De Olho Nelas | A força furiosa de Urias

23/03/2022

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Gabriela Amorim

Por: Gabriela Amorim

Fotos: Ernna Cost/ Divulgação

23/03/2022

“Eu estou prestes a me tornar uma pessoa horrível/ Apesar de nunca ter pensado que era boa”, é a única frase que Urias, 27, sussurra, em inglês, na faixa “Intro”, do disco de estreia FÚRIA (2022). A cantora e compositora já dá a letra do que está por vir nas músicas seguintes, de composições intensas e sonoridades afiadas.

Apesar de obter uma trajetória musical recente, a mineira exibe performance experiente, com infindáveis horas de ensaios, em seu projeto autoral. Sem receitas mágicas, seu início foi marcado por covers de cantoras como Alcione e Azealia Banks, sendo o maior sucesso com regravação da faixa “Meu Mundo É o Barro”, de 2008, da banda carioca O Rappa.

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Retornando aos palcos desde novembro, quando se apresentou em Salvador, na 1ª edição do festival internacional AFROPUNK, Urias se encontrou atônita quando observou a plateia cantando suas músicas, após longo período realizando apresentações em formato on-line: “Quando eu subi no palco e comecei a cantar a música e todo mundo cantou junto, eu fiquei bem chocada. Eu não tinha tido essa experiência, então o AFROPUNK é um momento que eu não vou esquecer”, diz a cantora.

Afirmando que está pronta para tomar quantas doses de vacinas forem obrigatórias pelo governo, a artista deu o pontapé inicial na turnê de seu disco, onde apresentou na casa de shows Cine Joia, em São Paulo, com capacidade máxima.

O show, que teve de ser prorrogado após aumento no número de casos de Covid-19, aconteceu no começo de fevereiro e mesmo abalada, Urias soube reverter a situação: “Por mais que eu saiba que adiar o show vai além de qualquer pessoa, eu fiquei um pouco abalada, mas também me deu muito gás para voltar quando as coisas vieram. Deu mais tempo de ensaiar, mais tempo do álbum, porque as pessoas chegaram com mais intimidade com as músicas, então foi incrível. Eu olhava o Cine Joia cheio até lá em cima, foi muito bom”, assume a artista exibindo um sorriso largo.

Urias iniciou a carreira fazendo covers de artistas como Alcione e Azealia Banks. (Foto: João Arraes/Divulgação)

Marca registrada

Cativada pelo mundo da moda pela artista Lady Gaga, de quem é fã, hoje Urias conta com seu stylist, André Philipe, que tem auxiliado a cantora na construção, em conjunto, de uma identidade que já tem a cara da mineira. Deslumbrante em cada trabalho que anuncia, Urias confessa que tudo sempre é aprovado por ela no final: “Eu e o André sempre conversamos para não fugir da estética do álbum, e assim somos coerente com todo o projeto, mas eu acabo decidindo muitas coisas”, quando questionada se era uma pessoa fácil de agradar, a artista respondeu ao meio de gargalhadas: “Ah, eu acho fácil [risos], mas é porque a gente vai conversando durante o processo. Eu não falo ‘é isso e ponto’, eu chego para ele com moods, com a mensagem que eu quero passar para o público, e fico perguntando o que ele acha, se vai dar certo”.

A identidade de Urias também está intimamente ligada ao trabalho de sua equipe, no qual a cantora sempre faz questão de ressaltar seu staff, corrigindo até quando fala em singular e mudando para o plural: “Eu olhando para trás agora, vejo que a gente se virou super bem. Um grande obrigada a todo mundo que trabalha comigo, porque a gente se virou muito bem, tanto que saiu um álbum e clipes incríveis, que tenho muito orgulho de ter feito parte de tudo”, ressalta Urias.

“Eu não diria que eu tive que revisitar as coisas para criar este álbum, porque toda hora isso é lembrado para a gente. Eu não esqueci porque não me deixaram esquecer nada.”

Urias

Ressignificando a fúria

Movida por levar questionamentos, Urias decidiu que era o momento de mudar o jeito como as pessoas viam o sentimento da raiva e se propôs a transmutar a sensação nas composições das faixas de seu disco. “A raiva é um sentimento que quase ninguém fala sobre, quase ninguém imagina o que pessoas como eu sentem e passam, porque colocam muito a gente num lugar de dó, ou de superação, de força, e ninguém imagina a raiva que a gente passa por coisas que não dependem da gente. Chega um momento da sua vida em que você vê que tudo ao seu redor vem rodeado de muito medo, desde sair de casa ou ir a um encontro. Aí, teve um momento que eu parei e falei: ‘tô cansada de sentir medo’. E isso foi se tornando uma raiva dentro de mim”, afirma a cantora.

Admitindo que não foi fácil escrever as faixas, Urias exibe que já é um talento, mas que ainda assim, se encontra em momentos de solidão: “As pessoas ligam esse sentimento como uma coisa ruim, mas não é. A faixa ‘Tanto Faz’ é meio que a raiva da solidão, é a raiva de ter que estar sozinha e a culpa não é minha. Mas é a solidão imposta para mim, para o meu tipo de corpo, de recorte, então é meio que isso, todas as músicas ou foram levadas para aquele ponto através da raiva, ou chegaram naquele sentimento.”

Escrevendo as músicas no final de 2019, e criando mais confiança no processo de composição, Urias apresenta uma variedade de gêneros nas canções, mesclando o trap, com reggaeton distorcido, e unindo também o pop ao psicodélico. Na faixa “Foi Mal”, a cantora faz evidente referência a Kevin Parker, do Tame Impala, com psicodelia e baixo marcante. Falando sobre o processo de criação, ela também afirma que não precisou ir tão longe para acessar o sentimento de fúria: “Eu não diria que eu tive que revisitar as coisas para criar este álbum, porque toda hora isso é lembrado para a gente. Eu não esqueci porque não me deixaram esquecer nada. Toda hora me é lembrado muita coisa, seja apontamentos sobre o meu corpo, intelecto, gênero. Sobre todas essas coisas, acho que eu tive sim que acessar o sentimento, mas não é algo que já estivesse esquecido”, evidencia Urias.

“As pessoas ligam esse sentimento [raiva] como uma coisa ruim, mas não é.” (Foto: João Arraes/Divulgação)

Seleção de feats

Reunindo nomes do mundo da música que tiveram projetos lançados no último ano, com exceção de Charm Mone, que lançou um EP em 2020, a artista afirma que usou dois critérios de seleção para escolher os músicos. O primeiro foi acreditar no futuro da carreira dos artistas, e o segundo eles compartilhassem a música com a cantora, como Urias afirmou: “Eu quero que no futuro eles tenham mudado o caminho musical do país, independente de sucesso ou números. Tipo assim, todo mundo que eu coloquei no álbum eu acho que é o futuro do Brasil. Outro critério, além de acreditar muito no trabalho deles, era que eles partilhassem do mesmo sentimento da música quando gente estivesse junto. Então antes de escolher, eu sentei com eles e conversei abertamente.”

Encontros inesperados também acabaram sendo um método de escolha para a cantora. Durante parte da turnê de Baco Exu do Blues, Urias realizou participações em shows de algumas cidades, quando conheceu o artista Vírus: “Eu conheci o Vírus na turnê do Baco, e quando conheci o trabalho dele eu fiquei ‘Meu deus do céu’, porque é uma junção de arte, performance e protesto, com trap. Então aquele momento eu já sabia que tinha que ter ele no meu álbum, mas fui escolhendo os artistas ao longo dessa caminhada.”, finaliza a cantora.

Parceria entre amigas

Pronta para uma turnê na Europa, ao lado da amiga Pabllo Vittar, Urias reconhece que não planejava nada fora do Brasil no ano de 2022, mas que banca todo o sucesso de ser uma artista internacional. Com apresentações marcadas nas cidades de Dublin, Warsaw, Milão, Londres, Amsterdam e Paris, a cantora irá abrir a turnê de Vittar, chamada “I am Pabllo“, cantando músicas do álbum Fúria (2022).

“Se durou até agora, vai durar para sempre”, diz Urias sobre amizade com Pabllo Vittar. (Foto: João Arraes/Divulgação)

A amizade de longa data já teve momentos quase que premeditados, onde as duas cantavam na casa de amigos e no campus da faculdade, em Uberlândia (MG), e por seguir o mesmo sonho, a dupla tinha um pacto de sempre apoiar a carreira uma da outra, independente de sucesso. “Eu e a Pabllo nos conhecemos em Uberlândia, e as coisas foram acontecendo, e nós continuamos uma na vida da outra. Nós compartilhamos os mesmos sonhos, então a gente tinha muitos assuntos, muitas coisas, a gente ficava cantando na casa dos amigos. Por exemplo, eu entrei na faculdade e ela também entrou, e foi muito louco, porque na faculdade a gente cantava juntas no intervalo. Nem fazíamos o mesmo curso, mas a gente se programava para se encontrar. E nós tínhamos muito a coisa de quem acontecer ia puxar a outra, e foi isso que aconteceu, querendo ou não [risos]. Se durou até agora, vai durar para sempre.”, finaliza com um largo sorriso no rosto.

Fenômeno findado

Na faixa “Interlude” Urias cita, em áudio enviado para amiga, que números e quantidade de seguidores não dizem nada, mas no caso dos números do álbum de Fúria (2022), eles falam muito. A artista conquistou o 1º lugar de discos mais vendidos no iTunes Br, entrou na lista do top 40 viral do Spotify, com o single “Tanto Faz”, e foi a 1ª mulher trans da história a colocar duas músicas, do mesmo disco, simultaneamente no top 15 do iTunes BR (“Tanto Faz” e “Foi Mal”).

Questionada se os números em sua carreira não significam nada, Urias respondeu: “Eu te digo que, nesse álbum, eu não fiz nada pensando em números, nada, nada, nada. Quando eu pensei em número, foi que eu tinha que ter repertório para cantar em show, porque eu tinha quatro músicas [risos]. Vendo agora, os números são uma grande confirmação da qualidade do meu trabalho, não que se não tivesse não teria uma comprovação, mas é muito gratificante ver que em nenhum momento eu pensei em número e o álbum alcançou muitos lugares”.

Sem falsa despretensão, a artista assume que ter lançado o álbum foi algo que a colocou em outro patamar: “Eu sabia que eu já era [cantora]. Antes de construir o álbum eu já sabia que eu era. Então foi bom para as pessoas entenderem do que eu sou capaz, de onde eu posso chegar, se questionarem qual será o próximo passo, não sou a galera da falsa modéstia. Depois do lançamento, as pessoas passaram a me respeitar mais, não que eu fosse desrespeitada, não é isso, mas no sentido de que as pessoas estão levando mais a sério o meu trabalho”, diz Urias.

De toda forma, com grandes números ou não, ela já é um fenômeno pronto.

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23/03/2022

Gabriela Amorim

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