorsal do povo brasileiro. O ano é de Copa, a especulação imobiliária está em festa, mas cada vez mais há questionamentos sérios – ainda que alegres – sobre os poderes econômicos que demonstram pouca preocupação com as necessidades básicas da maioria das pessoas. Hoje chega ao 13º dia de vida um movimento que materializa esse sentimento de forma espontânea, pacífica, e essencialmente cultural em Recife, o Ocupe Estelita. A manifestação já reuniu milhares de pessoas no Cais José Estelita e é crescente o número de músicos que se envolvem no assunto. Ney Matogrosso, Fernanda Takai, Bi Ribeiro, Mombojó, Karina Buhr, Siba, Lucas Santtana e Vivendo do Ócio são alguns deles.
Aqui vai uma contextualização pra você entender o caso: o Cais José Estelita encontra-se em uma área de cerca de 100 mil m2 às margens da Bacia do Pina, no centro da capital pernambucana. O local tem uma importância histórica, pois lá foi feita a segunda estrada de ferro construída no Brasil, em 1858. Mais tarde, diversos galpões foram erguidos para estocar as mercadorias que passavam por lá. Essa vasta zona pertencia à Rede Ferroviária Federal, depois passou à União, e por fim foi vendida em 2008 para um grupo de empresas que criou o projeto Novo Recife, prevendo a construção de um complexo de 12 prédios de até 45 andares no local. Cinco ações judiciais tramitam questionando essa grande obra há anos: uma do Ministério Público Estadual, outra do Ministério Público Federal e mais três ações populares.
Argumentando que o projeto não conta com uma série de estudos ambientais e pareceres de órgãos públicos obrigatórios para permitir seu andamento, manifestantes ocuparam o espaço na noite de 21 para 22 de maio para impedir que os armazéns do cais fossem derrubados e a obra iniciasse. Desde então, uma série de atividades culturais tem sido realizada no local, no último domingo houve grandes shows por lá, e hoje a prefeitura do Recife suspendeu a licença de demolição dos galpões do Cais José Estelita por tempo indeterminado.
A NOIZE conversou com os músicos Karina Buhr e Siba, que fizeram shows dentro da ocupação no último domingo, para entender melhor toda agitação que está acontecendo no Recife agora mesmo em função desse episódio:
Como Recife vem lidando com seu patrimônio histórico e ambiental?
Karina Buhr – Recife vem num processo de sucateamento gigante de muito tempo pra cá. Não é de hoje, nem de ontem, mas tomou uma proporção e ganhou uma velocidade estonteante nos últimos tempos. Existe uma força destruidora e gananciosa, que envolve poder público, construtoras e velhos interesses com novíssima roupagem, e também uma reação gigante e belíssima contra essa destruição toda, esse descaso com a cidade e as pessoas. E é difícil essa briga. Porque é contra o cerne do poder do dinheiro acima de tudo. Mas acho que sempre existiu uma tendência mundial contrária à especulação desenfreada e que, com a possibilidade de ligação e fortalecimento com a comunicação pelas redes, toma uma força bonita demais de se ver.
Siba – De uma maneira geral, acho que a gente vive um desempenho econômico muito acentuado e um direcionamento desenvolvimentista pra cidade que, no meu entender e no de muita gente, tem virado as costas pra construção de uma cidade melhor a médio e curto prazo. Percebo um sentido muito avançado de apropriação do espaço público pela iniciativa privada. E o Estelita é um símbolo muito importante de reação em relação a isso. O velho projeto de cidade como um objeto de predação não tem que ser o único possível. O Estelita é uma região que tem o rio, vista para o mar, para o sol nascente… E Recife carece de áreas verdes e áreas públicas. Esse projeto que dá as costas para o centro da cidade impondo sombras escuras de prédios de sei lá quantos andares não foi discutido com a sociedade. Foi levado sempre de uma forma autoritária. A sociedade tem o direito de cobrar a reversão do processo para que seja melhor para o futuro da cidade. Essa é uma discussão entre quem só acredita no dinheiro e nessa ilusão de capitalismo e desenvolvimento e um outro grupo de pessoas que acredita que é possível sim se posicionar e exigir discussão sobre o que é de interesse público.
Qual é o papel da classe artística em relação à defesa de pautas como à do Ocupe Estelita?
Karina Buhr – Nunca me senti confortável com o termo “classe artística”. Existem muitas pessoas diferentes, fazendo artes diferentes, ganhando ou deixando de ganhar granas muito diferentes… São interesses e pontos de vista completamente individuais. Acho que o papel de um artista é muito importante, mas o mesmo de qualquer outra pessoa. O que acontece é que, dependendo da exposição e do alcance de público de uns, a opinião deles pode ter uma força muito grande e fazer muita gente que andava desligada se ligar. Mas alienação é uma merda de qualquer um, não é exclusividade de artista.
Me emociono demais quando quem faz música, teatro, desenha, escreve, faz cinema, declama, dança, se junta com causas sociais. Isso sempre teve uma força muito grande e permanente na história da humanidade e faz ecoar mensagens que muitas vezes deixariam de chegar em tanta gente. Porque tem a ver com celebração, com ideias muito profundas sobre o que seriam lugares melhores e mais justos e isso inspira sempre.
Siba – A classe artística de Pernambuco tem uma história baseada em uma relação afetiva com a cidade. A história da música pernambucana está toda ligada a uma relação afetiva que temos não só com o Recife, mas com o Nordeste. A gente é o que é como artista por gostar do lugar de onde viemos e afirmar esse vínculo. Então, como artista a gente tem que se posicionar em favor dessa cobrança de responsabilidade por parte dos poderosos. O projeto Novo Recife tá se mostrando uma associação entre os empreendedores privados, o poder público e a imprensa pernambucana, todos trabalhando no sentido único de predação da cidade. É isso que a gente não tá aceitando muito facilmente.
Como vocês avaliam o movimento por enquanto? Há chance de ele reverter de fato alguma política pública?
Karina Buhr – Sim, grandes chances e já temos grandes resultados. Hoje, por exemplo, foi suspenso o alvará de demolição dos armazéns do Cais José Estelita. É um passo importante pra anulação da aprovação do projeto Novo Recife, que é cheio de irregularidades. O Ocupe Estelita tem uma força impressionante e acho que isso se deve não só ao número de pessoas envolvidas, mas também à diferença entre elas. Tem advogado, vendedor ambulante, líder de movimento de bairro, estudante, trabalhador do comércio informal, engenheiro, arquiteto, adolescente encantado, pessoas desempregadas, crianças das redondezas acompanhando tudo de perto, tudo junto, com todas as diferenças de classe e tudo mais em nome de um objetivo comum e aprendendo muito diariamente uns com os outros, com necessidades e lutas individuais diversas e quebrando muitas barreiras. A força desse aprendizado é do tamanho da força dos resultados.
Siba – Eu quero acreditar que exista uma chance real por conta de toda repercussão, e da sinceridade do sentimento das pessoas que estão lutando pela mudança do projeto. É um movimento sincero de pessoas que vivem no Recife e querem um Recife melhor pro futuro. Com a repercussão, a gente começa a sonhar que as altas instâncias vão se ver obrigadas a recapitular e propor coisas distintas. Eu imagino que tanto o governador quanto a própria presidente da República possam fazer algum tipo de intervenção radical, mas mesmo que isso não venha eu acho que o simples fato desse projeto ter sido interrompido e o debate ter sido forçado a acontecer tem uma simbologia fortíssima pro Recife e pro Brasil.
Para vocês, manifestações com um cunho cultural tão forte são mais ou menos poderosas? Por um lado, elas reúnem muita gente em volta da causa proposta. Por outro, alguém pode achar que isso tudo não passe de uma grande festa. Mas será que uma festa não pode ter um poder de ação muito maior do que uma passeata convencional, por exemplo? É uma questão complexa, mas o que vocês sentem sobre tudo isso?
Karina Buhr – Não acho complexo. Eu adoro uma grande festa! Vivo por grandes festas e acho que gente vive pra festejar. Isso não tem absolutamente nada a ver com se alienar, muito pelo contrário! A força do dinheiro grita contra isso e não há maneira mais forte de enfrentar essa força do poder destruidor do que com arte e união das pessoas. Cantar, dançar, atuar, desenhar juntos é uma grande liga, fala intimamente com todos e isso é muito forte nos caminhos de conscientização política. Não existe isso de “não passa de uma grande festa”, acho esse pensamento de uma mesquinhez incomensurável e quando vejo ele por aí, tenho vontade de sair correndo. Como você falou, “elas reúnem muita gente em volta da causa proposta”, isso fala por si.
Os assuntos são sérios e discutidos com toda seriedade do mundo. Isso não tem nada a ver com não poder se divertir, se emocionar, ficar extasiado com uma festa bonita, com tanta gente misturada. Quem já tá na causa celebra e se emociona e quem chega sem saber direito do que se trata, atraído por um show, por exemplo, tem ali um monte de informação disponibilizada, fica sabendo das posições políticas desse ou daquele artista que gosta e muitas vezes passa a participar de movimentações, discussões e ações de que antes não participava. Acho isso tão óbvio que me dá agonia de argumentar. Arte tem a ver com celebração, com gente e isso tá intimamente relacionado com movimentação social por causas coletivas.
Siba – Eu acho que a tua pergunta parte de um pressuposto bem central da nossa cultura que é a contraposição entre o racional e o instintivo e sentimental. A gente tende a não entender como sério e como válido nada que tenha um vínculo com festa e celebração. Nesse mundo, a festa e a arte ocupam um lugar menos importante do que as coisas concretas como um empreendimento de prédios de 40 andares. Eu acho que tem uma política sim na festa e na arte. Talvez a gente precise saber usar isso melhor, mas não é só com seriedade e com paletó que se faz política. Se fosse assim, a gente tava bem.