Entrevista | A eterna insurgência de Jards Macalé

16/09/2019

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Guilherme Espir

Por: Guilherme Espir

Fotos: Welder Rodrigues

16/09/2019


O repertório de um artista é uma ostra. A capacidade de fazer conexões e promover raciocínios improváveis é um elemento que atua como um agente catalizador na hora de estimular o potencial criativo. As referências são um ponto chave nesse raciocínio, pois além de contextualizar seu trabalho, ajudam a entender um pouco sobre a abordagem do compositor. 

No entanto, em raros casos, o vocabulário é tão vasto e os ângulos escolhidos pelo olhar clínico do poeta, tão peculiares, que nem mesmo o contexto ajuda. É como um conhecido meu diz: “depois de alguns copos, eu viro poesia”. A alma flutua. O ser criativo e o ser humano são tão indecifráveis e imprevisíveis que acompanhar a sua carreira é um exercício de aprendizado, um objeto de estudo dividido em vários capítulos, cada um com suas peculiaridades estéticas e histórias.

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O carioca da gema, fã de Jazz, versado no Samba, erudito, violonista e orquestrador. Com uma trajetória única na música brasileira, sua musicalidade abrange desde a guitarra de Lanny Gordin até o Amazonas percussivo de Naná Vasconcelos. É vanguarda e é moderna, sempre se rebelando até contra ele mesmo, como num eterno fluxo de consciência batizado com o nome de um dos piores jogadores da história do Botafogo.

Todo esse colosso de extremos representa a musicalidade de Jards Macalé, um músico de trajetória singular e em contínua evolução. Dono de uma versatilidade criativa interdisciplinar que causou impacto na arte, na música e no cinema, Jards está na ativa desde o meio da década de 60 sempre com o mesmo senso transgressor de quem tocaria João Gilberto ao vivo na casa do Coringa, se tivesse a chance.

São 76 anos de uma carreira riquíssima que viu em 2019 o estopim para seu primeiro disco de inéditas desde 1998, quando lançou O Q Faço é Música. O timing não poderia ser melhor, Besta Fera (2019) é um disco que traduz a essência e urgência dos ecos lúdicos do Faquir da Dor. 

Com arranjos sinuosos e um trabalho de letras primoroso, Jards reuniu uma mescla de instrumentistas muito interessantes e eternizou mais um tratado com o último trabalho de Carlos Filho – o Cafi – em vida, na icônica foto de capa. 

É um disco muito profundo e que coroa um momento muito legal na carreira recente do músico. Em plena ebulição com diversos lançamentos – como os boxes “Ao Vivo” e “Anos 70” – sua obra ganhou novo fôlego e chegou com uma abordagem visceral sob o palco do Sesc Paulista. Em trio formado por Guilherme Held (guitarra), Pedro Dantas (baixo) e Thomas Harres (bateria), Jards Anet da Silva mostra alma de Punk e coloca muito banda de Rock no Bolso sem precisar de uma guitarra.

Com um set de cerca de 90 minutos, Macalé e banda foram cirúrgicos. Com repertório ancorado pelo Besta Fera, a excelente banda de apoio do carioca fez um trabalho excelente. Guilherme Held foi soberbo na guitarra, ora solando ou criando texturas para as caóticas visões do eu lírico. Pedro Dantas, além de somar no grave das 4 cordas, ainda ajudou o mestre com sua afinação e desenvolveu uma interação muito complementar ao sólido trabalho de Thomas na sessão rítmica. 

Foi um show excelente. Com um setlist bastante oportuno, o quarteto conduziu um belo passeio pela carreira do poeta. Variando sucessos atuais (“Buraco da Consolação”) com temas de outrora (“Soluços”), o grande ato do compositor foi além de sua própria arte. Na tentativa de despertar os corpos inertes, Macalé também soube mostrar a beleza que ainda habita essa quarentena de Bestas Feras que rege o Brasil. Homenageando Tom Jobim e Elton Medeiros, Jards nos faz ver melhor e mostrou – uma vez mais – que sempre vale a pena ser poeta.

Por tudo isso, a NOIZE bateu um papo com o mestre com o objetivo de entender um pouco mais sobre esse artista fascinante e que não perde o caráter questionador que definiu e afinou sua ácida discografia.

Jards, você vem olhando bastante para a história do seu repertório nos últimos anos. Saíram uma serie de edições com gravações dos anos 70, shows ao vivo, DVD’s, especiais em vinil… Como tem sido esse exercício de revistar o seu trabalho e também de conseguir lançar esses materiais todos. Sua relação com suas músicas foi impactada por isso de alguma maneira?

Bom, nos últimos tempos, antes de sair o Besta Fera, que é só de inéditas, eu fiz muitos shows e fiz alguns discos nos quais eu revisitei algumas músicas minhas. Os boxes são resultado do trabalho de pesquisa do Marcelo Fróes, que ele mesmo fez a coletânea, tudo direitinho. Agora, eu mesmo, em meus trabalhos, nos discos que fiz – desde o O Q Faço é Música (1998) – depois eu fiz algumas coisas como Os 4 Batutas e 1 Coringa (1987) que foi um trabalho de ler outros autores, né. Nesse, por exemplo, eu abordo o trabalho do Paulinho da Viola, Geraldo Pereira, Lupicínio Rodrigues e Nelson Cavaquinho

E outros discos, também fiz um disco com o Naná (Vasconcelos), o Let’s Play That (1994), fiz o Jards (2011) também que eu levei material inédito, relendo alguns temas. E eu gosto disso, de ler músicas minhas, mas de outra forma.

Quer dizer, eu não leio da mesma forma nunca e além disso tem outros autores que eu gosto muito. Teve Songbook do Ary Barroso, Tom Jobim, Braguinha. Sabe aquela série de Songbooks do Almir Chediak? Eu participei de 11 deles! 

É um trabalho contínuo né?

Sim, eu sempre revisito e nunca é uma releitura, é sempre uma leitura.

São várias propostas, também.

Sim, dentro desse quadro eu estou sempre em movimento. O eterno movimento dos barcos.

Jards, você foi um dos poucos que teve a honra de tocar com Lanny. Queria que você falasse um pouco sobre a experiência de tocar com ele e um pouco sobre como gravar com ao lado dele (no seu homônimo de 72), que ele tocou guitarra e baixo.

Maravilhoso, as linhas de baixo que ele criou são incríveis. São conjuntos de solo né, os contrapontos dele são incríveis. A própria guitarra também.

Os timbres.

Sim, o timbre é dele.

A galera nem fala do baixo, só fala da guitarra.

Sim, só fala da guitarra, mas o baixo é genial. Tocar com o Lanny é um privilégio, desde aquela época. Depois nós gravamos uma versão de “Vapor Barato” maravilhosa no O Q Faço é Música (1998) no qual ele só toca guitarra e é uma guitarra esplendorosa.

E ele toca até hoje.

Sim, o Lanny é um grande harmonista, e agora ele toca aleatoriamente. Foi um grande aprendizado tocar com ele, um ser humano extraordinário, uma pessoa maravilhosa e além de ser essa pessoa ele era um instrumentista, um guitarrista e um músico excepcional. 

Tem outro disco seu que foi gravado com outra lenda da música brasileira – Naná Vasconcelos – o “Let’s Play That”. Queria que você comentasse um pouco sobre o processo de gravação ao lado do Naná e explicasse um pouco por que o disco foi gravado em 83 mas só foi liberado em 1994.

Naná foi um grande amigo meu… Teve uma coisa engraçado. Eu estava no Maracanãzinho ensaiando uma versão de Gotham City e a gente estava lá.

De repente apareceu uma pessoa e disse: “posso tocar nessa?” Eu digo: “claro”. Na hora eu não sabia quem era, mas depois descobri que era o Nana Vasconcelos! À partir daí nos tornamos grandes amigos e ele ia em casa lá em Botafogo, no Rio de Janeiro e a gente ficava tocando durante horas e horas sem parar, inventando coisas.

Até que eu estava sem gravar nada, sem possibilidade de gravar nada, durante 11 anos, e apareceu uma pessoa que patrocinou o disco.

Por isso que demorou tanto pra sair? O disco foi gravado em 1987 e saiu apenas em 1994.

Pois é, só saiu nesse tempo por que eu estava precisando e o Naná estava morando nos Estados Unidos. Na época eu precisava da autorização dele pra lançar o disco e tal, mas devido à distância acabou demorando um pouco. Até conseguir encontrar ele, por que ele vivia tocando pelo mundo… 

O processo é longo né? 

Sim, não foi nem por ele, o processo funciona assim e depois que nos encontramos ele deu a liberação, a pessoa patrocinou o disco e a gente foi para o estúdio. Na época eu queria uma coisa bem sintética, eu o convidei e ele topou.

Nós gravamos o disco em 5 horas direto, como se fosse uma jam session.

Caramba, tão rápido?

Sim, fizemos uma jam de 5 horas. Registramos o disco rapidinho e já era. Foi rápido, tão rápido que na cabeça da gente naquele momento demorou um milênio, viu? Mas o resultado foi ótimo.

Jards, você foi pra Inglaterra (Londres) num momento de grande efervescência cultural nos anos 70. Tinha muito brasileiro lá também, o Gil, Glauber Rocha, Júlio Bressane. 

Sim, teve o Rogério Sganzerla, também.

Sim, como foi essa vivência no movimento de contracultura e eu queria saber se isso de alguma forma impactou seu trabalho, pelo caráter interdisciplinar que você desenvolveu, com relação à artes plásticas e cinema, além da música.

A coisa das Artes plásticas veio antes, quando o Rubens Gerschman me convidou pra fazer a trilha de um filme sobre o pai dele. Eu fiz a trilha sonora então nisso aí já juntei a Artes Plásticas, com cinema e música.

O Rubens também me convidou pra fazer uma trilha pra exposição dele. Mas aí foi uma pegada diferente, eu sonorizei a exposição.

Fez as ambiências?

Sim, exatamente, eu fiz a ambientação e depois o Hélio Oiticica convidou a mim e o Waly Salomão pra fazer a ambientação e nós fizemos, lá no Meridien (Novo México), numa exposição enorme do Hélio, num terraço.

Eu ia muito na casa do Hélio, ficava tocando enquanto lá enquanto ele trabalhava e fazia as coisas. Conhecia o gosto dele pra música.

Bom, depois surgiu o cinema quando o Nelson Pereira dos Santos me chamou pra fazer a trilha sonora do Amuleto de Ogum (1974), no qual eu me tornei ator também.

Já tinha feito uma trilha sonora com a Ana Carolina no filme dela (Getúlio Vargas – 1974), e também quando o Joaquim Pedro de Andrade me chamou pra compor sobre poemas de Mário de Andrade, no Macunaíma

Essa coisa toda foi se juntando, todas essas linguagens. Teve a Literatura também, pois eu musiquei muitos poemas, desde materiais do Vinicius de Moraes até Ezra Pound, então junta tudo, reúne todas as manifestações e eu gosto muito disso.

Jards, você teve a honra de trabalhar ao lado de grandes arranjadores, como Wagner Tiso, Rogério Duprat e tantos outros. Acho que essa interação com os arranjos foi algo que se perdeu com o passar do tempo, apesar do Brasil ser a terra de nomes como Moacir Santos e Arthur Verocai. Com isso em mente, queria perguntar sobre o “Aprender a Nadar” (1974) que é um disco bem avançado pra época – com recursos dos quadrinhos e outras experimentações de sonoplastia – como foi cunhar as ambiências? Você colocava as mãos nos arranjos de alguma forma? Como era seu envolvimento nesse aspecto?

Desde muito cedo me tornei amigo do Severino Araújo que tinha a Orquestra Tabajara. Eu fui copista do Severino na orquestra – copista é aquele que copia a grade dos arranjos pra colocar na partitura para os músicos – fui copista da Orquestra Sinfônica brasileira no Rio de Janeiro.

Depois eu estudei orquestração e composição com o maestro Guerra Peixe, então toda essa tendência pra arranjo, orquestração… Eu fui querendo ser um deles. Depois Paulo Moura, Wagner Tiso, entre outros. Posteriormente eu passei, no lugar de escrever os arranjos, a fazer a Direção Musical que é contar com a colaboração dos músicos pra formatação dos arranjos. Então é isso, as vezes eu convido um orquestrador e as vezes eu faço, como o “Transa”, por exemplo, do Caetano Veloso, eu fiz exatamente isso, a colaboração de todos os músicos e no final eu faço a formatação final da coisa toda.  

Jards, pra fechar, uma característica massa da sua carreira é como você sempre se deu bem com músicos de gerações diferentes da sua. Quando jovem era próximo de Dorival Caymmi e hoje colabora com a galera do Metá Metá e o Tim Bernardes. É muito bacana esse respeito que você tem e a forma como cultiva essas relações. Queria saber de você como essas experiências ajudaram você musicalmente, tanto no começo da carreira quanto agora em tempos de Besta Fera.

É por que são elas que me alimentam. Tanto os ditos velhos, entre aspas, como o jovens, entre aspas também, que dizem que eu os alimento. Então, o Dorival, Tom, Vinicius, os músicos extraordinários como o João Gilberto, nós sempre tivemos amizade em comum e música. 

Conheci Clementina, Elton Medeiros… Tiveram vários músicos. É convidar e ser convidado né. Teve o Paulo Moura que me convidou pra tocar Cartola num espetáculo que ele fez. Foi um trabalho de interpretação… É importante estar sempre em contato com músicos, tanto anteriores a mim quanto posteriores.

Funciona tudo num tom colaborativo muito interessante.

Sim, esse é o espírito, a colaboração é muito importante. Nos últimos tempos eu fui convidado pra vários festivais e tudo isso surgiu por conta do Metá Metá, do Rômulo e do Fróes.

O Kiko trabalha ativamente nesse disco também.

O Kiko é fundamental, ele e o Rômulo que produziram o disco, convidaram o Rodrigo Campos.

O Guilherme Held na guitarra também.

Sim e ele é fechado com o Lanny Gordin também.

Já vi ele tocando até com o Criolo.

Exato, hoje todos tocam com todos. O nosso baterista Thomas Harres também ajudou bastante nesse processo de fazer conexões e tudo isso influenciou esse novo trabalho.

Agora eu estava pensando, encontrei até a mulher do Melodia no aeroporto [Jane] e pensei: o que eu vou fazer agora? Por enquanto, pensei em fazer algo só com o trabalho do Luís Melodia.

Queria visitar o Melodia por que estou com saudade dele, meu grande amigo.

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16/09/2019

Entusiasta do groove, eis aqui um meliante que orbita do jazz ao hip-hop, desde que tenha groove. Sem ele, a vida seria um erro.
Guilherme Espir

Guilherme Espir