A empreitada de “Janequeo”, em faixa a faixa por Brisa Flow

21/06/2024

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Bruno Barros

Por: Bruno Barros

Fotos: Jon Turner

21/06/2024

Terceiro disco da carreira de Brisa Flow, Janequeo lhe tem dado anos bem sucedidos de reconhecimento, trânsito e movimento. Lançado em junho de 2022, o disco foi destaque no prêmio WME, como melhor compositora daquele ano pelo júri técnico. Apresentado em diferentes formatos, o show de Janequeo foi presente no circuito cultural de grande parte do Brasil, além de se manter com oferta de agenda em São Paulo. Deu amadurecimento à artista. Recentemente, ele participou da premiação do Prêmio SIM de Igualdade Racial, apresentando um número com o músico e compositor Péricles, em evento transmitido pela Rede Globo.

(Foto: Jon Turner)

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Da etnia Mapuche do Chile, Brisa De La Cordillera é filha de pais imigrantes. Nasceu já no Brasil no estado de Minas Gerais. Em fuga do regime militar chileno, Tieti e Paulina encontraram no município de Sabará no interior de Minas um lugar nas terras Krenaks, o ambiente em meio a natureza para criar sua filha.

Criada em contexto de transcultural, Brisa foi educada em espanhol e mapugundun. Na escola ela aprendeu português para também ensinar em casa. O movimento Hip Hop exerceu papel importante em sua identificação enquanto sujeito e a conhecer camadas da complexa realidade sociocultural brasileira.

O faixa a faixa aqui publicado foi coletado em uma conversa feita no final do ano de 2022, e veio inédito até então. Os planos da artista mudaram e um projeto o qual a pauta se reservava divulgar, fora adiado devido a gravidez da artista, hoje mãe da pequena Nayen Ko Yby, de quatro meses – primeira filha de seu casamento com o também músico e artista Ian Wapichana.

Trânsitos de Abya Ayala se chama a circulação da artista sob a chancela do selo Natura Musical. O projeto contemplado para 2023 tem sua previsão de realização para o segundo semestre deste ano. “Tá sendo muito massa fazer uma coisa que a gente queria. Que é elaborar com calma, pra não sair fazendo um show só por fazer. Mas ter trocas com artistas indígenas e trans. Conhecer os espaços. Não só viajar por viajar. A gente quer fazer uma coisa bonita”, contou a artista em uma conversa recente a fim de atualizar as histórias do momento atual.

(Foto: Jon Turner)

A turnê se desenrola para passar por México, Chile e Bolívia, pensada para estabelecer uma troca com o público. “Como eu nunca toquei nesses países, eu quero fazer link com bandas que existem nesses territórios. A gente foi atrás da Maré Advertência, no México, e Newen Afrobeat no Chile. Na Bolívia estamos amarrando com um coletivo de mulheres marronas onde a gente pode falar sobre essa identidade marrom na perspectiva da Bolívia pra cá. O Brasil é onde tem a maior comunidade bolivianos no mundo fora da Bolívia. Sempre tem esse vínculo Brasil- Bolívia e muito no Hip Hop. A gente tá bem feliz de conseguir essas articulações”, revela a artista.

O disco novo o qual ela já falava no final de 2022, quase pronto, espera seu momento, na previsão para 2025. “Por aqui atualmente trabalhando no próximo disco. Cuidando de neném, trocando fralda. Amamentando de madrugada. Planejando shows. Planejando a turnê que vai ser meu trabalho mais elaborado esse ano.”, explica Brisa.

De volta à Janequeo, ela relembra que o processo de criação começou de modo solitário, em meio ao distanciamento imposto pela pandemia de 2020. Até seu lançamento em 2022, ela cuidou de incluir a colaboração de Mc’s e produtores. “Eu quis fazer um disco com participação porque os outros discos foram muito individuais. E como a pandemia me deixou muito fechada, quando as coisas começaram a voltar ano passado, eu comecei a querer contribuir denovo. Então acabei de gravar o disco mesmo em 2022 no início do ano. Foi um aninho aí viajando pro ATL, indo na marcha da Mulher Indígena, conhecendo pessoas. Reclusão, fecha todo mundo. Abre todo mundo”.

A mudança do estado afetivo, também deu direções diferentes para as composições das músicas. “Eu tava solteira, comecei a namorar no meio do disco, aí isso muda muito as coisas, as letras. O início do álbum é muito mais individual num contexto de um coração que está cicatrizando. E aí depois ele vira um coração mais forte, apaixonado de novo, e aí eu sinto que o disco passa nesse lugar de transição de relacionamento. Então cada faixa romântica ali, ela tem um diferente experimentar do amor”.

Leia abaixo o faixa a faixa completo de Janequeo.

(Foto: Jon Turner)

  1. Cerquita (Prod: Alvin)

É uma faixa que eu gosto muito por vários motivos.  Botei ela no início porque marca uma nova fase da minha carreira, em que eu decidi que vou me jogar a conhecer lugares de Abya Ayala que eu não conheço. Conheço o Chile, a Argentina, o Paraguai… Conheço alguns lugares do Brasil, mas faltam muitos, porque o Brasil é um continente. E “Cerquita” foi feita na ideia de um amor de pessoas que moram distantes uma da outra. É uma música de saudade. “En Abya Yala se baila Cerquita” é porque eu quero bailar pertinho. “Cerquita” é pertinho. Não tem português em “Cerquita”, só mapudungun e espanhol, nessa ideia de ter saudade de casa, e também em referência a esta fase transcultural que a gente está vivendo em Abya Ayala, de voltar às línguas maternas e nativas. 

(Foto: Jon Turner)

Pra mim, espanhol e mapudungun são línguas maternas. Meus pais falam portunhol hoje em dia, mas falavam espanhol. Entrei na escola pra aprender português, porque ninguém sabia em casa. “Camino, camino/ Bajo el Sol”, é uma história de uma pessoa que está caminhando debaixo do Sol, trabalhando, mas segue amando você. É uma história sobre migração e saudade. Uma história de amor e migração. Quis representar como se fosse uma pessoa migrante no Brasil, com saudade de um amor que está lá no Chile. E aí eu quis fazer uma música mais alegre, porque a saudade é muito triste. A saudade já é triste por si só. Eu quis fazer uma música dançante. A música tem o baixo do Alvin, eu fui cantando pra ele e ele foi criando o beat. E, futuramente, ela vai ter um remix de Eric Terena. Minha ideia é que essa música, junto de “Originária”, vão ter outras versões. 

  1. Besitos (Prod: TIDUS)

Eu sou canceriana, então eu amo falar de amor. “Besitos” marca a fase do rompimento de um amor por quem eu era muito apaixonada. E foi muito triste, porque eu tinha uma expectativa. Então, ela começa com “baby só você não vê”, que é tipo: “Poxa parceiro, como assim você não viu?”. E foi em um momento em que eu estava recém separada, que eu mudei de casa, estava morando na Sé, alugando um quartinho, montando meu equipamento onde eu dormia, bem na resistência: “Vou sair dessa fossa e tudo vai ficar bem”. E aí eu me agarrei na música e comecei a gravar o disco. Foi essa a primeira música que eu gravei pro álbum, com pedal de efeito de voz. E fala sobre isso. 

O fim do nosso relacionamento foi muito porque nós estávamos ficando mais amigos do que amantes. Hoje, nos tornamos amigos, amadurecemos, mas, na época, eu sofri muito. “Besitos” fala sobre esse momento, essa quebra. E ela também tem algo muito massa, porque ela me deu uma independência. Foi a primeira música do álbum que gravei sozinha. Eu tinha feito uma vaquinha, comprei todos meus equipamentos e me gravei sozinha, no meu quarto, na Sé. Quando acabei e comecei a mandar pras amigas, todo mundo: “Uau, você tem que cantar mais em espanhol”. Foi uma das primeiras músicas que eu comecei a cantar em espanhol.

  1. Making Luv (Prod: TIDUS)

Gosto muito de “Making Luv”, ela foi feita na sequência de “Besitos”, por isso que estão juntas. É tipo: “Vivi a fossa, agora estou amando novamente”. Esta frase, “eu posso sentir a sua energia fazendo amor com a minha alma”, eu amo. Essa frase quis fazer em inglês pra que TIDUS pudesse circular lá também. Porque a minha intenção era poder dialogar na outra parte de Abya Ayala, lá em cima. Infelizmente, são as línguas coloniais, mas eu falo em português, inglês e espanhol nessa música. Alguém que escutar em Los Angeles, em Salvador ou em Sabará, vai se identificar em alguma parte. E eu falo sobre acreditar que, mesmo que a gente não esteja nos livros, a gente sempre existiu.

E aí vai indo. Com “meu corpo é terra, nado em água”, continuo com a pesquisa da água, iniciada em “Jogadora Rara”, eu falo sobre o corpo ser terra e nadar em água. Porque o nosso corpo só nada em água porque nós somos terra. E a cultura Mapuche, assim como outras, acredita que nós somos povos que já vivemos em água, num outro período da terra, em que a água subiu. É comprovado que a água subiu, que tivemos inundações, e esse é o vínculo do nosso corpo ser 70% água, de a gente chorar água, a gente goza água, a gente come água. Quando a gente faz xixi, cocô, tudo é água, o tempo todo, e a gente ignora muito. A água é a gente. Essa coisa do fluir, do relacionamento, quando você está tendo uma relação sexual, é uma relação de água. Você sua, beija, goza, é uma relação de muita água. E eu quis falar disso em “Making Luv”. E aí tem o clipe, que eu fiz com o Ian [Wapichana] na cachoeira. E, na sequência, vem o Ian. É uma historinha…

  1. Etnocídio (Prod: Ian Wapichana)

Eu estava no estúdio com o Ian, eu tinha só uma parte e ele tinha a letra dele. Eu só tinha o “lejos de los Andes/ nada é como antes de la Cordillera/ nada é como antes”, e eu entrei na pira da Nina [Simone] e, daí pra frente, é só freestyle. E ficou chique, né? Fiquei morrendo de medo dos direitos autorais, por isso eu cito ela várias vezes. Não é um plágio, gente, eu tô citando. Nina te amo. Descanse em paz. Eu gosto muito de Nina Simone. 

Toda treta que eu passo com distribuidora, os problemas com royalties, tentando falar com as distribuidoras, eu me sinto a Nina Simone. A Nina Simone foi lá e botou o carão dela, e eu tenho que ir lá e botar o meu carão. É uma artista que me inspira muito, porque ela queria ser pianista, né? E ela passou um racismo acadêmico fudido. Eu entrei na academia querendo ser harpista e pianista, e eu acabei virando professora, mudei pra licenciatura, porque eu cansei do racismo que eu estava passando. Fui reprovada, meu professor dizia: “Você não entende o E1, E2, E1, E2…”. E eu falava: “Não, não entendo, nem quero entender”. Fui reprovada no primeiro semestre em composição e mudei pra licenciatura, porque eu sou mãe, faço rap, não tenho tempo de ficar aqui 8h nesse piano, não tenho piano em casa. E aí eu desisti. E me identifico muito com a Nina, porque ela queria só ser uma pianista sendo uma pessoa preta, e eu queria só ser uma instrumentista, compositora, sendo uma pessoa indigena. 

Sinto que é tão difícil brigar com a estrutura que eu dei a volta e continuo vivendo de música. Sou uma das poucas pessoas que vive de música da minha sala. Eu e o Vitor Prado, que toca comigo, meu amigo íntimo desde a faculdade.  

(Foto: Jon Turner)

  1. Sol de Outono (Prod: Lessa Gustavo) 

Adoro o Lessa, é um artista que está contra a corrente. É um dos poucos artistas – homens – com quem eu contribuo, porque eu sinto que ele é de verdade. Eu sinto que o Lessa poderia ter muito mais destaque pelas coisas que ele faz, mas ele está feliz no underground, porque sabe que o underground sustenta o mainstream. 

Essa é minha letra favorita. Ela é muito forte pra mim porque foi feita no outono, eu morava em um apartamento na Barra Funda que não esquentava, a roupa mofava. E aí eu comecei com essa vibe: “Sol de outono, quase lá”. Eu estava no início do final do meu curso, finalizei na pandemia. “Sol de outono, quase lá”, e a música acaba: “Me formei, quem diria”. Fala sobre esse processo que eu falei de “Etnocídio”, em que eu estava brigando com a faculdade pra tentar me formar compositora. Não consegui, mas criei outra estratégia e me formei musicista em licenciatura, que eu acredito muito mais. 

E essa foi dedicada ao professor que me reprovou. Alô, professor racista! Esse professor era muito chatão comigo. Eu falava com ele sobre iniciação científica, sobre decolonialismo, e ele me zoava muito. Tive vários professores racistas na faculdade, tive uns dois legais e quatro racistas. Então, é mais chato do que legal a faculdade, né? Eu gosto muito dessa letra porque é meio um resumo do Brasil. Tipo uma bombinha.

  1. Bonde das Maloks (Prod: Alvin)

Eu comecei a deixar o disco mais acelerado, digamos assim. A Sodomita é muito foda, né? Ela é braba. E foi a primeira vez que ela gravou. Lá em casa, a gente montou o mic, e ela falou: “Ah, minha primeira vez gravando”. Eu olhei pra ela e fiquei: “Como assim, que momento é esse? Vamos estourar um champagne”. E a Monna [Brutal] já é minha irmã há muitos anos, desde a Virada Cultural de 2014, conheci ela menor de idade, cantando já. Achei muito bom juntar na mesma faixa a Sodomita, que tá chegando agora com esse trampo, e a Monna, que tá no corre tem uma cara. Acho que representa isso que a gente tem feito, mudando a cena. Esse bonde de mudança. Ela é muito boa letrista, acho foda. E é uma gata das melhores do Brasil, e tem pouco espaço. Sinto que poderia ter muito mais projeção também. Eu poderia ter chamado pro meu disco artistas com muito mais projeção, mas não é a minha pira. É a minha família. Fico nessa pira, botar quem eu curto. 

Eu fiz a escolinha da Sharylaine, a gente viajava no circuito estadual da FNMHH (Frente Nacional das Mulheres do Hip Hop), e eu ficava no mesmo quarto que ela, só escutando que ela foi uma das primeiras MC’s do Brasil. Então, eu tenho essa pira de juntar as meninas também. “Bonde das Maloks” talvez faça sentido só daqui a dez anos, que a galera vai escutar e sacar que era a Sodomita e a Monna na mesma faixa com a Brisa falando: “Travesti de vila fudendo sua rima”. Eu boto isso pros boy do rap ouvir e eles ficam: “Nossa, legal”, mas ficam duros. Então, tem muita coisa pra quebrar aí ainda. 

A pessoa que chegou até essa parte do disco achando que vai ouvir uma indígena falar de Ayahuasca, escuta essa faixa e desconstrói o machismo e a transfobia. Trááááá. A pessoa opta por continuar ouvindo o disco ou não. É isso que eu quis fazer, um choque. A partir daqui, o disco vai quebrar o que você pensa da menina fofinha ancestral e vai trazer o papo reto. É isso que quero fazer com essa isca que eu jogo. Falo de amor, “Besitos”, “Making Luv”, falo do “Etnocídio”, mas quero trazer as pessoas pra pauta antirracista e antitransfóbica. 

  1. Sonho com Serpentes (Prod: Alvin)

Eu também gosto muito dessa. Esse beat é do Alvin tbm. O Alvin colabora em 4. Ele estudou com a gente também na faculdade. E essa rima eu fiz muito puta, lá no ATL. Porque eu estava indo pro acampamento da marcha Terra Livre dos Povos Indígenas em Brasília, e um amigo emprestou um carro e a gente foi pra Chapada dos Veadeiros. Então eu vivi a tensão Brasília e a cachoeira na mesma semana. E aí eu ficava, ‘nossa, a vida poderia ser só essa cachoeira aqui’. Então por isso que eu falo do presidente, dessa movimentação. Porque foi essa semana em que eles iriam votar a PL 490 que a gente foi pra lá e eles adiaram a votação umas cinco vezes. A gente ficou acampado por semanas. E eu como artista fui pra apoiar. E chega uma hora que eu tenho que voltar, né? Eu tenho show, tenho filho, tenho trabalho. E aí o meu amigo falou, ‘aih Brisa, vou te emprestar o carro pra você conhecer a Chapada’. E eu fui conhecer a Chapada e vi só desmatamento no caminho. De Brasília, até lá. Milhas e milhas de soja e gado. Um cerrado todo desmatado. Muito triste. Queimada pra caramba. 

E aí eu escrevi essa letra nesse processo das movimentações políticas, climáticas e ao mesmo tempo pensando nessa movimentação do carnaval. E de como o indígena no Brasil ainda é folclore. E as gatas que tomam ayahuasca e bota cocar não vai lá pra luta ficar acampada com a galera, né? É uma crítica mesmo. E eu tava sonhando muito com cobras nessa época aí. Sonhava com cobras diferentes, contava pra minha mãe, então por isso que chama “Sonho com serpentes”. Eu sonhava com jararacas grandes, então quis botar esse nome. Jardins de jararacas eu sonhava. E um sonho continuando no outro. Era muito louco. Uma fase da pandemia que eu sonhei muito. 

  1. Marrona Libre (Prod: Suntizil)

“Marrona Libre” é o tema principal, o que resume Janequeo. Ela queria ser livre, é uma mulher marrona, a identidade marrom é algo que está sendo construído mais fora do Brasil do que aqui dentro, mas espero que já já vai chegar. É um movimento de cholas e cholos, pessoas indígenas que nascem fora da cultura, na cidade, num contexto desterritorializado, que muita gente chama de indígenas urbanos. Tem vários outros nomes, mas continuam sendo pessoas originárias em outros contextos de cultura. Seriam essas pessoas de identidades originárias dentro de um contexto de miscigenação também de identidade, que ficou como o chamado pardo, mas “pardo é papel”, como o Maxwell [Alexandre] fala. Então, é uma identidade de autoestima que tem sido construída na Argentina e lugares onde predomina o racismo e a invisibilidade indígena. Por exemplo, na Bolívia, já é forte, porque é um estado plurinacional, mas na Argentina, que é um estado bem racista, a identidade marrom tem surgido com muito mais força agora contra esse racismo. 

(Foto: Jon Turner)

Quis trazer “Marrona Libre” e chamar a Abi Llanque porque ela também é caminante, migrante. A Abi Llanque mora aqui, tem um companheiro aqui, faz rap, costura, faz figurino, tem a Ayura, que é a filha dela, que é MC e a gente se conhece há muitos anos, desde que eu estava barriguda do Davi. A gente nunca tinha contribuído uma com a outra, e eu acho que ela construiu uma identidade de “Marrona Libre” e eu construí outra. Então, acho que foi tudo a ver nós juntas nessa faixa. 

Eu quis trazer muito essa pegada de que nós somos livres pra sermos o que somos. Pra cantar o que a gente quer, pra ir no restaurante, pra dirigir um carro, pra ser só um ancestral e ficar na aldeia tomando ayahuasca também. Eu posso ser o que eu quiser. E é um contexto que aprisiona. Na América Latina e nos Estados Unidos, em Abya Ayala toda, a gente não fala sobre a quantidade de mulheres marronas presas. A gente tem muitas mulheres marronas presas em contextos migratórios, tráfico de drogas, mulheres que salvaram os seus maridos, mulheres que, aqui no Brasil, são chamadas de pardas e que também são indígenas. Mulheres indígenas presas também, que são presas e nem são colocadas como indígenas. Então, tem uma criminalização, principalmente da migração, muito forte. A gente tá falando de racialidade, de novo, né? 

“Marronas Libres” é dedicada também aos meus pais, que vieram pro Brasil pra serem livres. Às vezes, as pessoas migram para serem livres, e aí elas vêm pra um lugar onde elas também não são. As histórias do meu bairro eram de crianças que eram jogadas no rio, porque a galera achava que vinham roubar o emprego aí pegavam o filho da família e jogavam no rio. A gente ainda tem esse olhar xenofóbico na sociedade muito forte. De achar que o nosso vizinho boliviano, ou chileno, argentino, peruano, veio roubar nosso emprego. Mas não veio. E com quem que a gente tem esse olhar? Só com os que têm origem originária ou com povos pretos. A gente precisa falar disso para que todos os migrantes sejam livres. Pra que a gente possa ir e vir visitar nossas famílias. Meus pais ficaram nove anos sem voltar ao Chile desde que eles chegaram aqui. Eu lembro de eles chegarem ao Chile e beijarem o chão na Cordilheira dos Andes.  

  1. Janequeo (Prod: Vini Crazy)

Essa aí eu falo que é um rezo. Uma maldição que eu joguei nos racistas. Essa é a favorita do meu companheiro, ele fala: “Essa aqui é a braba”. É um beat do Vini Crazy, eu já tinha muita vontade de contribuir com ele, e aí eu falei: “Fiz um rezo aqui”, e mandei num beat qualquer. E aí ele: “Nossa, vou fazer um beat”, aí mandou pra mim e foi isso. E ela ganhou o nome do disco porque eu acho que ela é a mais violenta. Minha amiga fala que é um canto de guerra, ela fala: “Como você pode não querer problema com a indústria musical se faz um disco de guerra?”. Eu falo: “Mas gente, já me colocaram na guerra antes do disco. Não vem, não”. E essa é a que a minha mãe mais gosta também. Ela só fica me corrigindo os nomes. Ela fala: “Não é Janequeo, é J/Ranequeo”. Rolam uns debates assim, mas essa é a que a minha família mais gosta. 

Não tem muito o que falar, até hoje eu fico pensando que é pro Jaider [Esbell]. Eu só consigo pensar no Jaider quando canto essa música hoje, e acho que tem muito a ver com a força dos nossos encantados. Eu acho que não teve um: “Vamos matar o Jaider”. Mas existe um: “Vamos matar esse artista, alvo de racialização, que está falando sobre a nossa estrutura”. A estrutura mercadológica que a branquitude controla é frágil, não quer debater, ela não consegue. Na última entrevista, ele deu nome pra todo mundo, Jaider estava em um lugar de embate muito forte e cansativo. O espírito e a cabeça precisam ter descanso. Meus amigos diziam que ele estava sempre no corre, isso também faz com que o artista se sinta pressionado à morte. Porque a morte não seria a ausência de vida? Como um artista vive se está em constante combate com a vida, e a vida parece estar cada vez mais longe de alcançar? Foi um choque pra gente, muito forte, é inaceitável, inadmissível. Eu tenho muita raiva de todo esse mercado, principalmente depois que eu li a entrevista dele. Quanto mais a gente eleva a nossa autoestima e critica a estrutura pra poder mudá-la, mais ataque a gente sofre. É uma guerra espiritual, a gente está lidando com energias espirituais dos nossos antigos que morreram assassinados.  

E as notícias são: “Morre um indígena”. Ninguém bota o nome. E aí, nessa pesquisa, eu comecei a ver quantos guerreiros a gente teve e que têm nomes. Não saber o nome deles, e não ter a estátua deles aqui na Av. Paulista, é proposital. Mas é isso. “Janequeo”, pra mim, é a mais linda. Quis fazer muito nessa ideia de que a gente tem nome. Aí eu falo da Tuíra, do Galdino, do Galvarino, Leftraru, e vou puxando Janequeo, que é uma das mulheres. Mas tem Bartolina, tem inúmeras, e a gente não conhece nenhuma. Então, acho que parte da ideia da pesquisa, da arte-educação, tem muito de plantar uma sementinha no imaginário das pessoas para que elas pensem. Quem que é Galdino? Quem é Galvarino? Vale um Google pelo menos, tá ligado? Quem é Tuíra? E aí vem a imagem da Tuíra com o facão no senador. São coisas que vão construir outra imagem do que é o ser indígena para além do Show da Xuxa, né? 

(Foto: Jon Turner)

  1. Camburi (Prod: Gaba)

É linda, tem esse sample de samba. Aí, nova MPB! Essa é a nova mpb, beat com pandeiro, o Gaba fez o beat. Essa eu gosto muito porque tem o Vitor, que tocava comigo na faculdade, e a gente foi pro estúdio gravar pela primeira vez. Foi um momento muito lindo, um acompanhou o outro, a gente gravou junto, tocando e cantando. Gravei esse clipe em Camburi, que é uma comunidade quilombola. A gente até ganhou um prêmio com esse clipe, e foi o primeiro single que eu soltei. Essa música fala dessa ideia de um mundo sem celular e sem ansiedade pela ascensão, que é a minha pira. A gente é preso a ter que se divulgar pra poder trabalhar. Eu não posso ter uma gravadora que divulga e faz tudo pra mim e viver só a composição. Se o Instagram vê que eu não faço há dez dias, ele já não divulga tanto… Essa coisa da rede social, eu não curto muito. 

  1. Dentro dos seus olhos (Prod: Drôga)

Essa é chiquérrima, né? Eu amo, fiz lá em Jundiaí, com o Drôga. Eu quis fazer uma música sobre esses afetos que a gente tem com as crianças, com os avós, com os relacionamentos. E é muito nesse sentimento de uma música de amor e que, ao mesmo tempo, fala de outras nossas aceitabilidades/afetividades. E o beat é do Drôga, que também fez o beat da “Raiou o Sol”, uma faixa minha de 2017. O Drôga é um dos artistas mais incríveis que a gente tem no Brasil, mas que por estar longe do circuito acaba ficando muito nos bastidores. A minha ideia é fazer um clipe dessa música ainda, com muitas crianças. Eu penso muito nas crianças nessa música. Acho ela como uma faixa nos olhinhos das crianças, tranquilos e enfurecidos.

  1. Ayala (Prod: Marco)

Aí eu vou seguindo numa faixa de amor. De Camburi pra cá, está mais amorzinho. Essa fala dos anseios. Quem fez esse beat foi o mesmo que fez o beat de “Violeta se fue” e “Fique Viva”, o Marco. Eu contribuo sempre com pessoas com quem eu já contribui. E eu acho isso importante, porque eu vou criando uma história com as pessoas. Ele me mandou esse beat e eu adoro a cultura do sample. Na vontade de fazer uma coisa com sample, chamei ele. E aí fala sobre a monocultura incondicional que é a monogamia. Acho que “Dentro dos seus olhos” vem muito como uma contemplação e essa como um anseio. Fala no tarô dos Andes. É uma música mais de ref. A Geni Núnez fala muito de como a monocultura nos deixa engessados de achar que o romance tem que ser de um jeito. E aí eu venho falando das coisas legais de um romance fora do caretão, criando várias coisas que me remetem ao imaginário de estar com alguém. Ama Puma Ayala é o nome do tarô dos Andes, é um tarô bem bonitinho, muito antigo, que tinha símbolos indígenas, da cosmovisão dos Andes. A música chama Ayala por isso. 

(Foto: Jon Turner)

  1. Originária (Prod: Alvin)

Nossa, essa aí, pra mim, é um voo, gosto de ouvir quando pego o avião. Nessa música, eu quis catalogar várias etnias. Muitos amigos meus de outras etnias reclamam que não estão na faixa. Eu falo: “Gente, não cabe 800 e poucas etnias dentro de uma música”. Mas a minha ideia é que ela seja uma brincadeira. Várias amigas chegam tentando cantar ela inteira, eu mesma não consigo cantar ela inteira muitas vezes. Se eu esqueço uma etnia, aí desmonta todo o resto, uma depende da outra pra combinar as rimas. Fiz as etnias rimarem, deu um trampo isso aí. 

Foi muito engraçado, porque o Ian é Wapichana, ele é do Norte e eu do Sul, então tem várias etnias que eu falo de um jeito e ele fala de outro. Os sotaques das regiões são diferentes. E a gente passou dias debatendo, porque tem gente que fala Aimara e tem gente que fala Aimará. Tem gente que fala Quechua e gente que fala Quéchua. E aí fica uma questão. A minha ideia é de que justamente as pessoas debatam, que a música promova o debate sobre qual etnia é essa. E acho que deu certo. 

Ainda quero fazer o videoclipe dessa, já tô pensando como vai ser. E ela já é um house. E muito na pira de ser um transe. Eu sinto que é uma música que transpassa o tempo. Termina com a profecia do Condor, que é uma profecia dos povos indígenas que diz que, a partir dos anos 2020, a águia, que é o animal dos povos do Norte, ia encontrar o condor, que é o animal dos povos do Sul. E essa profecia está sendo cumprida. Porque a gente está vivendo um momento de encontro de culturas, né? Eu sinto que lá no Norte a galera está falando uma coisa e, aqui no Sul, a gente também está falando uma coisa parecida, e as coisas estão se encontrando. Espero que isso aconteça, porque a gente tem a maior indústria musical hoje pautada na indústria americana. E a gente tem um mercado musical bem forte no Brasil também, acho que precisa circular de outro viés. Não só como tem circulado, de Norte pra Sul, mas talvez do Sul pro Norte.

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21/06/2024

Bruno Barros é produtor de conteúdo independente. s.brunobarros@gmail.com | @labexp
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