Em depoimento inédito no Brasil, Damon Albarn falou sobre seu primeiro disco solo e como memórias, natureza e tecnologia dialogam nas faixas.
De fato, a maioria das composições de Albarn, seja com o Blur, Gorillaz ou qualquer outro projeto, são autobiográficas. Mas Everyday Robots é a tradução mais pura de quem é Albarn hoje. Dos temas que ele aborda nas canções ao estilo vocal do álbum, tudo se resume ao melancólico Albarn cru, sem heterônimos ou máscaras.
Os melhores momentos do depoimento inédito de Albarn no nosso país estão logo abaixo:
Sobre mergulhar dentro de si
A ideia de um disco solo é de completa rendição, porque nada é desnecessário, um tipo de coisa que você faz completamente, produz completamente, procura materiais, constrói ideias com esse material e apresenta tudo por você mesmo. Eu queria fazer algo em que não estivesse me escondendo atrás de outro nome. Eu não sei por que, apenas aconteceu desse jeito. Eu poderia ter feito esse disco solo antes, só não tinha escolhido fazer desse modo. Você sabe, na maioria das vezes eu me divorcio de minha própria música e a produzo. Mas, dessa vez, eu decidi ser, a maior parte do tempo, produzido por alguém chamado Richard Russell e me permiti um certo luxo de mergulhar em mim mesmo.
Sobre canções autobiográficas
Quando você ouvi-lo, você vai se dar conta de que é a minha voz cantando, provavelmente sobre mim, porque é o meu próprio nome que está na capa do disco. Mas a maioria das minhas músicas, com algumas exceções, é de algum modo autobiográfica também. “Parklife” é meio autobiográfica também, mesmo que pareça uma canção comum (risos).
Sobre a voz e seu momento
De alguma forma, vai ser uma experiência de libertação tocar esse disco ao vivo. Eu venho cantando músicas de vinte anos atrás, algumas delas eu me sinto até desconfortável de cantar. Mas esse disco sou eu no agora, vocalmente. Não tem muitas notas altas, é mais um álbum barítono do que qualquer coisa. É onde está a riqueza na minha voz no momento.
Sobre infância e uma porta azul
Em “Hollow Ponds”, quando eu estava brincando com a ideia de fazer um álbum desse tipo, eu fui para Leytonstone na mesma semana e tirei muitas fotos, fiz pequenos vídeos, caminhei pelas estradas e ruas além de Colchester. É muito interessante o que acontece, e eu falo disso nessa música: em 1991 eles destruíram metade da estrada e ela fazia parte de como eu me reconhecia, das memórias que eu tinha da minha infância. Agora me sinto um gigante por essa estranha noção de espaço que eu tinha na infância. Metade do meu caminho já se foi, mas a minha casa se mantém igual como sempre foi. Eu me lembro de uma porta azul e ela tem essa mesma porta, não trocaram. Eu fiquei olhando pra ela, tirei algumas fotos, e então um cara de gravata saiu de dentro da casa, me olhou e eu dei ‘oi’. Eu a estava olhando da estrada e tendo aquele momento mágico.
Sobre o ouvinte e a narrativa
Nós passamos alguns anos existindo no mesmo espaço sem conversarmos. Eu estava brincando com uma das primeiras músicas [de Everyday Robots] e nós gravamos o disco Monkey: Journey to the West. E eu estava muito impressionado com a gravadora [XL Recordings], o dono e as pessoas que trabalhavam lá, e desde então Richie tem sido um ótimo amigo e colaborador na DRC Records e obviamente a maior coisa que fizemos juntos foi o disco de Bobby [Womack], The Bravest Man [in the Universe]. Então nós vimos que gostávamos de trabalhar juntos. Mas eu sou um produtor também e não iria só sentar e não fazer nada. Eu achei muito bom ter alguém com novas ideias e sabendo o que queriam atingir e aonde ir. Eu gostei muito de colaborar e não é só um CD com o meu nome nele, e muito mais que isso. Acho que a narrativa é muito importante nesse disco, e Richie soube balancear as histórias muito bem. Ele dizia ‘como podemos deixar essa frase mais clara?’. Não há nada que fique entre a relação do ouvinte e da narrativa.
Sobre Soul Music
É uma grande parte de mim. As pessoas não associam muito com meu trabalho com o Blur, mas se você pensar no Gorillaz e pensar nas coisas que eu fiz em vários países africanos e tudo no que eu me envolvi é muito do que eu tenho feito ultimamente e é a maioria das músicas que eu ouço quando estou sozinho. Eu vejo a soul music como algo esotérico ou algum tipo de mantra. Marvin Gaye, Nina Simone, eu sou péssimo com nomes… Ray Charles. Eu amo a música gospel, Harley Jackson e outras coisas que a minha vó me mostrou.
Sobre cantar
Você não pode simplesmente cantar, algumas pessoas tem naturalmente uma bela voz desde pequenas, pra mim é um trabalho em processo e que reflete as minhas experiências. Mas, definitivamente, minha voz esta mais interessante com o tempo. Eu amo cantar.
Sobre polegares e pequenas telas
Quando eu comecei e tive meu primeiro sucesso e o que veio com ele, não existiam celulares com câmeras. As fotos eram tiradas em eventos por alguns protótipos de paparazzis e por algumas pessoas aleatórias que tinham uma câmera. Nossas rotinas eram diferentes. Hoje em dia, parece que eu não posso me mexer sem que alguém tire uma foto disso. Eu sei que todos estão tendo essa experiência, desconstruindo nossa essência com esses componentes robóticos. Tem uma frase em “Everyday Robots” que diz “Everyday robots just touch thumbs” [referindo-se ao uso constante do nosso polegar para tocar as telas dos celulares]. É essa alienação gradual e sutil que está tomando nossas vidas. As “standing stones” [em português, menires] da música são as pessoas que estão lá para conversar e ficam ali na estática dos celulares. Há uma beleza nisso, mas também há isolação, que vai direto pra melancolia. As “standing stones” e os “robots” dão aquela melancolia inglesa que é uma coisa que eu sou um tanto obcecado.
Sobre o material desconhecido
Eu tenho várias demos. Algumas delas são de 20 anos. Eu tenho muitas músicas que não usei ainda. É isso o que eu faço, eu escrevo músicas. Inevitavelmente, eu acabo com muitas músicas. Algumas estão mais sólidas e outras precisam ser mais desenvolvidas. Mas é bom ter bastante material, qualquer dia desses eu posso acordar e não conseguir mais fazer isso.
Sobre a comunhão com a natureza
A magia e a natureza fazem parte de quem eu sou. Eu me sinto bem quando estou no campo ou em qualquer lugar não-urbano.
Sobre a mensagem do disco
Um aspecto muito importante desse disco é que ele diz “Tome cuidado”. Não como um aviso, mas como um “esteja ciente de tudo o que você está fazendo e as implicações disso”. De décadas atrás até agora, nós temos essa compulsão de fugir ou de se separar das nossas experiências orgânicas espirituais.