O jazz, como manifestação cultural, está carregado de simbolismos e identidades, especialmente em torno da comunidade afroamericana que o criou e popularizou. Tematizando este universo, o doc Trilha Sonora para um Golpe de Estado traça um paralelo entre música, colonialismo e os bastidores da Guerra Fria. O filme evidencia como o jazz pode ser, em diferentes contextos, tanto instrumento de propaganda politica em um estado de guerra mundial quanto símbolo de resistência.
Indicado ao Oscar na categoria “Melhor Documentário de Longa-Metragem”, o longa, dirigido pelo belga Johan Grimonprez, estreou nos cinemas brasileiros no dia 20 de janeiro, incluindo depoimentos de ícones da música como Nina Simone e Louis Armstrong.
Partindo da independência do Congo nos anos 1960, o filme mostra que grandes nomes do jazz foram enviados à África como parte da diplomacia cultural dos Estados Unidos, que temiam a aproximação do país com blocos comunistas. Enquanto isso, nos bastidores, operações políticas interferiam no futuro dessa e outras nações africanas em contexto de independência. Para Grimonprez, esse período expõe os dilemas enfrentados por artistas negros, divididos entre o prestígio internacional e o risco de serem instrumentalizados por interesses geopolíticos.
O jazz, é claro, compõe a trilha sonora do filme, mas vai além: é protagonista em uma montagem que, por vezes, se dá ao ritmo do som frenético. Logo no início da narrativa, também temos um panorama sobre o preconceito que o gênero sofria na época.
Conversamos com o diretor para entender os desafios da produção e também traçar paralelos com a nossa história. Apesar dos contextos tão distintos, questões como música e politica também nos são caros, em um país que lidou diretamente com a censura a arte na ditadura militar, também nos anos 1960. O diretor também nos revela suas descobertas na pesquisa, como a de que foram as mulheres que organizaram o famoso protesto na ONU de 1961, que denunciava o assassinato do líder congolês Patrice Lumumba.
Confira abaixo:
Como foi a pesquisa para este documentário? Qual foi a imagem mais rara que você encontrou?
A pesquisa realmente abriu meus olhos para como a música foi um agente tanto histórico quanto político. Encontramos arquivos belgas com a performance completa do álbum We Insist Freedom, do Max Roach Quartet, com Max Roach e Abbey Lincoln, por exemplo.
A faixa, “Prayer/Protest/Peace” é um grito. Basicamente, Abbey Lincoln iniciou o protesto no Conselho de Segurança da ONU. O filme mostra 60 manifestantes invadindo o Conselho de Segurança, gritando e provocando um tumulto. Mas foi a Women’s Writers Coalition, no Harlem, junto com Maya Angelou, Rosa Guy e Abbey Lincoln, que organizou aquele protesto. Foi uma descoberta rara. Porque ali, toda a subestrutura do filme, ou a estrutura principal, que é a 15ª Assembleia Geral, colapsa com essa história detalhada sobre o assassinato de Patrice Lumumba. Isso foi anunciado no Conselho de Segurança e os músicos transformaram essa denúncia em um protesto e um motim dentro da ONU.
Outra descoberta especial foi William Burden. Ele era presidente do MoMA, tinha participações na indústria de mineração de Katanga, no Congo Oriental, era assessor do Pentágono e CEO da Lockheed Defense Company. Ele foi enviado para Bruxelas como embaixador dos EUA. Encontramos um telegrama enviado por ele a Larry Devlin, chefe da CIA na época, mencionando que os belgas estavam cogitando assassinar Patrice Lumumba. E ele diz: “Como embaixador dos EUA, não acharia uma ideia ruim, porque ele é um incômodo.” Quando encontramos esse material, fiquei chocado. Ali estava o presidente do MoMA, que também era um agente da CIA. Isso foi revelador.
Outro aspecto crucial são os filmes caseiros. Fiquei surpreso ao receber os filmes caseiros de André Blouin da minha filha, que foi consultora do documentário. Também encontramos filmes de Nkowi Jombofany, romancista belga-congolês, que lê trechos de seu romance no filme. Além disso, temos as memórias em áudio e os filmes caseiros de Sergei Khrushchev, filho do premiê soviético Nikita Khrushchev. Essas imagens eram reveladoras. Foi emocionante contrastar essas imagens íntimas com os abalos sísmicos políticos que o filme retrata.
Durante a ditadura militar no Brasil, a música foi uma ferramenta de resistência, e artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil chegaram a ficar exilados. Você sabe algo sobre essa história?
Eu sabia que Dizzy Gillespie se envolveu com a cena da Bossa Nova e foi enviado ao Brasil como “embaixador do jazz”. Acho que isso foi em meados ou fim dos anos 60, o mesmo período. Não sei se Gilberto Gil e Caetano Veloso já estavam exilados nessa época. No início da Bossa Nova, houve uma troca intensa de influências estéticas entre os artistas. Não sabia muito sobre como a música foi usada como ferramenta de ativismo no Brasil.
Temos, por exemplo, Mariton Zagmama, que narra a voz de André Blouin no filme. Quando gravamos em nossa cozinha, ela tinha acabado de voltar da “City of Joy”, um local onde mulheres vítimas de violência sexual no Congo se reúnem para compartilhar o trauma e transformá-lo em ativismo através da música e do teatro. Essas mulheres são as principais ativistas políticas no Congo hoje.
O que, neste filme, você pensa ser um fator de identificação mais ampla, para além do tenso contexto político que ele aborda?
Acho que o trauma do deslocamento. Muitas pessoas no Sul Global podem se conectar com essa experiência. Vejamos os documentários indicados ao Oscar este ano. No Other Land fala sobre a amizade entre um palestino e um israelense, enquanto suas casas são destruídas e familiares, assassinados. Black Box Diaries retrata a história de Shoro Ito, que foi estuprada e teve que fugir do Japão após desafiar o governo com o movimento #MeToo. Sugarcane fala sobre a redenção dos indígenas americanos cujos filhos foram roubados pelo Estado.
São histórias semelhantes de deslocamento e sobrevivência, assim como a de Andre Blouin, que foi afastada de sua família por ser mestiça. Quando olhamos para esses filmes, vemos como a luta contra a opressão ressoa globalmente.