Todos sons do Brasil no “Japan Pop Show” de Curumin

22/09/2015

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Nicolas Henriques

Por: Nicolas Henriques

Fotos: Victor Petreche

22/09/2015

Existem clichês musicais hoje repetidos à exaustão. Não só musicais, vai, talvez comportamentais mesmo. Tudo é líquido, morreram os gêneros na cultura, as coisas se misturam mais do que se distinguem, essas coisas lindas de um mundo cada vez mais plural e, sim, sou Pollyanna, mais aberto. Esses clichês são, muitas vezes, usados até com certa leviandade. No entanto, falar do som do Curumin sem citar a belíssima maniçoba que é sua música, é como falar que sushi de manga não é algo sociologicamente genial. Tanto o artista quanto a iguaria nipo-brasileira são fantásticas em muitos níveis.

Quando Japan Pop Show foi lançado, lembro de ouvi-lo incansavelmente. Muito, confesso, pela música “Magrela Fever”, que me recorda, contraditoriamente ao que está na letra, as tardes jogando Fifa com meus amigos. Japan Pop Show é um álbum graúdo em muitos sentidos. Seja na mistura de gêneros, que vai do dub ao funk à Miami Bass, passando por reggae, pop, rock e vários gêneros que caberiam numa música cantada na velocidade de um João Bosco, o álbum de 2008, segundo do cantor sob essa alcunha (antes já havia o álbum Perro), é realmente acachapante, com 13 pedradas musicais por mais de quarenta minutos (nossa, que parágrafo tecnocrata, deixa eu relaxar um pouco). O que queria dizer é que Japan Pop Show foi um álbum bem marcante, que ouvi muito na época, mas que ainda não tinha ido a um show, por puro deslize, e acabei achando que não veria esse álbum ser tocado na íntegra. Até que a NOIZE resolveu lançá-lo pelo seu clube de vinis, o NOIZE Record Club. E, para comemorar o lançamento do vinil, a última sexta-feira, dia 18 de setembro, foi o dia em que pude tirar um atraso de sete anos e ver, na íntegra, esse grande álbum.

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O calor estava complicado. O grande sonho era que fosse baixado um decreto no Diário Oficial obrigando as pessoas a andarem apenas de sunga, biquíni e chinelinho. No máximo, caso houvesse um mínimo de frio, uma camiseta. Mas, sendo otimista de novo, o calor era interessante para aquela noite, não só pela maneira óbvia de relacionar o calor a um lançamento e a expectativa, mas também porque o álbum de Curumin é ensolarado, buena onda, gostoso de ouvir numa estrada ou numa tarde com os amigos. O calor, portanto, combinava.

Quinze minutos após o previsto, a banda entrou. Um a um, os membros posicionavam-se no palco sui generis, com a bateria à frente. Cada qual estava vestido de maneira harmônica e desordenada, com a roupa que melhor cabia para sua personalidade. O vermelho forte no sintetizador. A languidez do torso nu no baixo. A guitarra e a percussão mais contidas, pois mais ao fundo. Curumin ainda não entrara. Aguardávamos ansiosos, quando um gongo samurai anuncia a entrada de Luciano Nakata.

Tal qual aquelas máscaras japonesas que celebram festas de espíritos ancestrais, Curumin entra no palco com um kimono verde-turquesa e o rosto pintado acima da sobrancelha, demarcando certo traço que poderia tanto ser indígena quanto oriental.

A bateria ressoa. Começa um dub poderoso, com sintetizadores reverberando e estremecendo as estruturas do Sesc. O som grave tremia nossas artérias, e a voz contida na garganta saía como balido. Era o início da viagem por vários brasis sonoros e populares, sons geralmente marginais e mal-vistos.

A banda é incansável e o groove do show não para um segundo. Mal acaba a primeira música, a bateria segue a batida do dub e emenda um reggae, numa conexão Caribe-Brasil, e inicia-se “Dançando no Escuro”. É um som chapado e chapante. Bridges são alongados. Jams começam com naturidade graças ao talento dos Aipins, a banda que acompanha o cantor. Luzes simples, vermelhas e amarelas, nas cores do álbum, iluminam o palco.

Entra o famigerado locutor de rádio dando as coordenadas do baile dançante que é o show. A luz abaixa. Começa “Compacto”. Plateia canta tudo, de cabo ao rabo, delirando com um dos hits do álbum. Sem descanso, para a plateia e os músicos, Luciano metralha a bateria com suavidade, homicida delicado, e, num tiro só, começa “Magrela Fever”, a definição de uma buena onda musical. Todos cantam. Uma menina ao meu lado está dançando não provavelmente pela alegria daquele show, mas pelas memórias e histórias de sua vida, na qual essa música foi trilha.

Se já dizia o sábio Luiz Carlos da Vila que o show tem que continuar, Curumin complementaria que ele não pode parar. O baterista e vocalista bate sem dó, uma porrada atrás da outra. Mal dá tempo de aplaudir. Não é pra isso. Estávamos num baile. Então precisávamos bailar. Começa “Kyoto” e sua letra sobre nosso louco mundo hipercapitalista. Quando chega a vez de “JapanPopShow”, o calor me arrebatou e fui pegar um chope no bar. Deu para notar, de longe, fora da ebulição, o público todo dançando. Era uma imagem bonita, foi possível sentir que todos ali estavam onde deveriam estar, e não só num sentido metafísico e sentimental cósmico de tudo, mas num sentido arquitetônico e geométrico: era importante aquela aglomeração e aquele calor formado pela pequena falta de ar que um ambiente abafado pode causar. Cada pessoa comportava-se como partículas de uma molécula sendo aquecida, igual aprendemos em aulas de química.

Essa própria junção química era necessária para a próxima música, “Mistério Stereo”, e sua balada gostosa, unindo casais suados ali. Curumin, espertamente, joga pra galera, que responde numa morosidade quase sexual, a música mais amorosa do álbum. O cantor declamou que todos querem amor e paz na terra, reinando um clima gostoso que me lembrou as noites de dub do CCPC. As próprias letras repetidas combinam com o calor, e a maneira circular de cantar “Mistério Stereo” cria certa languidez e o baixista Lucas Martins, com seu corpo de yógi, é a personificação disso. Seu baixo comanda a música ao vivo.

Com o fim da sensualidade de “Mistério Stereo”, a banda resolve prestar uma excelente homenagem ao maldito Jards Macalé, que, em parceria com Waly Salomão, escreveu a excelente “Revendo Amigos”, cuja base serviu de sample para “Saída Bangu”. Na versão do show, é nessa música que há um espaço para todos os Aipins brilharem, improvisarem e até arriscarem certos ruídos. Os Aipins são uma banda sensacional. Meio dream team. Além do baixista, já citado, Saulo Duarte acompanha na guitarra, Zé Nigro comanda teclados e sintetizadores, e Ari Colares é o percussionista. Ao fim da música, o cantor agradeceu a plateia e falou de como é legal estar lançando esse LP tanto depois por estar vendo o resultado e o alcance real de seu disco.

Quando chega a vez de começar a nipônica “Sambito (Totaru Shock)”, Curumin dedica a música à comunidade japonesa, porém chamando-a de “brimos”, como brincamos quando imitamos árabes. É curioso notar que, nessa pequena brincadeira, vemos a sutileza na metáfora do próprio álbum, de como o Japan Pop Show é o espaço de todas as etnias, músicas, gêneros, povos, marginalizados e migrantes se encontrarem. Essa é a mistura.

Com o álbum já quase acabando, a sensação de que tudo está perto do fim causa aquela pequena angústia lamacenta no estômago. Não era a hora do fim. O show poderia durar mais algumas boas horas. Cadê a minha fatia do filé? Poxa, o show tá bom pra caramba. Todo mundo cantando tudo. E, na politizada “Mal Estar Card”, com o grudento e excelente refrão que lembra muito BNegão (que canta, no álbum, “Caixa Preta”), há espaço para um maravilhoso discurso sobre a falida guerra ao tráfico, na qual helicóptero com cocaína é caído no esquecimento, e milhões são gastos com a desculpa de acabar com tráfico apenas como forma de extermínio de pobres e pretos.

Começa um batidão bem miami bass. É o sinal de entrada para “Caixa Preta”, que aborda exatamente toda uma corrupção sistêmica em grandes conglomerados midiáticos de nosso país. Uma porrada para fechar todo o baile excelente do segundo álbum do cantor. A banda sai, mas as luzes denunciam que teremos um segundo momento do show. Há uma mudança bem forte nos tons, outrora vermelhos e amarelos, lembrando a própria capa do álbum homenageado, para uma luz mais azulada e rocha, similar aos tons do álbum Arrocha (2012), o último do artista.

O reggae pesado e lento, gostoso como uma brisa suave, entra, dando um tom mais baixo para o show, necessário para darmos uma pequena descansada. A próxima música é “Samba Japa”, do primeiro álbum, Achados e Perdidos (2002), música na pegada de um samba rock jorgebeniano. Um ponto muito interessante é que, no show, todas músicas se estendem um pouco em algum momento, dando espaço para você refletir e pensar, para a banda entrar em seus solos e sintonizarem-se entre si. É quase que um convite a contemplação que surge a cada respiro não programado pelos álbuns sempre dançantes.

Após “Samba Japa”, chega a vez de “Selvage” e sua letra misturando gírias nordestinas com, no show, tambores africanos. É uma música que, ao vivo, ganhou uma nova versão mais selvagem mesmo, com muitos ecos dubísticos, contrapondo a versão mais suave de estúdio. Excelente.

Já tínhamos mais de uma hora de show e não dava para parar ainda não. Ninguém reclamaria ali se Arrocha fosse tocado inteiro. Mas pelo menos duas grandes músicas não foram esquecidas. A abre-alas do álbum, “Afoxoque”, começou, com uma luz amarela para cada membro dos Aipins, enquanto todas as luzes brancas focavam em Curumin, até entrar a espanhola Indee Styla emendando um rap impressionante, enquanto dançava sensualmente e com o corpo completamente descompromissado de articulações e ossos.

Após a dançante “Afoxoque”, entra a gostosa, mas desiludida, “Passarinho”, com sua letra sobre amores partidos e finais, mas, na maneira como o show estava, ninguém pensava num fim de um romance, mas apenas na despedida de uma noite agradável pra porra na companhia de Curumin & Os Aipins, quando o calor zambiano sequer foi sentido pela galera, e, se foi, tudo bem.

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22/09/2015

Sou pesquisador e escrevo resenhas de shows pagando de crítico musical porque gosto muito de música e minha verdadeira intenção era ser multi-instrumentista ou vocalista de alguma banda. O problema é que falta habilidade para tocar até campainhas mais complexas e meu alcance vocálico lembra uma taquara rachada.
Nicolas Henriques

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