Anelis Assumpção: “Acho limitado o que a mídia emoldura como pop”

11/12/2024

Powered by WP Bannerize

Avatar photo

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Lucas Murched, Rafael Rocha/Divulgação

11/12/2024

Uma enxurrada de estímulos atinge os cinco sentidos ao longo da trama de afetos e sabores salpicados no quarto disco de Anelis AssumpçãoSal (2022), ela conta, é salgado, mas também perfumado e azedinho, como certos fluídos corporais. É um disco azul, mas também laranja e com traços de todo o arco-íris. 

Um álbum feito na solitude do lar, mas não na solidão. No isolamento pandêmico, Anelis se conectou mais do que nunca. Invocou sua rede de relações e inspirações e movimentou um diálogo geracional. Questionou os gêneros impostos pela gramática. Descobriu um jeito novo de fazer um disco. Foi artista e foi mãe, irmã, filha, esposa, amiga. Foi mulher. E foi como foi, segundo a mesma nos conta a seguir.   

*

 

Sal é uma obra desta geração de discos feitos durante o isolamento social da pandemia de Covid. Apesar disso, ou talvez por isso, é o seu disco que mais traz parcerias convidadas. Fala um pouco sobre essa dualidade. 

Eu sempre sou muito coletiva nos trabalhos. Todos os meus discos são assim. Gosto de banda, gosto de gente. Eu preciso dos corpos. Então, senti muito, na pandemia, a falta física de encontro, de ensaio, de trocar, de tocar junto. E encontrei, na nuvem, a possibilidade de isso existir e acontecer. Foi muito orgânico, foi como foi. 

Na verdade, eu não sei se é dualidade. É quase complementar mesmo: o estado de susto, solidão, medo, isolamento, tudo que a gente sentiu, sendo complementado com a possibilidade de coexistir no mundo, mesmo que virtualmente, com tantas pessoas. Então, ter percebido também que a gente conseguiu encontrar, nesse momento de dificuldade, uma forma de ampliar a nossa frequência, foi muito gratificante. E acho que foi ficando cada vez mais sem sentido fazer um disco solitário. Seria como se eu não tivesse aprendido nada com aquela maluquice que a gente viveu na pandemia. 

Nesse sentido, foi uma mudança de lógica de produção? 

É, não sei se uma mudança, mas um aprendizado de uma nova lógica. Foi a primeira vez que fiz um disco sem banda, que não tinha que ter as mesmas pessoas em todas as faixas. Fora as parceiras, as produtoras, os músicos variaram muito. Acho que, com esse disco, consegui ouvir melhor e mais as ideias das canções, o que cada canção podia ser. Então não era “o baterista”, era “a bateria”. Se é uma bateria específica, é tal pessoa. Olhando mais para os instrumentistas como extensões dos seus próprios instrumentos. 

Quando eu tinha uma banda, e todo mundo tocava em todas as faixas, eu tinha menos sotaque. E é maravilhoso, eu amo os meus processos de banda. Senti muita falta, foi muito difícil para mim, mas a banda se desfez na pandemia. Essa dor, essa perda, também me possibilitou um novo aprendizado de lógica. Por isso, acho que não é uma mudança. Eu já conhecia a lógica de gravar disco com banda. Eu não conhecia essa outra, agora já conheço. Em um próximo trabalho, posso fazer com que isso seja híbrido, inclusive.

Cada faixa foi produzida por uma pessoa diferente. Como foi o processo de costurar tantos olhares de forma coesa?

Foi difícil. Mas tive que ir até o final do que eu estava me propondo, que era trabalhar com uma produção diferente em cada faixa, e ouvir as produtoras, trocar, ter escuta e respeito. A gente começou a gravar [quando] ainda estava em isolamento. Então, gravava cada um da sua casa e mandava. Foi muito mais trabalhoso do que ir para um estúdio resolver um instrumento em duas, três horas. Então, foi uma adaptação, eu tive que criar essa costura canção a canção para que o disco pudesse ter essa coesão, como você fala, tivesse uma característica de obra como um todo, de álbum. Que é como eu gosto de fazer. Não são vários singles, é um álbum. 

Então, eu precisava criar esses laços. Isso interfere na ordem do disco e em quem precisava estar dentro para criar as conexões. Quando chamei a Gabriele [Leite] e vi que teria uma música que seria só com violão [“Manadeiro”], falei: “Ai, eu acho que vai ser importante ter mais uma canção que seja mais minimal”. Eu fui pensando sozinha, criando essas amarrações. Na música da Maíra [Freitas, “Clitórias”], dava para pôr baixo, percussão, fazer um puta samba, que ia começando minimal e virando uma samba enredo, mas, na hora, eu falei assim: “Não dá pra ter mais nada”. Porque tem que conversar lá com o “Manadeiro”. Foi trabalhoso, mas foi divertido.

Um fio condutor do disco me parece que é o seu texto, a lírica, esta expressão de uma mulher brasileira urbana de 2023. E me soa como se a sua voz ecoasse as vozes de outras mulheres, como você vê isso? 

Tenho notado, desde que comecei a ter meu trabalho solo autoral, uma carência, de certa forma, no mercado, de identificações.

A gente se identificava com canções escritas por homens com os sentimentos femininos, desde ser deixada e ser traída a ser biscate, ser livre, ser Geni… A gente aprendeu a gostar de uma ideia que vinha de um corpo que não tem essa ideia, mas que teve o privilégio maravilhoso de experimentar este eu lírico.

Eu ainda quero conseguir ter a liberdade e a fluidez para criar as minhas próprias personas na escrita, meus alter egos. No começo, eu falava só de amor. Até ir criando exercícios, forçadamente. “Eu preciso falar de outra coisa”. Faço eventualmente o exercício de escrever em uma terceira pessoa, que não é fácil. Ainda não escrevi na primeira pessoa de um eu lírico masculino, mas quero. 

E comecei a perceber que as pessoas que gostavam e se identificavam com o meu trabalho, na maioria, eram mulheres. E que, cada vez que eu dava uma certa forma como possibilidade de um novo pensamento através de uma música, isso ficava maior, e as pessoas ficavam mais curiosas, mais conectadas e com mais identificações. E aí isso naturalmente foi sendo meu lugar de interesse de escrita, de explorar a língua, que é riquíssima, explorar as palavras e as rimas não óbvias. Acho que ainda estou entendendo. Este é o meu quarto disco autoral, talvez o que eu mais tenha parcerias, mas são musicais, as letras são minhas. É difícil ter uma parceria que seja o contrário, com letra de alguém e música minha. Acontece, mas é raro. E a gente tem um panorama, hoje, com muito mais mulheres compondo. 

O disco aborda temas densos da vida da mulher, como por exemplo a visceralidade do corpo expressada na figura de um mioma, e essa abordagem não é comum na música popular atual. Como você vê a importância de trazer estes assuntos, e você acha que há uma limitação temática no pop? 

Acho, totalmente. Acho super limitado o pensamento do que a mídia emoldura como pop. Tem quatro assuntos, no máximo: sexo, amor, sexo com amor e sexo sem amor. [Risos] Basicamente, são esses temas. E não que seja um problema, está tudo certo, porque é gostoso também, é bom. Mas a mulher é a maioria da população humana e, ao ter um corpo que passa da puberdade até o início da terceira idade se transformando, ela vai ser atravessada por isso. Ela vai ter problemas, ela vai ter soluções. 

Então, é tão rico o universo da mulher que, [a ausência dessas temáticas na música pop] não é um tabu, é uma construção assentada em um desenho planejado, que é organizar a sociedade de forma patriarcal. Como assuntos acerca do feminino podem ser minimamente equilibrados? Imagina, isso vai totalmente contra o projeto, né? Então, é mais do que um tabu, é parte de uma forma como as nossas sociedades se construíram, com essa ideia de restringir a mulher a um lugar. Se a mulher foi restrita à casa por séculos, é óbvio que o corpo, e tudo o que acontece no corpo dessa pessoa, é mais restrito ainda. Então, a gente vem aí, estamos chegando com uma nova possibilidade de existir, aproveitando que a gente é parte de uma geração que tem uma ponta de liberdade, mas ainda não é nem um pouco livre de verdade. 

Ver essa foto no Instagram

Uma publicação compartilhada por Anelis Assumpção (@aassumpcao)

Dentre o time de convidadas, há um grupo de artistas e amigas antigas, como Tulipa Ruiz, Ava Rocha, Céu, Iara Rennó e Thalma de Freitas. Mas há também representantes de gerações mais novas: Liniker, Luedji Luna, Mahmundi, Larissa Luz, Josyara, Jadsa, Maíra Freitas… O que você acha que mulheres de diferentes gerações puderam trazer para o disco? 

Eu já estava observando essas mulheres por tudo isso, por todos esses assuntos que a gente falou, por escreverem de outro jeito, por buscarem expressar suas composições através de novas palavras, novas organizações, novas métricas, diferentes pontos de vista, e observando como contemporâneas, independentemente das nossas idades. A gente está atravessando aqui, agora, o mesmo lugar, o mesmo mercado, as mesmas dificuldades ou facilidades. Então, há uma conversa contemporânea que tem a ver não só com a gente, tem a ver com toda uma geração que começa a buscar racialidade e começa a desenvolver e ter argumentos científicos acerca do feminismo. Todas essas mulheres me interessavam por essas razões também. 

A gente estava buscando as mesmas mestras, mudando a referência, saindo da ideia da filosofia de Sócrates, Platão e Foucault, com todo o respeito. Continuo amando e fico besta com estes pensadores todos, mas que lindo foi, em determinado momento da minha vida, poder quebrar essa lógica e descobrir a filosofia a partir de outros corpos, principalmente femininos e raciais. A filosofia oriental, a filosofia africana, saindo do eixo do pensamento branco europeu como o grande condutor do “ser ou não ser, eis a questão”. Todas as pessoas que estão no disco, a gente ficou amiga e se aproxima na música por causa disso, porque há um movimento líquido, geracional, de busca de novos caminhos para aliviar a angústia que é existir. E esse núcleo de pessoas que estão perto de mim agora, no disco e na vida, só aumenta. 

Sobre a temática urbana que está presente no disco, você sente que é São Paulo a inspiração ou seria algo além, as cidades em geral?

Não, eu vejo muito São Paulo, sim. Claro, as cidades, mas justamente porque São Paulo é isso. É aqui que está todo mundo e todo o mundo. Mesmo a gente tendo no disco quatro baianas, três moram aqui. Acho que a única pessoa do disco que é de São Paulo mesmo é a Céu e eu. Então, sim, tem uma coisa muito potente. Se a gente for imaginar que gênero as cidades teriam, eu acho que São Paulo é uma mulher. Sofrida, uma mulher no símbolo mais grosseiro, da capacidade de aguentar, de crescer, de se transformar, de ver sua natureza totalmente transformada em nome de “filhos”, e de gerar, né? Gera trabalho, dinheiro, possibilidade… 

Mas em relação ao trabalho, é muito triste um país do tamanho do Brasil ter só uma cidade que dá conta, principalmente nesse lugar das artes. Eu não tenho nenhum orgulho, tenho até vergonha. Mas acho que, sim, São Paulo é o grande pano de fundo por ser essa mina estranha, que aguenta um monte de coisas e vai abraçando. Sempre cabe mais, sempre dá pra ir mais um pouco. 

Você convidou a pintora Kika Carvalho para fazer a capa, como você imaginava o visual do álbum? 

Desde o [Anelis Assumpção e osAmigos Imaginários (2014), tenho gostado muito dessa ideia de cruzar as artes, aí chamei o Paulo Ito, que é um artista plástico. Depois, no Taurina (2018), a Camile [Sproesser] fez a capa e eu nem acreditava. Pra mim, encomendar uma tela é quase como pedir uma canção. E aí fiquei totalmente imbuída disso, as capas dos discos vão ficando cada vez menores no celular, mas não quis desistir dessa ideia por mais que o mercado vá forçando. E eu já gostava muito da Kika por conta da investigação dela, que chamo de perseguição do azul. Ela e outros artistas também usam muito o azul para ilustrar o corpo negro. Meu pai era bem preto, e aí, quando ele via um negão mais escuro que ele, falava: “O cara é mais preto que eu, ele é azul”. E eu amava, é uma coisa que eu só ouvi quando era criança. “É tão preto que é azul”. Azul é minha cor favorita. Enfim, milhões de viagens na minha cabeça. 

Encontrei a Kika, convidei pra fazer a capa, ela de pronto topou. E a gente estava conversando: “Ah, para onde eu vou? O que você visualiza?”. E eu falei assim: “Cara, eu não tenho coragem de te falar nada. Eu quero que você ouça e faça o que te fizer sentido dentro disso”. E ela falou: “Não sei, tá bom, então eu vou, mas você me dá pelo menos uma dica?”. E aí eu tinha visto essa tela dela, e falei: “Essa tela seria a capa. Ela quer dizer tudo que esse disco é. Se isso te ajudar…”. Realmente, pra mim, ela tem tudo. Tem um mistério. Ela está convidando ou está se despedindo? E lá embaixo, será que ela está menstruada? Será que ela está grávida? Será que ela é uma mulher trans? Será que tem uma pessoa chupando ela? Será que ela acabou de deitar e quer ficar sozinha? Será que ela está levantando? Acabou de acordar? Tem tanta pergunta que ela é todo mundo. Ela consegue ser, naquele absurdo de simplicidade, para mim, toda a feminilidade que transpassa no álbum. 

Aí ela falou: “Então é essa que eu vou dar pra você. Eu não vou conseguir pintar nada depois disso”. E ela achou engraçado, porque é um autorretrato. Ela me contou isso muito depois, porque estava envergonhada, tipo: “Eu não faço autorretrato, mas calhou de esse ser, e eu estou muito intrigada por que você escolheu esse”. Aí ela me contou a história desse dia, contou todo o processo da pintura. E só ficava mais lindo, mais encaixado exatamente com isso que eu via naquela personagem. O que é que está acontecendo ali, né? Aquela cama parece uma espuma de mar. E a cama é um lugar onde a gente relaxa, onde você está doente. No pior da dor, a gente vai para a cama. A cama como símbolo desse abraço para poder suportar. 

E sobre o título, como você chegou nesse conceito do Sal e o que você acha que ele reúne?

Eu cheguei na ideia do azul. O sal, para mim, é azul. Talvez por uma relação neurológica e imagética ligada ao mar, e essa loucura de, no montante, ele ser azul, e quando a gente pega é transparente, e o subproduto disso é branco. E também por toda a simbologia do sal, de ele estar contido no nosso organismo e como ele sempre se apresenta de forma líquida. Tudo que a gente põe pra fora é salgado: sangue, lágrimas, suor, gozo, esperma, ejaculação masculina e feminina. E quando a gente pensa em sal, pensa no sal de temperar.

É por isso, porque o sal é azul e, assim como a personagem da Kika, amarrava muito bem tudo o que o álbum é e quer ser e dizer. É uma palavra muito feminina, independentemente do gênero na gramática. Eu acho que o poder da palavra, o significado dela e, quimicamente, o que ela é no mundo têm um peso muito feminino. E de já ter sido, em algum momento, o que dava independência às famílias, o que fazia com que você pudesse ter ou não coisas. “Salário” vir de “sal”, receber o pagamento por um trabalho com sal pra temperar, é muito louco. 

E o azul foi a última cor a ser inventada. Porque não existia o pigmento azul, não tinha nada azul, só o céu e o mar. Então, não era uma cor. A cor é uma ideia e um desenvolvimento cognitivo que a gente cria neurologicamente. Você ensina pra uma criança que aquilo é azul e pronto, é azul. É muito legal isso, a cor é uma ideia. Então, não existia a palavra “azul”, não existia a ideia. E aí começa a existir em algumas civilizações de formas diferentes, começa a ter um tráfico de azul para criar pigmento, e aí, então, quem tinha roupas que podiam ser tingidas de azuis era a altíssima nobreza, o clero… Tem um azul que se chama ultramar, porque era o que eles faziam tráfico desse pigmento, que era o lazuli. Ao longo de muitos anos, isso foi sendo espalhado pelo mundo até que, quimicamente, começa a se reproduzir.

Mas é super interessante. Então, o sal também tem esse lugar para mim. Um poder de estar tão presente. A maior coisa que a gente tem é o céu, como é que o azul existia? Ele sempre esteve ali. O sal é a mesma coisa. É um nível de poder para a humanidade. E o azul também, era uma droga, as pessoas ficavam loucas, gastavam tudo que tinham para ter azul. Olha que loucura. Eu devia ser uma dessas, em umas 17 vidas passadas, eu devia ser uma maluca que deve ter participado da invenção do azul. Porque eu sou obcecada. 

E aí, juntei o azul que eu vejo no sal, essas histórias, essas maluquices mais pessoais mesmo. E gosto da ideia de o título do álbum não ser necessariamente algo que tenha sido extraído de uma canção. Desde o Amigos Imaginários isso já é um exercício. E eu acho que é mais um complemento, mais uma forma de amarrar.

Fazendo um exercício de sinestesia, que sabores a pessoa pode encontrar no seu álbum? 

Hm, além do óbvio, salgadinho? Azedo. Ácido, laranja, limão, mexerica, esse cheiro. Pitanga, esse cheiro simples. Um cheiro que remete a uma coisa gostosa, simples, que todo mundo já viu ou já comeu, já sentiu. Laranja, né? Laranjinha.

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 133 da revista NOIZE, lançada com o vinil Sal, de Anelis Assumpção, em 2023.

LEIA MAIS 

Tags:,

11/12/2024

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Avatar photo

Ariel Fagundes