Entrevista | A alquimia afro-brasileira de Jorge Ben, por Kamille Viola

09/12/2020

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Daniela Dacorso/Divulgação e Reprodução

09/12/2020

A trajetória ímpar de Jorge Ben Jor (para muitos fãs, o eterno Jorge Ben) conferiu ao músico carioca o título de lenda-viva. Com uma discografia impressionante lançada desde 1963, Jorge tornou-se um verdadeiro cânone da música brasileira, capaz de inspirar, de uma forma ou de outra, todas as gerações que lhe sucederam, dos tropicalistas baianos aos mangueboys recifenses, passando pelos manos das quebradas de SP e por toda a onda do samba-rock.

No processo alquímico de Jorge, coagulam-se tanto ingredientes das culturas ancestrais afro-brasileiras, filosofias ocultistas do Egito helênico e teologia medieval quanto sua devoção ao futebol e sua franca disposição ao amor. Tudo isso é abordado no livro África Brasil: Um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver, da jornalista Kamille Viola. Lançado recentemente em formato digital, a obra é parte da coleção coleção Discos da Música Brasileira, das Edições Sesc, e está disponível à venda nas principais plataformas do gênero.

Aqui, conversamos com Kamille sobre o processo de pesquisa do livro, que dedica-se em especial ao álbum África Brasil (1976), mas faz também um apanhado do caminho que Jorge percorreu até chegar nesse disco. Foram anos de mergulho na obra do músico e a autora teve a oportunidade de conversar com pessoas como Mano Brown, Zico, Dadi Carvalho, Jorge Du Peixe, BNegão e Marcelo D2 sobre o impacto que Jorge causou em suas vidas. Há ainda o depoimento do próprio Jorge Ben Jor, em uma rara entrevista exclusiva para o livro.

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Desça e confira nossa conversa com Kamille e aproveite pra entrar também de cabeça na história de Jorge.

Foto: Daniela Dacorso/Divulgação

Como foi o processo de produção do livro? Quando você começou a trabalhar nele e como você se sentiu durante essa imersão?
Comecei a pesquisa do livro em 2018, quando recebi o convite para escrevê-lo. Mas eu já pesquisava a vida do Jorge há muito tempo. No livro, conto que o conheci em 2008 e durante um tempo tentei convencê-lo a me deixar escrever uma biografia autorizada, ao lado da jornalista Karla Prado – no Brasil, havia um artigo no Código Civil que exigia a autorização prévia do biografado. Em 2010, no entanto, entramos em contato com a família dele e tivemos uma resposta negativa. Trabalhar no livro sobre o África Brasil foi, de certa forma, resgatar um sonho antigo. Sou uma grande admiradora do artista e sua obra, então foi um processo muito prazeroso. Mas também sofrido, por conta das dificuldades em conseguir algumas entrevistas e, depois, a pandemia de covid-19. Fico feliz de ter lançado o livro, apesar de todo cenário que a gente vem enfrentando em 2020.

Dentre a rica discografia de Jorge, o que faz de África Brasil um álbum tão especial? 
A escolha deste disco em especial foi do organizador da coleção Discos da Música Brasileira, das Edições Sesc (da qual meu livro faz parte), o jornalista e crítico musical Lauro Lisboa. África Brasil é especial de diversas formas. É um álbum que influenciou as gerações seguintes, por exemplo, como atestam no livro as entrevistas de Mano Brown, Marcelo D2, BNegão, Jorge du Peixe e Lúcio Maia (esses dois últimos da Nação Zumbi). No disco, Jorge reinventa seu som, realizando uma mistura muito particular de sonoridades afro-brasileiras, afro-latinas, da música negra norte-americana e da própria África. Embora ele já tivesse influências da música negra norte-americana há muito tempo, ali o soul e funk têm uma presença muito forte, mas dentro dessa mistura que mencionei. Além disso, a partir do África…, ele passa a tocar com guitarra definitivamente. Duas músicas (“A história de Jorge” e “Zumbi”) trazem o canto falado, fazendo de Jorge um dos precursores de estilos no país, antecipando, por exemplo, o rap. O disco também passa por temas que são recorrentes em sua obra, como amor, futebol e a exaltação cultura negra e de personagens negros, além da alquimia, assunto do qual ele já tinha tratado nos dois discos anteriores e do qual falava muito nas entrevistas que deu na época. Clássicos de seu repertório, como “Ponta de lança africano (Umbabarauma)” e “Xica da Silva”, além de regravações marcantes de “Zumbi” — aqui batizada de “África Brasil (Zumbi)” — e “Taj Mahal” estão no álbum.

Qual foi o olhar que orientou a escolha dos entrevistados do livro? Teve algum depoimento inusitado ou que tenha lhe surpreendido em especial?
Em primeiro lugar, fui buscar os músicos que participaram do álbum, para que me contassem histórias de bastidores. Consegui falar com quase todos os integrantes da Admiral Jorge V, que acompanhava Jorge à época: o baixista Dadi Carvalho, o baterista Gustavo Schroeter (os dois integram também a banda A Cor do Som) e Joãozinho da Percussão. Infelizmente, quando consegui contato com o filho do pianista João Vandaluz, ele estava internado e veio a falecer em seguida, no ano passado. Por sinal, muita gente que participou desse disco já se foi, como Wilson das Neves, José Roberto Bertrami (do Azymuth) e Oberdan Magalhães (que fundaria naquele mesmo ano a Banda Black Rio). Falei também com o Neném da Cuíca, que não era do grupo na época, mas que tocou no disco e que acompanha Jorge Ben até hoje, e com o produtor, Marco Mazzola. Por fim, procurei músicos que tivessem sido influenciados por ele, para falar de seu legado, e um acadêmico, o professor Marcos Queiroz, que utiliza a obra do artista em suas aulas na faculdade de Direito e faz uma análise da importância do artista e seu trabalho na história do Brasil.

Jorge é conhecido por ser muito discreto e evitar entrevistas, como foi falar com ele? Ele estava receptivo ou teve assuntos que preferiu não comentar? 
Eu já tinha entregue uma primeira versão do livro quando tive a chance de entrevistar o Jorge, por conta de um projeto coordenado pela jornalista Christina Fuscaldo. Aproveitei e fiz perguntas pertinentes ao meu livro. Infelizmente, por conta da pandemia, a entrevista foi por telefone. Ele foi simpático e doce, como costuma ser. Só se mostrou mal-humorado quando perguntei se tinha visto a repercussão do fato de que o Copacabana Palace tinha fechado com a pandemia e ele tinha ficado lá, como um dos únicos moradores (ao lado da diretora do hotel). Reclamou da idade atribuída a ele pela imprensa (79 anos), disse ser mais novo e ter nascido em 1945. Não entrei em assuntos pessoais, porque sei que ele não fala sobre – já tive a chance de entrevistar o Jorge pessoalmente, em 2011, depois da época em que tentei fazer sua biografia, e sei como funciona. Não queria que ele se irritasse e desligasse o telefone precocemente. Fui falando com ele até ele dizer que precisava ir (ficamos cerca de 50 minutos ao telefone).

Tanto pela sua sonoridade quanto pelas letras, há muita atenção dos fãs sobre a chamada “trilogia mística”, completada por A Tábua de Esmeralda (1974) e Solta o Pavão (1975). A partir da sua pesquisa e da conversa com Jorge, o que você pôde concluir sobre as motivações dele para criar três álbuns com uma ênfase nessa temática?
O Jorge era e é fascinado pela alquimia. Ele me disse na entrevista que até hoje estuda o tema. Acho que admira tanto que até adotou certos comportamentos dos alquimistas, como ser discreto em relação à sua vida pessoal e estar sempre buscando aperfeiçoar suas músicas, que ele muitas vezes regrava, muda a letra, o nome etc. O álbum que tem a presença mais forte da alquimia é A Tábua de Esmeralda, o primeiro – das 12 faixas, seis citam algo de alquimia. Nos dois seguintes, são menos faixas, mas o Solta o Pavão ainda tem a capa com referência ao tema, o encarte traz o signo de cada um na ficha técnica, etc. O África… destoa nesse quesito, a capa é uma foto dele – na época, ele reclamou dela, disse que lançaram o disco sem consultá-lo, quando estava fora do Brasil. Não dá para saber se traria mais uma vez uma figura sobre alquimia. Por isso, há quem não considere os álbuns uma trilogia. Porém, o tema ainda está lá (explicitamente, em duas faixas) e ele falava muito sobre nas entrevistas da época. No álbum seguinte, A Banda do Zé Pretinho (1978), não tem mais alquimia nas músicas, então considero um fechamento, sim. Agora, a sonoridade vai mudando ao longo dos discos. No Tábua ele toca com violão de nylon, de certa forma uma continuidade do que vinha fazendo. O Solta o Pavão já é gravado com o violão Ovation, plugado, que Jorge adotou por um período. No álbum também tem a presença mais marcante de teclados e sintetizadores. É uma espécie de transição, a meu ver. Já no África Brasil ele adota a guitarra elétrica e muda radicalmente seu som, trazendo uma forte influência de funk e do soul norte-americanos.

Outro ponto que se destaca na obra dele é a valorização dos elementos da cultura negra no Brasil. Que reflexões você teve nesse sentido? 
Esse é um aspecto muito importante da obra do Jorge. Ele exalta a cultura negra e personagens negros. Também se autodeclara negro em diversas canções — tudo isso em um período em que vigorava no país o mito da democracia racial, que pregava que todas as raças do país viviam em harmonia. Jorge começou a carreira em disco em 1963, a ditadura militar foi instaurada no país no ano seguinte. O orgulho negro era algo extremamente malvisto pela repressão. Porém, na maior parte das vezes ele não falava do tema de forma combativa, o que ele fez foi construir um imaginário negro positivo no país. Também exaltava a mulher negra, que frequentemente era mostrada de forma erotizada na nossa cultura, mas na música do Jorge era mostrada de forma afetuosa. Em “Que nega é essa” (de Ben, 1972), por exemplo, ele, um homem negro, dizia que queria casar com a personagem, contrariando a ideologia do embranquecimento que vigorava no país. Algumas vezes, como em “Zumbi” e “Charles Anjo 45”, tem um discurso mais panfletário. A música negra feita no Brasil sempre exaltou a cultura negra, mas o Jorge era um artista mainstream, que se apresentava na TV, tocava no rádio, vendia milhares de discos. Naquele contexto, isso tudo foi revolucionário. Não à toa o Mano Brown, que é um dos entrevistados do livro, é um grande fã do Jorge Ben e diz que ele é uma grande influência para o rap.

Abaixo, a parceria de Jorge e Mano Brown em “Umbabarauma” e a participação de Jorge na abertura do DVD “1000 Trutas 1000 Tretas”, do Racionais MC’s:

Na sua visão, qual é o grande legado de Jorge para a cultura brasileira? 
Bem, um dos aspectos é a construção do imaginário negro positivo, algo essencial em um país de maioria negra, com uma música essencialmente negra mas que buscou apagar essa influência. Em suas muitas reinvenções, antecipou estilos e movimentos, influenciando artistas que vão de Gilberto Gil e Caetano Veloso a Mano Brown e Nação Zumbi, entre outros. Esteve próximo de alguns movimentos musicais, mas foi passando por eles sem se prender a nenhum, sempre mantendo sua originalidade. Absorvendo uma grande diversidade de influências musicais, criou uma sonoridade muito própria e inimitável, tanto que muitos dizem que a música que faz é “estilo Jorge Ben”. Ele faz uma síntese de sons da diáspora negra e da própria África que é, como bem disse o Marcelo D2, ao mesmo tempo regional e universal. Não à toa ele é admirado no mundo inteiro. No entanto, sua música é brasileiríssima. Como observa o BNegão, tudo o que ele faz é norteado sempre pelo samba, com as outras influências que ele vai incorporando pelo caminho. Aliás, o B diz que o Jorge Ben está para a geração dele (dos anos 90) como o João Gilberto está para a geração do Jorge, em termos de influência. É, sem dúvida, um dos maiores nomes da nossa música.

Abaixo, a versão de Abayomy Afrobeat Orquestra & Tony Allen feat. BNegão da faixa “Meus Filhos, Meu Tesouro”, do África Brasil:

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09/12/2020

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

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