De Cruz e Souza ao trap, da literatura à pornochanchada, o sexo sempre esteve presente na criação artística. O maranhense Negro Leo resolveu arrematar essas referências misturadas à tradição do boi de sua terra natal no nono álbum, RELA (2024), lançado pelo QTV.
O disco ganhou destaque na nossa lista de melhores do ano, como não poderia deixar de ser. Nesse mix profano-sagrado dos tambores do bumba meu boi com funk, afropunk, eletrônica, MPB e letras provocativas, RELA aborda desejo, poder e a complexidade das relações humanas. “Eu te amo é uma coisa que você pode dizer pelo Chat GPT”, reflete.
Para a Noize, o artista também comenta sobre a temática geral do disco: “O ato de escrever é uma insinuação, nunca se escreveu tão explicitamente sobre sexo na cultura popular”, diz. E provoca: “Essa geração é provavelmente tão saudável quanto aquelas que viram nascer técnicas sexuais do Kamasutra ao Fang-chung shu. Se há algum mal-estar nessa geração, não é não falar o suficiente, é não fazer o suficiente. Quando escrever consubstancia o ato, torna-se alegre. A putaria é apenas a manifestação da saúde dessa geração”.
Os relacionamentos atuais são parte fundamental do disco, a começar pela faixa de abertura, “DATE MY AGE”. Ao dar o play, o ouvinte se depara com o som de uma notificação de Whatsapp e uma lista de aplicativos que favorecem encontros dos mais furtivos: Happen, Grindr. Um cardápio de opções que oferecem prazer rápido, ainda que não saia das promessas fáceis dos amores líquidos.
O próprio título, RELA, traz um caráter de ambiguidade: pode se referir tanto ao toque, um convite ao contato físico, quanto um afastamento brusco, num jogo de sedução, repulsa e devoção perceptível ao longo das canções. Deixar-se dominar pelo prazer não se torna um tabu em suas letras.
Rela tem produção de Renato Godoy e colaborações de músicos do Boi Brilho de Lucas, além de Vasconcelos Sentimento, Os Fita, Mbé, Kiko Dinucci, Lucas Pires (também responsável pelas vinhetas), e participações de Juçara Marçal, Thiago França e May Tuti. A direção visual, assinada por Lucas Pires, reforça o caráter simbólico do disco, compondo um encontro entre corpo, natureza e tradição, atravessado por nuances de inteligência artificial.
A seguir, o artista nos guia faixa a faixa pelo seu novo trabalho:
“DATE MY AGE”: O poeta Cruz e Souza e a sutileza da putaria oitocentista:
“Sonho-te a deusa das lascivas pompas
a proclamar, impávida, por trompas,
amores mais estéreis que os eunucos!”
“ME ENSINA A TE CASTIGAR”: Enquanto o neo-estoicismo avança sobre as trincheiras da diferença com a máxima “não são os acontecimentos que nos perturbam, mas os nossos julgamentos sobre os acontecimentos”, o castigo torna-se um desfrute e uma reminiscência.
“GOT TO PLEASE”: Agradar se tornou a chave de sobrevivência.
“CLUB RELA”: Imagine um lugar onde você pode ser castigado em segredo.
“GORDINHA CANIBAL: Qualquer coisa versada é consequência de sua própria manifestação. Não existe inspiração além do real. Como canta Ivete Sangalo: “o seu amor é canibal, comeu meu coração, mas agora eu sou feliz”
“CULONA CANINOS DE LOBA”: “Os planos do diligente levam à fartura, mas o apressado sempre acaba na miséria”. Provérbios 21:5
“TE DEIXO ME FAZER SOFRER”: Um desejo que só o seu servidor de internet pode conhecer.
“TE AMO”: Uma coisa que vc pode dizer pro chat GPT, alimenta um poeta trágico.
“TCHA TCHUM NA XANA”: Tcha é jorro onomatopaico, Tchum é grande deslocamento de água.
“ME ESCULACHA”: Num tempo no qual a inteligência artificial é mais requerida que a inteligência emocional, o orifício abnegado é uma vantagem evolutiva.
“PISCINA PRETA”: É a última tendência.
“ONLINE AGORA”: É o estado de suspensão infinita entre um corpo e outro, atravessando milhares de quilômetros de cabos submarinos de fibra ótica, na velocidade da luz, apenas pra dizer coisas obscenas.
“OLHA OUTRO DIA”: Se não olhar, melhor ainda, são os sinais do tempo.