As cidades e as canções Vol.2 : Leonard Cohen e São Paulo | Ismael Caneppele

16/07/2012

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Revista NOIZE

Por: Revista NOIZE

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16/07/2012

_por: Ismael Caneppele

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Nos encontramos por acaso, na avenida, quase ao meio-dia. Exatamente naquele dia, se ainda estivéssemos juntos, faríamos aniversário de tempo estado junto. Eu não sabia se você também lembrava. Eu não sabia se, internamente, você também comemorava o tempo exato em que ainda estaríamos juntos se tivéssemos continuado. Fazia sol na manhã em que nos encontramos, mas, mesmo assim, o vento que bate forte na parte mais alta da cidade esfriava nossas nucas.

No meio dia sobre a avenida meu corpo trazia os sinais claros de um cansaço advindo da noite anterior. Quando foi que envelhecemos? Quando foi que deixei de dormir sempre na mesma cama? As convivências, quando suportadas, assimilam cânceres. Por isso estamos saudáveis. “Pode parecer que sim, mas eu não estou confortável comigo mesmo”, falei antes que você pudesse me perguntar como eu estava. Você não perguntaria. Você não perguntou. “É complicado ser nômade no inverno”, confessei. Eu continuava procurando um lugar para morar. Internamente, talvez você também calculasse quantos anos faríamos se ainda tivéssemos ficado juntos. Na imprecisão das datas, optamos por um café.

A alameda desbota o outro lado do vidro. Estar aqui, é cobrar-me blindagem. Há dias em que, bebendo um café, sozinho, sinto no rosto a brisa morna da manhã de quarta-feira sob as árvores. Só a natureza me torna jovem. Deve ser por isso que nunca estou confortável perto de você. O tempo, aqui, também me transgride. Por isso nenhum de nós ousa agora comemorar o encontro, tampouco o aniversário.

O café desce-nos à garganta. Acidificamos. Você toma mais um comprimido. Quando foi que passou a ingerir tantos deles? Experimento um dos muitos que você me oferece. Não demora a fazer sentido. Tomados de uma súbita coragem química, confessamos. Seria aquele o nosso aniversário de uma coisa sem nome e que nunca assumimos. O comprimido bate na minha cabeça antes de você. Sugiro comprarmo-nos presentes de um aniversário de qualquer coisa que começou naquele exato dia. Há quantos anos atrás, fomos o que éramos? Mesmo não mais acreditando nessas coisas de aniversário, entendi que aquilo que comemoraríamos, por não ter nome, faria sentido. Tomei as escadas à procura do seu presente.

Certo do que fui, me dirigi à pequena sessão de vinis, no segundo andar. Alguma coisa dentro de mim me dizia que, cedo ou tarde, você apareceria por lá. Olhei algumas vezes para trás. Nenhum sinal seu. Por quais estantes você agora se perdia? O comprimido confundiu-me as pernas. O tempo me embaralhou. Songs Of Love and Hate surgiu entre todos aqueles discos que um dia fomos.

Diante do preço, constatei estar adquirindo hábitos paternos. Franzir a testa e me espantar, não importa o valor que ele tenha. A própria idéia de preço me incomoda. Me incomoda o pagar. Se preço é relativo, opto sempre pelas lojas de segunda mão. Sobre a fina película protetora que envolvia a capa, um adesivo trazia escrito: “1971, Songs Of Love and Hate, indisponível em vinil por duas décadas, é fortemente visto como uma das melhores aquisições do legendário cantor e compositor. Inclui os clássicos “Avalanche”, “Famous Blue Raincoat” e “Joan of Arc”. Remasterizado a partir das fitas masters originais da Columbia Records e prensado em vinil de alta definição, com desenho de capa original”.

Havia um objeto novo do outro lado do plástico. O disco, cópia original do que fomos, embalado, como nós, encapado, esperava para acontecer. Um objeto quando espera para adquirir memória, pulsa, não importa quão novo ele seja. Do outro lado do plástico, do outro lado do preço, prensado entre clientes na fila, o disco que um dia fui aguardava ser pago, para ser seu.

Comprei.

Teria comprado se não a negativa imposta pela moça atrás do caixa “operação negada senhor”. Eu não teria dinheiro para te dar o que fui. Não seria através dele, o dinheiro, que se daria o nosso encontro. Sempre elogiamos o roubo, normal que a realidade imitasse o crime e se desse através de um disco. Do outro lado do circulo de caixas coloridas, atrás das pequenas prateleiras de literatura francesa, você escolhia as cores do papel que envolveria o que estava reservado para ser meu. Você já tinha comprado o que, a mim, só me restava roubar.

A atendente devolveu meu cartão. Rachado. Azul. Ainda. Com o disco firme entre mãos, caminhei cada passo um pouco mais seguro na direção de você. À cada distancia vencida, um pouco mais, de novo, seríamos. Ladrões. Meus dedos, potentes de uma coragem que nunca mais ousei sentir depois de nós, arrancaram o plástico e revelaram o disco que nunca foi nosso, agora finalmente seu. Entreguei sem embalagem. A naturalidade do gesto era o pacote certo para envolver o objeto roubado convertido em presente.

Passamos um tempo em silêncio, observando um no outro a reverberação do objeto ofertado. O que aquilo queria dizer sobre nós era que tudo o que fomos depois de agora, subitamente deixava de fazer sentido. Secretamente, eu me perguntava o que devia fazer com nossos corpos depois de tanto tempo. A mim, caberia comer menos. Ainda haveria desejo sobre nossas peles, mesmo depois de tantos quilos de frustrações acumuladas? Qual seria o gosto da sua boca hoje? Há uma espécie anorética de velhice sobre tudo o que passamos juntos. Também não sei muito bem o que fazer com as bordas do meu corpo. Por isso fumo. Por isso chove. Hoje a cidade está fria.

Deixamos a livraria e entramos no buraco do metrô. Ninguém notou nosso roubo. Perguntei por onde andava a sua bicicleta. Ainda haveria músculo debaixo da sua calça jeans? A sua bunda ainda mantinha a consistência que um dia teve? As maçãs do seu rosto nunca estiveram tão flácidas. Nunca fez tanto frio.

Na plataforma subterrânea, aquecidos, subitamente perdemos a noção de qual sentido tomar. Se de volta ao que fomos ou se para o onde queríamos chegar. Rejuvenescemos sempre que o não saber toma conta dos nossos corpos. Subitamente estávamos nós dois, novamente, em uma cidade absolutamente desconhecida.

Éramos ambos, de novo, a primeira vez. A língua que fazia à nossa volta, voltou a não fazer sentido algum. O mundo, tendo voltado a ser pequeno, reconfigurou nossa posição dentro dele. Havia um presente a ser aberto. Havia um plástico a ser rompido. Decididos a estourar a mesma camisinha, tomamos juntos o mesmo trem.

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16/07/2012

Revista NOIZE

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