O reforço da ancestralidade junto à contemporaneidade pode ajudar a abrir um belo caminho para o futuro. É assim que a indígena Kaê Guajajara, 28, está trilhando sua carreira no mundo da música. Contrariando estatísticas e suposições, a cantora nasceu em uma aldeia indígena não-demarcada, onde viviam Guajajaras e Tupinambás, localizada em Mirinzal no estado do Maranhão, e é cria do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.
Se lançando na música oficialmente desde 2019, a artista já divulgou três EPs, sendo o trabalho mais recente o álbum Kwarahy Tazyr (2021), que teve estreia muito bem recebida em setembro passado. Considerado o primeiro álbum visual feito por um indígena do Brasil, ele já conquistou o Prêmio Arcanjo de Cultura.
Com som envolvente, a artista canta o álbum em português e em ze’egete, a língua originária dos Guajajaras. Longe de ser algo comum, a artista une vários gêneros e admite que criou sua própria definição: “Hoje em dia, eu me considero MPO, música popular originária, que é um estilo que eu criei para todas essas coisas que as pessoas tentam me encaixar falando ‘Você é rapper, você é pop’”.
Em letras que marcam o questionamento de um Brasil atual, suas canções carregam uma forte mensagem política, enfatizando a luta pela demarcação de terras indígenas, a crítica ao agronegócio e ao sistema de políticas públicas para as populações marginalizadas.
Rap como influência
Questionada sobre suas referências musicais, a artista afirma que escutava o que era tocado na favela, local onde se estabeleceu ainda na infância. “Não tenho muitas referências, mas eu já escutava o que tocava na favela, que era Racionais MC’s, o grupo me inspirou nessa questão de expressar através da arte o que estávamos vivendo”.
Ainda na adolescência, a cantora fez parte de uma banda de rap chamada “Crônicos“, onde atuava com mais dois amigos angolanos. “Eles vieram da Angola muito cedo e já tinham essa banda, eu entrei depois, então nós cantávamos sobre as violências que a gente vivia na Maré, e colocava isso no em forma de rap.”
Com ritmo de criação já compreendido, Guajajara admite que também tinha o olhar para fora do país quando cita que escutava Mayra Andrade e IAMDDB. Entre suas composições atuais, a cantora assume que sonha com suas melodias: “Eu acabo sonhando com melodias, com formas de falar, frases, e logo que acordo eu busco escrever ou ligo pro produtor e já falo com ele.”
Confira os selecionados no Edital Natura Musical em 2022
Indígena favelada
Vivendo em contextos diferentes durante sua infância, a cantora se auto intitula como “indígena favelada” na faixa interlúdio de seu álbum. Na mudança, de quase 3 mil km de distância, entre o município de Mirinzal e a favela da Maré, Guajajara teve que se entender como pessoa e se reafirmar como indígena, em conversa ela afirma: “Indígenas como eu, que nasceram em aldeias não-demarcadas e foram para favela, ou que já nascem nas favelas, não são menos indígenas, do que o indígena que vive em aldeia”.
Estudando sobre a colonização brasileira durante sua infância e sobre um suposto descobrimento do Brasil, Kaê só foi tomar consciência política quando conheceu a Aldeia Maracanã, em 2016. “Mesmo sendo afetada por várias consequências da colonização, eu existo. Até eu ficar velhinha e eu vou falar ‘indígena favelada da terceira idade resiste’, porque todas essas caixinhas que o colonizador tenta colocar é para que a gente não tenha acesso a políticas públicas, só afastando a gente e o tiro que pega lá na terra demarcada de fazendeiro, também está pegando aqui dentro da favela, porque estamos sendo atingidos de diversas formas.”
Pegadas seguintes
Em tom animado, Kaê comenta sobre seus futuros trabalhos que chegam ainda neste ano e revela que irá lançar uma faixa inédita com Jonathan Ferr, “Vou dar um spoiler porque vou estar no álbum do Jonathan Ferr, não vou falar o tema porque já vai ser demais, mas é um feat incrível, de muita troca”.
Contemplada no edital da Natura Musical, Guajajara irá realizar uma turnê pelo Brasil a partir de junho, onde vai passar pelas cidades de Manaus, Maranhão, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Igualmente será gravado um documentário, registrando os bastidores das viagens.
Com futuro próximo para o lançamento do restante de seu álbum visual, a artista comenta que está feliz pelo reconhecimento: “Por conta da necessidade que a gente [indígenas] têm de ter essa mensagem rodando pelo Brasil, nós víamos que não estavam sendo contratados shows de indígenas. Quando contratavam eram vários indígenas pelo preço de um não indígena, então não tínhamos nosso reconhecimento quanto artistas.”, declara a cantora.
Com shows marcados para o mês de abril na Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro, e nos Sescs de Bauru e Sorocaba, no estado de São Paulo, Kaê Guajajara segue fazendo um trabalho minucioso e com certeza atualizará ainda mais a música brasileira.
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