NRC | Com o Apanhador Só, em Montevidéu

05/06/2014

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Revista NOIZE

Por: Revista NOIZE

Fotos:

05/06/2014

Fotos: Andréa Avila

Sentado na primeira fila da imponente (e cheia) Sala Zitarrosa, recordei a última vez que tinha visto o Apanhador Só ao vivo – em uma sala muito mais íntima – a da casa do vocalista e principal compositor do grupo, Alexandre Kumpinsky. O ano era 2011 e o grupo fazia as primeiras (e inusitadas) apresentações de divulgação de seu Acústico-Sucateiro, lançado naquele ano em fita-cassete. Enquanto os sonidos sintéticos de “Mordido”, a potente faixa de abertura de Antes que Tu Conte Outra, reverberavam pelo teatro, eu via uma banda diferente, muito mais raivosa e viril, acompanhada da segurança de quem já tocou em muitos palcos por aí. A sonoridade também mudara, graças aos recursos eletrônicos explorados com mais intensidade desde a gravação do álbum que capturou (anunciou?) como nenhuma outra obra artística (e pop) o zeitgeist do Brasil de um ano antes da copa do mundo de 2014: a indignação contra os modos viciados de governar o país, a nova presença dos black blocs e a velha violência policial, o posicionamento lamentável da imprensa manipuladora, as vitrines quebradas, o gás lacrimogêneo, os ônibus em chamas. A crítica brasileira percebeu o feito dos jovens porto-alegrenses, e o álbum têm recebido os mais variados (e merecidos) prêmios.

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Show Apanhador Só (1)

Na noite anterior, deambulando pelas ruas do centro de Montevidéu, conversei com Alexandre sobre a excelente recepção do disco. Estávamos hospedados no mesmo hotel, participando do mesmo evento: o III Sur/Sul, projeto de intercâmbio entre artistas gaúchos e uruguaios. Com uma Pilsen litrão na mão e a doçura que é lhe característica, Alexandre comentou orgulhoso da forte base de fãs que a banda conquistou no último ano (quando escrevo este texto, a fanpage do Apanhador já conta com quase 85 mil curtidas). Não apenas a crítica, mas também o público aprovou a ousadia musical e discursiva do grupo. Arte e política são, hoje, indissociáveis no trabalho do Apanhador, que não é apenas um radar dos tempos ou um comentarista dos acontecimentos: é um provocador de ações, um criador de situações.

As movimentações contra o aumento das passagens de ônibus; a adoção da bicicleta como meio de transporte e estilo de vida; as ocupações dos espaços urbanos em franco processo de privatização; o #nãovaitercopa e a Batalha do Tatu, estopim de uma série de protestos (intensificados após a repressão violenta da polícia). Reações a um conceito mesquinho de progresso. Apanhador Só tem a ver com tudo isso. Basta prestar atenção nas letras das canções. É inequívoco o desgosto com esse Brasil vendido. A aspereza dos ruídos eletrônicos, consequência lógica da sucata, resíduo do consumo de uma sociedade industrial, expressa a mesma crítica presente nas letras das canções: o ruído como metáfora da brutal cisão de classes no Brasil.

Show Apanhador Só (3)

Na deambulação noturna regada à Pilsen litrão, chegamos à Plaza Independencia com o gigantesco mausoléu do general Artigas e a enorme estátua do homem sobre o cavalo. Comentei com Alexandre que tinha lido em algum lugar que as representações do libertador do Uruguai sempre o exibem placidamente, sem jamais empunhar a espada – diferente de tantos militares imortalizados que assombram nossas cidades.  A natureza tolerante, pacífica e libertária do povo uruguaio estaria esculpida no bronze que reveste os monumentos a seus heróis. Um homem se aproximou, pedindo alguma coisa. Já conhecendo o assédio na Ciudad Vieja, esquivei-me, ignorando-o. Alexandre, no entanto, parou para ouvi-lo. Pedia apenas um gole da água que também carregávamos. Diante da reação atenciosa de meu interlocutor para com o homem, que pôde matar a sede, senti vergonha do meu próprio egoísmo.

Em outra conversa, no ano passado, quando entrevistei o músico na ocasião do lançamento do clipe de “Despirocar”, o tour de force em primeira pessoa pelo centro de Porto Alegre, tradução audiovisual precisa da disputa de espaço travada hoje na cidade, Alexandre expressou um pensamento que lhe andava na cabeça. Ele conjeturava se a ideia de homem cordial, conforme empregada pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda (sim, o pai do Chico) no clássico da sociologia brasileira Raízes do Brasil, ainda servia para definir o perfil psicossocial do brasileiro. Estaríamos perdendo nossa capacidade de afeto e convivência? Sem a cordialidade, perdemos o afeto, mas permanece outra peculiar característica do homem cordial: a incapacidade de distinção entre público e privado, que hoje parece ainda mais intensificada.

Show Apanhador Só (2)

Todos esses encontros ainda ecoavam em mim enquanto assistia ao show, sentado na primeira fila da Sala Zitarrosa, insights piscando aqui e ali em algum lugar no meu cérebro, tais quais luzes em um circuito elétrico. Em sua segunda apresentação em Montevidéu (a primeira havia sido em abril, no Festival Contrapedal), a banda executou todas as canções de AQTCO, intercaladas por algumas do primeiro álbum e versões sucateiras, um recurso lúdico que propicia bastante interação com o público – que se junta à banda em “Nado”, formando uma bela orquestra de panelas. O tom infantil se perde nos números mais contundentes, dando lugar a texturas ásperas e sombrias. A entrada de Diego Poloni no grupo, integrado após ter ajudado a produzir um disco marcado por experiências de captação e geração de sons, certamente contribuiu para a nova sonoridade do Apanhador. Poloni toca em momentos pontuais, deixando espaço para o guitarrista Felipe Zancanaro brilhar. Felipe está se revelando um experimentalista sônico da mesma linhagem de um Jimi Hendrix (sem a parte virtuose), John Greenwood ou John Frusciante, e fico curioso em pensar em que paisagens sonoras darão suas próximas aventuras musicais. A troca de instrumentos entre os músicos e a mudança de posições em cena produzem uma dinâmica que enriquece a performance. Os gadgets e as sucatas, incluindo a característica roda de bicicleta, tornam o palco visualmente interessante.

O baterista Foca parece uma escolha mais acertada para o grupo e o menestrel Kumpinsky, empunhando o seu violão, possui um raro carisma. Nas love songs, o grupo também se sai muito bem. Em meio ao caos da casa que pega fogo, há sempre a possibilidade do amor, o amor em tempos de revolução. Alexandre canta o crepúsculo do macho, fruto da convivência dos garotos com o novo feminismo, que prolifera nos círculos estudantis a partir da internet, um terreno que é bastante familiar para o Apanhador (lembremos que seu elogiado disco teve financiamento coletivo).

O som no teatro estava cristalino.

Show Apanhador Só (1)

A faixa que menos gosto, executada logo no início do show, me fez pensar no ingresso da Coca-Cola na canção brasileira, introduzida alegremente por Caetano Veloso, em 1967. “Líquido preto”, no entanto, ataca com ironia o caráter simbólico da bebida icônica do imperialismo, e está mais próxima em sua abordagem – um tanto piegas – da canção de Renato Russo sobre a alienação de sua geração. A diatribe contra a água negra do capitalismo revela algumas das preocupações dos jovens da geração do Apanhador, alimentadas por notícias postadas na mesma plataforma em que Tom Zé se viu condenado pela associação com o refrigerante. Se há alguma ingenuidade na crítica é necessário compreender que o amadurecimento político é um processo e os garotos estão apenas começando. Mas também é importante que eles fiquem atentos (e fortes) para que o ativismo não seja confundido com oportunismo – e que também não se deixem manipular por estratégias de objetivos eleitoreiros.

Em “Torcicolo”, quase no fim da apresentação, o jeitão introspectivo e tímido de cantar do baixista Fernão cria um ótimo contraponto à desinibição de Alexandre e faz pensar que ele é o integrante mais parecido com Holden Caulfield, o atormentado personagem principal de O Apanhador no Campo de Centeio, livro de onde eu sempre supus que a banda tirou seu nome (confere, produção?). Com o fim do show, o público aplaudiu de pé, pedindo “otra, otra”, e Alexandre perguntou se havia alguma sugestão. A pergunta retórica foi respondida rapidamente por gritos de “Maria Augusta” (uma garota na fila de trás, gritou “Maria Antonia!” e logo foi corrigida pela amiga): o hit que faltava. Achei a banda um pouco incomodada com a música, como se, em sua execução, não fosse empregada a mesma energia aplicada nas demais. No hall, na mesa improvisada para a venda de discos, os CDs eram bastante disputados.

2014-05-03 20.02.02

Na manhã seguinte, de ressaca e um pouco a contragosto em fazer o check out no hotel, encontrei alguns dos garotos, entre eles Felipe, com quem comentei o quanto tinha gostado do som gordo do show da noite anterior.

– Também, né! Te vi lá de cima do palco e tu tava atiradão na frente do subwoofer!

Preciso me posicionar mais aprumado sempre que sentar na primeira fila. Ao deixar o hotel, considerei se não havia algum sentido especial em ter assistido ao Apanhador Só em Montevidéu. Os uruguaios, propondo uma forma diferente de viver em sociedade, pareciam também estar fazendo experimentos com política, ruído e liberdade. Passando por uma parada de ônibus na Avenida 18 de Julio, senti o aroma adocicado da maconha misturado ao cheiro habitual dos cigarros. O domingo era de um azul bem claro e poucas nuvens podiam ser vistas no céu.

Leo Felipe é jornalista e mestre em artes visuais pela UFRGS.
Participou do III Sur/Sul, em Montevidéu, com a performance AUTACOM_YO, junto do artista Alexandre Navarro Moreira.

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05/06/2014

Revista NOIZE

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