Diálogos que equalizam: uma conversa sobre ser mulher no front da música

24/10/2018

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Ingrid Mônaco

Por: Ingrid Mônaco

Fotos: Vitória Proença

24/10/2018

Lembre do último show que você foi, quantas mulheres estavam no palco? Ok. Agora, dê uma olhada na sua coleção de discos, quantos deles são de cantoras ou bandas formadas por mulheres? Hm. E pare pra pensar quantas vezes você já leu uma ficha técnica de um álbum ou de uma apresentação que contivesse o nome de mulheres em funções como produtora, engenheira de som, iluminadora, responsável pela mixagem e masterização…

Pois é. Não é fácil ser mulher em lugar nenhum e muito menos no mundo da música, cujos espaços de protagonismo ainda são normalmente ocupados por homens. Felizmente, essa narrativa está sendo reescrita e as novas gerações são capazes de destruir e reconstruir tudo o que foi (e ainda é) imposto. A cena da música independente tem uma potência sem igual para abalar as estruturas do machismo e mulheres que surgem de todos os lados mudam o compasso desse ritmo diariamente.

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Para a revista NOIZE #80, que acompanhou o kit com o vinil Tônus, de Carne Doce, reunimos os relatos de cinco artistas que estão, hoje, no front desta indústria que sempre se mostrou tão hostil com todas nós: Juliana Strassacapa (do Francisco, El Hombre), Letrux, a DJ BadSista, Maria Beraldo, Gabriela Deptulski (do My Magical Glowing Lens) e Rita Oliva, mais conhecida pelo nome artístico Papisa. Suas falas se complementam como uma colcha de retalhos de vivências e sentimentos, formando uma grande roda de conversa que compartilhamos com você aqui. Infelizmente, em função da limitação do espaço da página, a fala da Maria Beraldo saiu na revista impressa com cortes que atrapalharam o sentido original do seu depoimento – aqui, a sua fala está na íntegra.

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Juliana Strassacapa
Sinto que, a cada geração, as coisas vão sendo facilitadas e as manas vão derrubando as barreiras cada vez mais cedo. Custou bastante para eu aceitar esse lugar de fala de mulher e abraçá-lo como um privilégio. Por mais que seja muito lindo, me senti pressionada por um tempo. Mas, agora, me vejo ainda mais empoderada por outras mulheres, sinto que o apoio mútuo é o que está prevalecendo na cena. Sinto-me muito em casa com os meninos da minha banda, mas teve uma trajetória para chegar até aqui, custou trabalho, várias conversas, muita franqueza e carinho.

Maria Beraldo
Pra mim o maior desafio é alimentar e manter minha consciência política para poder me colocar da melhor maneira possível nessa situação delicada. me sinto super bem recebida pelo público e pela crítica com meus trabalhos e ao mesmo tempo percebo o momento político muito perverso em que estamos, inclusive com relação à absorção da chamada inclusão ou visibilidade das “minorias” – que são as maiorias – como produto e pauta de mercado, enquanto estas mesmas pessoas continuam sendo totalmente excluídas, desfavorecidas, violentadas, mortas, diariamente pela nossa cultura – a mesma que consome o que esse mercado produz e em muito dita seus caminhos (uns mais outros menos).

Gabriela Deptulski
Ser mulher é o que tem de potente na música hoje em dia. A gente anda trazendo a energia do novo, que penetra nas fissuras óbvias da (i)lógica machista e consegue bombardeá-la e criar, a partir disso, lugares de igualdade para nós e para todas as outras mulheres. Sinto que a necessidade de revolucionar aquilo que não funciona mais é latente na gente.

Juliana Strassacapa
Vejo que está sendo um despertar para todos os lados. É uma necessidade que se coloque o foco sobre isso, se não é muito fácil você só ter acesso a profissionais homens e ficar nesse comodismo de que “eu não conheço nenhuma mina que faz isso”. É importantíssimo dar espaço, não é questão de um gênero ser melhor que o outro, mas se a experiência não chegou às mulheres ainda é porque o privilégio masculino muitas vezes as esconde. Por exemplo, no [festival] Bananada desse ano, foi muito massa ver um projeto de workshop para capacitar mulheres em toda parte técnica de som, iluminação, mixagem.

BadSista
Se nós mulheres não criarmos essas redes de ajuda, de proteção, de contato e capacitação, de networking, se não fizermos do jeito que os homens fazem, vamos ficar nesse lugar pra sempre. É importante elevar a qualidade do trabalho de todas. Falando assim, parece que é algo muito radical, mas é o jeito.

Papisa
Tenho banda desde adolescente e, no começo, eu cantava mais do que tocava. Foram anos de muito aprendizado onde senti que o papel da mulher na música, muitas vezes, ficava resumido à cantora/intérprete. Com a Papisa, acabei encontrando uma forma de me desenvolver como instrumentista e de ganhar confiança na minha própria produção, além da sensibilidade para chegar ao que eu queria musicalmente.

Maria Beraldo
Fora isso, sofro violências por ser mulher, por ser lésbica, mas me sinto bem preparada para lutar e resistir contra elas, isso pra mim é um desafio já transformado em combustível.
desafio é usar o espaço que me é concedido pelas minhas conquistas e pela minha posição privilegiada de pessoa branca para uma real mudança política altamente necessária. passos de formiga em corrida de cavalaria.

BadSista
Existem muitas minas boas e periféricas e o dinheiro não chega até elas. E, quando vejo que os caras estão ganhando mais e eles têm várias equipamentos, penso: “Pô, eles se ajudam muito e têm várias coisas pra fazer um bagulho bem bobo”. Às vezes, o ódio de querer mudar a realidade é que faz você sempre ter que ser muito boa. Eu vim do nada, as oportunidades que tive, se eu não fizesse valer, podia nunca mais ter de novo.

Gabriela Deptulski
Tive uma banda na qual quem cuidava de 90% de todas as necessidades era eu. Os homens só tocavam nos shows ou então ajudavam na parte mais legal (a parte chata ficava toda para mim). Eu me sinto muito orgulhosa e muito foda de ter saído dessa banda e dito um bom e ressonante “não” para todos eles. Foi bom saber me dar valor. Muitos homens têm essa mania de sobrecarregar as mulheres e nós, como estamos acostumadas, já que é cultural, acabamos sendo muito permissivas. Temos que parar e aprender a dizer com segurança, sem vacilar, em alto e bom som: não.

Letrux
Uma vez, no último ano do Letuce, chamei o Felipe Zenicola para ser nosso baixista substituto. No primeiro ensaio, mesmo que eu falasse, ele sempre confirmava com os outros músicos se ele estava certo. De noite, depois do ensaio, ele me mandou uma mensagem muito carinhosa, me pedindo desculpas por não ter perguntado pra mim, que compus e fui quem mais ouviu aquelas músicas na vida, se ele estava acertando ou não. Ele percebeu e veio falar comigo na boa, foi lindo, assim que tem ser.

Juliana Strassacapa
Tem que ficar claro para todo mundo que não dá para colocar ninguém a salvo de cometer erros. Em algum momento, começaram a surgir denúncias em relação a vários homens da cena musical e teve uma situação com um dos meninos da nossa banda, depois foi totalmente esclarecida e fico feliz de ver que, hoje em dia, tá tudo bem, mas o que me doeu bastante foi que várias mulheres zeraram minha voz. Essa sobreposição da ação de um homem em relação a minha luta foi uma parada que me doeu bastante. Ninguém tem manual, só conversando e estando aberto ao diálogo é que se resolve as coisas.

BadSista
Poderia fechar meus olhos para isso, poderia não ter reunido as minas pra fazer a Bandida [festa que busca fomentar a cena de DJs mulheres], mas sinto que, por eu ter feito isso, vai reverberando. A gente tem muito medo e síndrome de impostor, isso são coisas que precisam ser trabalhadas e o que estiver ao meu alcance para isso, eu vou fazer. Esse lance de você ver uma mulher sem medo estudando, fazendo, ecoa de várias formas, em diversos meios diferentes. É muito significativo.

Papisa
Fazer um disco no meu próprio home-studio é trabalhoso e leva tempo, mas tem me trazido muito aprendizado em relação a captação de áudio e produção musical, o que também me dá cada vez mais autonomia para criar do meu jeito. Ver outras mulheres traçando esse caminho é muito motivador, então espero que cada vez mais a gente possa falar sobre nosso trabalho, das nuances do nosso processo criativo e que o fato de sermos mulheres se torne cada vez menos importante do que o trabalho em si.

BadSista
O que os boys fazem muito é ficar detendo conhecimento, sabe? Isso, para mim, não faz sentido algum. Você tem que passar para frente e, tanto na postura quanto no discurso, tentar mudar as coisas porque o machismo é uma estrutura muito sólida e bem construída durante centenas de anos. Às vezes, você fica meio desanimada quando passa por certas coisas, mas, em compensação, você vê tanta mina empolgada correndo junto. Deixar esse conhecimento ir e vir é importante.

Juliana Strassacapa
Eu acho que a gente alimenta muito o ódio no dia a dia. Pode parecer muito hippie isso, mas a gente tem que bater na tecla do amor e do diálogo, de ver as coisas de uma maneira mais complexa para buscar a equalização, como que a gente chega num ponto que seja benéfico para todo mundo? Se a gente só se separar fica difícil, acho que reunião é o caminho.

Ver também:
Entrevista | Mergulhe no climão com a Letrux
Entrevista | Maria Beraldo, entre a força e a doçura

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24/10/2018

Ingrid Mônaco

Ingrid Mônaco