A leveza de Badi Assad: voz e violão num encontro de celebração musical

01/07/2019

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Guilherme Espir

Por: Guilherme Espir

Fotos: Welder Rodrigues

01/07/2019

A música é uma ferramenta primorosa. Ela questiona, alimenta e faz com que os artistas – enquanto seres criativos – se bastem frente a sua própria arte. É interessante como, a partir desse ponto, as notas tomam um rumo que vai além da classificação de estilos.

Assim, a música acaba indo além da própria música. É como um paradoxo que se mistura à vida e supera qualquer bloqueio criativo para mostrar que acima de instrumentistas, somos seres humanos. É um estado de espírito, de graça e liberdade que faz o artista externalizar sua verdade e revela a importância de ouvir a nós mesmos.

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Mais do que choro, violão clássico, jazz e cultura popular, a história, a carreira e a música de Badi Assad nos alertam para a importância de escutarmos uns aos outros. Com uma abordagem extremamente própria e original, Badi é um patrimônio histórico da música brasileira.


Seja tocando sozinha no palco do SESC Paulista para uma plateia que mal piscava durante o sábado do dia 29 de junho, ou improvisando junto com nomes como o guitarrista John Abercrombie e o percussionista Naná Vasconcelos, a música da Badi é tão orgânica e multicultural que ensina e inspira. As sublimes notas de seu imprevisível fraseado surgem com tamanha graça e acalanto que estimulam plateias do mundo todo a não só pesquisar, mas também a apreciar a música nos diferentes estágios da vida, assim como Badi fez durante os últimos 30 anos.

Com um show baseado em seu livro, Volta ao Mundo em 80 artistas (2018), a intérprete conta histórias sobre como surgiram os temas do espetáculo, toca, canta, fala e sorri com uma leveza impressionante. Aos 52 anos de idade, sua música continua prolífica e durante um show que cumpriu a difícil tarefa de sintetizar o vasto conteúdo de seu livro, ela mostra como o mundo é cheio de sons, possibilidades e idiomas – nós só precisamos desbravá-lo.

Essa é a essência da proposta desse show. Quando Badi explora a lírica de Lenine e Bráulio Tavares, o axé de Chico César e a pluralidade de Angélique Kidjo, as diferentes referências e influências desses artistas se juntam ao seu vasto repertório. O resultado? Versões vibrantes para temas como “Acredite ou não”, “Zoar” e “Batonga”, diretamente da ótica de uma instrumentista com repertório capaz de desafiar a geografia e colocar Piazzolla e Björk sob o mesmo teto.

Foi um show irretocável e num formato muito interessante, pois Badi pôde falar sobre seu grande trabalho de pesquisa e mostrar diversas esferas de seu rico trabalho. Muito além da caixinha da música instrumental, esse show mostra os encantos da Badi vocalista e percussionista.

Ela subverte diversas linguagens e estilos, promove fusões no mínimo curiosas com uma naturalidade estonteante e toca com rara facilidade. Por cerca de 80 minutos, a plateia do SESC Paulista viajou sem escala pelo mundo todo e mais até do que visitar o Chile ou os encantos rítmicos de Pernambuco, o show visita o íntimo da culta popular.

Ao mesclar choro, música erudita, Jazz e todas as outras referências citadas acima, a artista mostra como a música é livre e uma consequência natural da vida. Ela apenas acontece e quando encontra sua voz e violão, consegue uma licença poética para ir da Inglaterra até a Paraíba com apenas um passo, um sorriso e a música do mundo nos ecos de luz e sombra das cordas de nylon.

Foi uma noite exuberante. Além do grande espetáculo, nós conseguimos conversar com Badi antes do show e o nosso papo revela ainda mais detalhes sobre o infinito particular dessa grande artista. Confira abaixo:

Badi Assad (Foto: Welder Rodrigues)


Badi, seu trabalho tem muita referência. Você tocou choro, violão clássico e no fim esses caminhos se cruzaram e criaram uma abordagem muito particular ao violão. Tem também o rico trabalho de voz e toques de percussão que em momentos até complementam o instrumental… Gostaria de entender como você enxerga esse caminho que traçou- absorvendo referências que vão do jazz aos ritmos regionais- mas pensando em como tudo isso acaba se transformando em cultura popular no fim do dia?

Bom, vamos partir do princípio de que eu comecei no choro, depois que veio o violão erudito. Isso aconteceu claramente em função dos meus irmãos, então eu nem tive tempo na minha maturidade de uma jovem pra saber o que eu mesma queria fazer, por que eu gostava de muita coisa. As influência já dentro da minha casa eram meus pais tocando choro, minha mãe cantando serestas, meus irmãos com a música erudita… Eu mesma adorava MPB, já tinha um gosto eclético, queria ser bailarina, então tinha já tinha um olhar meio esponja, pensando: o que serei? O primeiro impulso foi ainda criança. Eu não queria nada com música justamente porque tinha uma overdose de música na casa, mas isso tudo pra dizer que com o tempo eu fui percebendo que o universo da música erudita não era a minha onda, não era a minha praia. Toda a possibilidade que eu tinha de aula extra na faculdade, eu nunca fazia nada com música! Fiz até aula de teatro e nesse momento eu tocava música erudita e, apesar de fazer essa escolha por não optar pelo erudito, continuei na música instrumental, porém tocando música popular brasileira dos compositores brasileiros que não são eruditos, como o Egberto Gismonti e etc. Nisso, descobri que tinha uma voz, então a minha curiosidade, a minha procura, sempre foi me desafiar, me tirando da minha zona de conforto, porque eu não gosto de fazer a mesma coisa. Sempre fui aberta a estudar e pesquisar – seja a voz ou violão – porque eu mergulho muito nas minhas buscas. Todas essas influências tão diversas vieram naturalmente pelo viés da minha curiosidade e dedicação em desenvolver essa nova influência no estilo. Aí, fui misturando tudo, sem deixar de fazer uma coisa pra fazer outra… fui agregando, misturando, então quando você vê o violão da Badi, eu transito com o meu repertório – você vai ver hoje aqui, tanto por festival de Jazz como World Music, porque ele realmente dialogo com tudo isso.

O seu livro – Volta ao Mundo em 80 artistas – explora isso também e revela um cuidadoso trabalho de pesquisa, algo que nem sempre acaba sendo mencionado. Qual é a importância desse estudo, não só em termos de conhecimento, mas pensando na sua relação com a música e como sua vida é impactada por isso?

Não são todos os artistas que tem essa curiosidade de pesquisa que a gente está conversando aqui, né, é um perfil de artistas, porque tem músicos que se dedicam a um estilo e ficam nesse estilo. Eu digo isso porque o livro me levou a uma exploração ainda maior do que eu já fazia, mas que agora foi acentuada, que é a música que é feita no mundo. A ideia é trazê-la para o meu universo e no show eu brinco com as misturas, desde Björk com Piazzolla.

Badi Assad (Foto: Welder Rodrigues)


Tem uma faixa que eu não sei se você vai tocar, do Asian Dub Foundation.

“1000 Mirrors”, aquilo é impressionante, eu adoro aquilo. 

Isso que é o interessante. É um som completamente diferente do universo que você orbita, mas não impediu você de encurtar as distâncias e chegar na Jamaica, por exemplo.

Mas isso acontece quando você olha pelo viés daquilo que toca você. No caso do Asian Dub Foundation, por exemplo quando eu escuto as músicas, não é todo o repertório deles que eu ouço. Ouvi essa faixa num show deles que eu assisti em Portugal e no meio desse show aconteceu essa música que, no disco original, quem gravou foi a Sinead O’Connor. Eu ouvi e pensei: “Uau, isso aqui vai ficar lindo no violão (risos)”. Esse tipo de raciocínio que me chama a atenção. Quando você tem essa experiência que eu tenho, de viajar com o olhar e os ouvidos curiosos, você acaba se deparando com um universo musical muito mais amplo. Eu tive essa liberdade pra misturar e criar. 

Badi, o primeiro disco seu que escutei foi o 3 Guitars (2003), com o Abercrombie e o Coryell. Pra mim, esse disco é primoroso e vai muito além dos trios de violão que eu estava ouvindo na época. Lembro de escutar o Friday Night In San Francisco (1981), com o Paco de Lucia, Al Di Meola e John McLaughlin, e pensar: apesar do virtuosismo, não tem aquela interação que pra mim é o ponto básico do 3 Guitars. Como foi gravar o projeto, excursionar com eles e chegar mais perto do jazz com esse trabalho? Você foi introduzido ao violão da Badi nesse disco? 

Sim. Entendi, você ouvia o outro [Friday Night In San Francisco] e pensava que era uma disputa, não é?

Exatamente, parecia que era uma competição pra ver quem tocava mais, algo que não acontece no 3 Guitars.

Isso também aconteceu por conta de ter uma mulher no grupo. Porque o universo masculino é mais competitivo, a energia masculina, faz parte. O universo feminino não, tem uma generosidade da mãe terra e quando eu fui convidada pra trabalhar com eles, a minha própria presença levou pra esse lugar de “estamos juntos”, de não ter essa competição. Mas era interessante, porque na hora do show ao vivo eu acabava a música, dava meu acorde final e ficava esperando os 2 se decidirem.

Pra ver quem dava a última palavra, né? 

Sim (risos), sempre com uma notinha a mais e eu sempre ficava esperando.

Mas tinha um suspense, né, você não sabia quem ia encerrar.

Sim, era engraçado! Que legal que você curtiu. Foi uma experiência fascinante tocar com eles.

Badi Assad (Foto: Welder Rodrigues)


É interessante porque a linha dos 2 vem daquele fusion setentão cabeçudo e se fosse outro músico no seu lugar, o disco talvez teria virado outro exercício de virtuosismo.

Demais. Teve uma coisa engraçada sobre esse convite porque eu estava voltando a tocar violão depois da distonia focal. Eu voltei a morar no Brasil, mas não tinha gravado ainda e recebi o convite pra gravar com eles! Estava com a mão recuperada, mas aí eu falei: bom, vamos fazer de uma forma que eu consiga usar a minha voz como instrumento também. Eles concordaram e a gente combinou de todo mundo montar o material, isso com seis meses de antecedência. Passaram cinco, quatro, três, dois meses… Só eu tinha proposto umas ideias e aí chegaram duas partituras do Larry e nada do John! Eles são tão acostumados a só chegar e tocar que foi por isso também que a maioria do repertório é formado por composições minhas!

Você também tem estado bem ocupada em função do seu filme – O Badi, do Edu Felistoque – que vai pro cinema logo logo. Como foi fazer esse trabalho e, de alguma forma, reavaliar a sua trajetória?

O filme passou no In-Edit, foi premiado como o melhor documentário em Los Angeles e já foi exibido em Nova York e Berlim, entrou num edital da TV Cultura e agora vai para o Canal Brasil. Está rodando né, eu estou levando meu show junto com a proposta do filme, então quando sou convidada para algum festival, já faço a dobradinha. Ele foi nascendo a princípio sem o vislumbre de virar um filme. Aí, quando o Edu começou a imaginar o filme, eu pensava que fosse um filme sobre música e eu fosse uma musa inspiradora da história, aí quando ele anuncio que o nome do filme seria “Badi”, eu falei: caraca! Porque não é um filme só sobre mim. Foi uma parceria muito linda, fala sobre música, carreira e sobre a vida de outros artistas que tiveram interação comigo. Então quando eu soube que seria isso mesmo, resolvi abrir meu baú, porque pensei: não será tão fácil ter um segundo filme sobre mim, então vamos colocar tudo agora! (risos) É um resgate fenomenal porque às vezes nós vivemos o dia a dia e acabamos não olhando pra isso. O filme fala sobre isso, com o ímpeto de mostrar que existe muita coisa pra se fazer ainda.

Ainda sobre o filme, como foi o processo e qual é a importância pra esse tipo de iniciativa, visto que músicos como você e outros que fizeram carreira internacional – como a Tânia Maria também – acabam contando comum reconhecimento até maior internacionalmente? 

É muito importante fazer esse tipo de trabalho, porque preserva e envolve a memória, o resgate, não se perde. Mas sobre o que você falou, músicos como os quais você citou são reconhecidos, como eu sou, por um nicho. Esse nicho reconhece e sabe o valor que tem. Agora, o nosso mercado cultural é muito tupiniquim mesmo, até porque não existe política cultural. Existe o jabá como sempre existiu, algo que não é ligado ao cultura, mas sim ao entretenimento.

E cultura e entretenimento são coisas completamente diferentes.

Sim, são coisas diferentes. Cada um possui o seu papel, mas é por meio da cultura que você realmente vê e transcreve o espírito de uma nação. O povo se expressa pela cultura e isso estimula o pensamento e a partir da arte é possível questionar, seja com a música ou o teatro, mas como estamos num país que não tem essa autonomia, nós trocamos espelhos por olho, entendeu?! É um retrato do brasileiro, nós reverenciamos o que não é nosso. É só ligar o rádio e ver essa imersão de música estrangeira e a brasileira que está disponível é de uma qualidade bastante discutível. E quando eu digo qualidade eu quero dizer em termos de produção, capricho, cuidado, sabe? Isso aqui é música popular brasileira! O brasileiro conhece o topo do iceberg e isso precisa mudar. Até pra que músicos consigam esse mesmo prestígio internacional, também aqui no Brasil.

Falando sobre seu trabalho no violão, lembro de ler uma entrevista aonde você se identifica mais como vocalista. Como é pra você ver esse trabalho vocal ganhando maior espaço no seu som, até deixando o violão em segundo plano em alguns momentos? Como isso mudou sua relação com o instrumento?

Mudou naturalmente também por que foi um processo de subsistência, até em função do problema que eu tive na mão. Quando eu tive esse problema o violão sumiu, nem se eu quisesse ele podia estar lá.

Badi Assad (Foto: Welder Rodrigues)

De fato, só quando eu trabalhei a minha cabeça num nível muito espiritualizado e profundo eu consegui perceber que eu existia sem o violão e fiquei bem isso. Foi um processo muito longo e que levou 2 anos de recuperação, mas aí eu descobri naturalmente que a minha conexão com a música não era pelo instrumento, era pela música mesmo.

A voz entra de uma forma forte e a palavra também, por que ela foi muito responsável pela minha cura e ganhou um peso que não existia antes. Ela veio com esse caráter mais expressivo, mas o violão segue junto, eu não trabalho mais com música instrumental, mas foi um movimento natural. 

Badi, muito obrigado pela atenção, pra fechar eu queria saber como você se define hoje. Entre o erudito, o choro, jazz e dezenas de outras vertentes, você diria que hoje a Badi Assad é popular?

Eu gosto de falar que o que eu faço é música popular. A música erudita tem suas regras, mesmo a contemporânea, mas ela sai de um lugar diferente. O que eu faço tem uma veia da coisa popular mesmo, de atingir por outro lugar.

Mas eu quero dizer também que artistas como eu, o nosso telefone não toca o tempo todo. Nós precisamos proporcionar esse telefonema, então existe esse comprometimento e isso é sempre uma escolha. Existe uma coisa na minha carreira que eu fiquei um pouco presa, de uma certa forma, dentro do mundo da música instrumental.

Eu sou reconhecida, ainda mais sendo mulher. Eu tenho consciência disso e tenho consciência da minha individualidade nesse cenário. É um aprendizado diário e é importante você se bastar, enquanto artista, até pra ter esses caminhos sempre abertos.

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01/07/2019

Entusiasta do groove, eis aqui um meliante que orbita do jazz ao hip-hop, desde que tenha groove. Sem ele, a vida seria um erro.
Guilherme Espir

Guilherme Espir