Em SALVE-SE!, Bebé atinge não apenas a posição de uma das promessas para o futuro da música brasileira, mas aparece como representante de uma realidade presente. A cantora, compositora e produtora paulista entrega ao público um segundo álbum extremamente pop, baseado em sonoridades eletrônicas, mas coeso em seu próprio conceito.
Bebé passeia por gêneros da contemporaneidade, como o house, o funk e o trap, ao mesmo tempo em que dialoga com o samba, o pagode, o indie, o soul, o jazz e o R&B. O trabalho, co-produzido pela artista e por Sergio Machado Plim, traz a cantora explorando diversos registros para sua voz, desde harmonias vocais, até flows característicos do rap.
A incursão de Bebé pelos beats, originando grande parte das faixas, dá o tom eletrônico do álbum, que é complementado por elementos orgânicos, como guitarras, baixos e percussões, introduzidos por Plim, pela própria artista e por músicos como Felipe Salvego, Anna Tréa e Everton Santos. SALVE-SE! ainda conta com as participações de Dinho Almeida, do Boogarins, na faixa “Recado Dado”, e do rapper carioca BK, em “De ponta cabeça”.
O álbum saiu pelo Coala Records, na última quinta-feira, 23/05. Conversamos com Bebé sobre o processo de produção do disco, suas expectativas e intenções com o novo trabalho. Confira a conversa completa abaixo.
Qual foi a visão de produção que tu e o Plim buscaram no álbum? Como é que vocês estavam entendendo a construção das sonoridades do disco?
Esse álbum surge de uma forma natural e confiante, porque a partir do primeiro álbum, a gente teve muita troca e acabamos fortalecendo a nossa relação de trabalho. No primeiro disco, acabei passando por momentos muito difíceis, relacionados à auto-confiança. Já esse segundo trabalho, parte da confiança, principalmente porque assino a co-produção. As coisas aconteceram de um jeito interessante: o eletrônico veio de forma natural, relacionado a minha criação de beats. As composições surgiram das paradas eletrônicas. É por isso que acabou virando um álbum muito mais eletrônico, mais sintético, mas ao mesmo tempo híbrido. Isso foi a parte do Plim, que sempre quis ter esse equilíbrio colocando outros elementos. Quero me relacionar, ser ouvida, por pessoas da minha idade, e talvez fomentar a cena que está afim de estar aberta, principalmente a sonoridades que estão nos ouvidos dos jovens, como o funk e o trap. Foi um movimento natural, mas que fez muito sentido estrategicamente e esteticamente com a minha trajetória, como uma mulher preta de 20 anos, com um álbum para mulheres pretas de 20 anos e para pessoas que querem ouvir música eletrônica conceitual.
Esse hibridismo entre os elementos eletrônicos e orgânicos cria uma música que não tem um gênero pré-estabelecido, mas carrega influências do R&B, hip-hop, funk, indie, house, etc. Como foi explorar esses diferentes gêneros musicais?
Foi um desafio imenso contar a história desse disco, porque eu sou uma pessoa, a Isabela, que escuta muitas coisas diferentes. Desde o indie ao rap, passando também pelo jazz. Então, foi tentar amarrar tudo isso que eu curto e pesquiso desde criança. Acho que os públicos desses gêneros conversam entre si. O ponto inicial é, com certeza, me aprimorar mais no rap, através da minha conexão com o BK, e demarcar o meu lugar no indie. É muito urgente as pessoas negras estarem em ascensão dentro dessa cena. Foram esses dois pontos que conectam a história do álbum, quero conectar esses esses dois movimentos que são tão importantes. Até poucas semanas atrás a gente não tinha ordem do disco, porque, mano, como que a gente vai contar essa história? Como posicionar as músicas para que as pessoas ouçam e o disco já bata nelas logo de cara? Isso é muito doido, foi um processo diferente, porque no primeiro disco, pensei muito mais sobre fazer e pesquisar o que eu sinto. Agora, a gente pensa muito mais em como comunicar, mas sem perder a essência do que a gente gosta de fazer. Pensar o público em primeiro lugar foi muito importante.
O álbum soa muito coeso e homogêneo. O que tu pensava enquanto criava as músicas?
A gente tinha um plano, mas muitas coisas surgiram no caminho. Algumas músicas que eu já tinha prontas não entraram e outras surgiram no estúdio. Tinha essa regra: quando era um lance muito eletrônico, a gente tinha que equilibrar e trazer os elementos orgânicos. A gente sempre bateu nessa tecla, de trazer uma certa latinidade. Por mais que a gente tenha acesso ao que rola lá fora, é um álbum do Brasil. Então, trouxemos esses elementos, ritmos, divisões. O ponto de encontro foi conseguir equilibrar o eletrônico com o orgânico. No single, por exemplo, comecei com um beat de house. Tinha esse lance muito denso da harmonia e até da letra, que se você for analisar é um pouco triste. Então o Plim falou: “Vamos botar um pouco mais para cima. Vamos trazer uns elementos de samba, de pagode”. Enfim, já tinha um baixo que conversava com o jazz, eu tinha um sample de tabla e nós fomos vendo onde colocar cada coisa. E sempre que caía em um lugar, Serginho ia lá e virava de ponta-cabeça, chacoalhava e conseguia trazer esse equilíbrio. Eu sou totalmente caótica dentro dos processos e ele consegue deixar as coisas mais equilibradas.
A tua voz tem um lugar central no álbum e passeia por vários registros diferentes. Como vocês pensaram a voz no álbum?
A voz entrou como algo primordial. A gente pensou que a voz tinha que estar presente a todo momento, seja em um trecho mais instrumental, seja cantando. Isso é algo que eu venho querendo trabalhar cada vez mais. E particularmente, eu tenho intimidade com ela desde pequena. Além da produção, o meu principal recurso é a minha voz. Quero explorar o meu timbre, tanto em regiões graves, quanto em médias e agudas, mas também ritmicamente. Vamos dizer que temos a voz como se fosse a regência de toda a música. Isso é algo que eu venho querendo trabalhar cada vez mais. Principalmente depois da experiência do primeiro disco, a gente trabalhou a sonoridade pensando na voz como elemento principal. Acho que o segundo disco tem uma cara pop muito por conta disso, de pensar na voz a todo momento, independente do que acontece na música. As cantoras pop fazem muito isso – e quero fazer isso cada vez mais. Então, tem isso mesmo, você escuta a minha voz a todo momento, seja sampleada, em um synth, ou como na introdução, que só tem voz, sem instrumentos.
Quero falar das letras. Por mais que as músicas falam de relações com os outros, o centro da coisa é a autoestima, o amor próprio e o que tu sente em relação a si mesma dentro disso. Queria que tu falasse um pouco sobre isso, por favor.
É o lance do reflexo. Quando a gente aponta, estamos ressaltando alguns problemas que estão dentro de nós. É muito mais sobre a gente do que sobre o outro e por isso que é legal. Quis trazer abordagens novas dentro dos conflitos, tanto em relação ao amor, quanto a afirmar as minhas certezas, a minha intuição. Foi um momento de escrever sobre quem eu quero me tornar no futuro. Porque no dia a dia eu não sou essa pessoa que entra em conflito, que fala o que pensa. Isso é no meu particular. Eu sou o contrário, aceito muitas coisas, então o disco veio para me dizer quem eu quero me tornar no futuro e qual tipo de relação devo filtrar dentro da minha vida. É uma mensagem sobre quais relações a gente deve cultivar dentro do nosso mundo. Dentro dos temas, acho que tem o desapego em relação a morte de algo. O álbum fala sobre seguir a vida, não perder o chão, não se desestabilizar, viver mais tranquila, ver as coisas de outras perspectivas. As coisas acabam, mas eu não necessariamente preciso entregar a minha vida por conta disso. Eu tenho estudado sobre a não monogamia, entendendo que ela não tem a ver só com o lance amoroso sexual, mas uma forma de tratar as relações. Por isso o nome do disco é “SALVE-SE!!”. A referência da capa, que eu estou de ponta-cabeça, é exatamente sobre isso, de enxergar a vida de outra forma. O maior desafio da vida é se relacionar com outros seres humanos.
Legal você falar sobre o álbum refletir quem você quer ser no futuro. Porque você ainda é muito nova em relação ao resto da galera dessa mesma cena e está entregando um trabalho super relevante. Como você enxerga o amadurecimento pessoal e artístico entre os dois discos?
Sim, com certeza, tanto que tudo que foi escrito pensando no futuro. No primeiro, eu estava passando por um momento muito difícil, onde tudo virou de ponta cabeça. Só que ali eu me encontrei, consegui entender um pouco mais de quem eu era, do que eu representava. Nesse segundo disco, eu tenho mais serenidade. Quando as pessoas chegam na minha idade, começam a viver conflitos, e a gente vai conseguindo aprender a mudar o nosso comportamento em relação a essas coisas. Tentar se posicionar mais, entender que a gente não tem controle sobre tudo, conseguir separar necessidades humanas reais e necessidades impostas pra gente. Espero que as pessoas escutem o disco e pensem: “Bora pra jogo! Bora pra vida sem medo”.
O disco tem um feed com o Dinho, do Boogarins, que vai mais para esse indie e da presença de pessoas pretas nesse cenário. E ao mesmo tempo tem o BK, que é um gigante do rap. Você pode falar a respeito das colaborações?
Tanto o Dinho, quanto o BK se aproximaram de mim pelo lado da música. As presenças deles no disco são muito importantes. Vejo o Dinho como uma figura essencial hoje em dia, tanto no Boogarins, quanto no projeto solo dele. São dois músicos, poetas, ao mesmo tempo, são meio até profetas. Tanto o Dinho no indie, quanto o BK no rap. E são duas pessoas muito autênticas. Botam as fichas na mesa: “Isso aqui é meu sonho, minha lírica, meu estudo, minha pesquisa”. São caras muito importantes e essas duas participações fizeram todo sentido, em relação a quem eu sou e como quero ser como artista. Do rock psicodélico ao rap, ao hip hop.
Pra fechar, quais são as tuas expectativas em relação ao alcance do álbum?
A minha expectativa é que o álbum chegue um pouco mais na comunidade preta e no público geral, que a gente fortaleça o meu nome, que as pessoas vão em todos os shows e saibam cantar as letras. Isso rolou bem no primeiro álbum e acho que esse segundo veio para para expandir. Quero fazer muitos shows. Espero que a curadoria brasileira abra os olhos para artistas assim como eu, que estão nessa cena e querem botar uma banca. Então, a expectativa é isso: me comunicar muito com o público, principalmente com a galera preta. Quero que saibam que eu existo, que estou aqui e que talvez eu seja um refúgio para sair um pouco do que é predestinado em relação a certos gêneros musicais. Quem quer ouvir algo mais fluido, eu estou aqui. Enfim, não a galera precisa só ouvir os gringos, pode ouvir eu, ouvir o Bruno Berle. A gente tem que valorizar pessoas que estão procurando autenticidade.
LEIA MAIS