Afropunk: a trajetória underground do festival de cultura negra

07/10/2024

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Henrique Santiago

Por: Henrique Santiago

Fotos: Divulgação/ Leandro Godoi

07/10/2024

“Eu andava com a minha mochila pelo corredor da escola no ensino médio, olhava para as pessoas e pensava: ‘sinto que sei de uma coisa que eles não sabem’ ou ‘sei que não sou um deles. Onde eu pertenço?’. E aí eu descobri o punk rock. Foi bom porque consegui resolver uma boa parte das minhas preocupações. O que não foi resolvido foi o fato de eu ser negro em um ambiente totalmente branco”, diz um homem negro de dreads diante de uma câmera.

Ele é Ralph Darden, músico da Filadélfia (EUA), que sintetiza sua procura por identidade dentro do underground. Sua fala aparece no documentário Afro-punk (2003), escrito, dirigido e produzido por James Spooner, um entusiasta da cena. Assim como Darden, dezenas de outros jovens compartilharam seus conflitos pessoais e sensação de não pertencimento por serem pessoas por serem pessoas negras em um movimento de embranquecimento.

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O início do afro-punk se deu nesse filme (disponível no YouTube) que conta a história de jovens negros e negras que encontraram um estilo de vida no punk, ainda que fosse difícil serem enxergados por pessoas de dentro e fora da cena. Suas referências musicais vem dos anos 1970 e 1980: Bad Brains, Pure Hell, Death, Dead Kennedys, Fishbone, Suicidal Tendencies – grupos que contavam com integrantes ou eram exclusivamente formados por músicos negros. 

“Eu queria fazer um documentário sobre o que era ser um punk ou hardcore negro. De certa forma, foi um jeito de validar toda a minha experiência pessoal e permitir que pessoas com outros tons de cor sentissem orgulho de quem são”, Spooner conta à NOIZE.

O começo de tudo

Na época, o documentário foi exibido em festivais de cinema pela América do Norte, e a identificação de negros que assistiam aos depoimentos de seus semelhantes trouxe novas possibilidades a Spooner. Após o longa, ainda no início dos anos 2000, lançou um site e um fórum online, onde aconteciam conversas, divulgação de bandas e encontros presenciais entre as centenas de membros.

Ele teve contato com Matthew Morgan, músico e empresário de grupos locais de punk, e daí nasceu a festa Liberate Sessions, voltada para a exibição de filmes e apresentação de shows. Esse evento foi o embrião do festival Afropunk. Em 2005, aconteceu a primeira edição na Academia de Música do Brooklyn, quebrada de Nova York, e um dos berços do hip hop. A programação gratuita contou com quatro dias dedicados à música, cinema e até mesmo um piquenique. 

Punk ou pop?

O Afropunk não era restrito exclusivamente a artistas da cena punk, o terreno estava aberto para quem vivia com a ideologia de ser contrário ao sistema. Não à toa, a música Tamar-kali Brown diz no documentário que uma das pessoas mais punks que ela conhece é Nina Simone, a inquieta cantora de jazz enfrentava o racismo com suas composições na turbulenta década de 1960.

Nos anos seguintes, cresceu e a sua expansão trouxe desentendimentos entre os fundadores: Spooner aponta que seguiam o caminho do SXSW e CMJ, voltados ao público de massa. O desgaste ficou ainda maior em 2008 com a entrada de patrocinadores, uma ideia que, segundo ele, seguia o caminho oposto de proposta inicial. Em entrevistas a outros veículos, conta que a gota d’água foi o show de uma banda que apresentou letras homofóbicas, ferindo os princípios de respeito a comunidade LGBTQI+.

Atualmente, James Spooner, tatuador e quadrinista, se mostra crítico quanto ao andamento após sua saída. A ideia de chamar o afropunk de movimento soa como um erro, ou melhor, uma estratégia de marketing. “Meu objetivo era que outras cidades soubessem o que estávamos fazendo e que fizessem o mesmo. Nunca quis que estivesse em outras cidades, eu apenas desejava que os pretos outsiders encontrassem um lar para chamar de seu.”

De 2008 pra cá, expandiu as fronteiras do Brooklyn: chegou a Atlanta (EUA), e em cidades  como Paris, Londres e Joanesburgo. As atrações musicais também passaram por uma mudança expressiva, com a inclusão de artistas do mainstream – como Ms. Lauryn Hill, Janelle Monáe e D’Angelo –,  filhos do neo-soul e hip hop, e herdeiros do som e atitude punk, como Death Grips, Trash Talk e Ho99o9.

O progresso veio acompanhado de um ponto de virada que incomodou parte da comunidade negra: a cobrança de ingressos a partir de 2015. As críticas eram voltadas a uma possível gentrificação, que causaria o distanciamento de pessoas sem condições financeiras de bancar o valor do ingresso de 130 dólares, preço cobrado no ano passado. Mesmo com a reprovação, é fato que o Afropunk de Nova York ultrapassou a marca de 60 mil participantes, entre negros e brancos.

Do Brooklyn a São Paulo


O crescimento, jamais imaginado por Spooner, trouxe o evento em terras brasileiras em 2019. O desejo de celebrar a cultura negra por aqui faz muito sentido aos organizadores, afinal, o Brasil é o segundo país com a maior população negra do planeta, atrás apenas da Nigéria. Uma festa aconteceu na Audio Club, em São Paulo, no fim de semana da Consciência Negra, para anteceder a edição que aconteceria em Salvador nos dias 28 e 29 de novembro deste ano, se não fosse a pandemia.

Na capital paulista foi possível ver novos nomes da música brasileira, como BaianaSystem, Baco Exu do Blues e Karol Conka. A essência do som punk negro se fez presente com a banda Black Pantera. As apresentadoras do “esquenta” foram Linn da Quebrada e Magá Moura, frequentadora assídua das edições do festival pelo mundo.

A influenciadora digital pisou os pés no Brooklyn em 2015 para ter a sua primeira experiência naquele ambiente feito por e para negros. Sua vontade de conhecer se deu, inicialmente, pela estética visual, quando buscava referências de tranças box braids (tranças soltas) coloridas e chegou até uma foto de uma mulher que estava toda produzida no evento – algo comum entre os frequentadores.”Eu senti uma conexão ancestral de sorrir com os olhos, com a boca, de ficar amiga das pessoas. Meu interesse ali já nem era mais ver os shows. É um momento de enaltecimento da galera preta”, descreve à NOIZE.

Porém, nada superou sua ida ao berço da civilização, a África, com a edição em Joanesburgo, capital da África do Sul, dois anos atrás. “Foi o ápice do ápice do rolê preto. Imagine um festival 100% preto dentro da África. Foi um negócio além. Chorava, ficava arrepiada o tempo todo”, recorda. Para arrematar na sequência: “Desconhecia um espaço em que a gente pode ser livre. Livre de tudo, de julgamento, racismo de qualquer coisa ruim”. 

Mas nem só de Afropunk vive a cultura negra com um pé no punk. Há uma série de manifestações artísticas que ganharam a forma de evento de música no exterior: The Multiverse is Illuminated, em Oakland, Free Fest, na Filadélfia, e Punk Black, em Atlanta, já em Londres há o Decolonise Fest.

Nos últimos tempos, a relação de Spooner com o festival que ele mesmo criou está limitada a exibições de seu documentário, ao passo em que acompanha o surgimento de iniciativas independentes organizadas por negros e indígenas: “Embora eu seja muito crítico sobre que o Afropunk se tornou, também reconheço o valor de qualquer lugar que permita que os negros encontrem alegria. É importante. Qualquer lugar que promova políticas interseccionais, mesmo que esteja usando para vender produtos, não pode ser completamente descartado. Eu nunca diria a ninguém para não ir ao Afropunk se divertir ou não curtir as bandas que eles promovem”. 

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 104 da revista NOIZE, lançada com o vinil de “Assim tocam os meus tambores”, do Marcelo D2, em 2020.

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