Entrevista | A resistência de Arnaldo Antunes

13/02/2020

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Tássia Costa

Por: Tássia Costa

Fotos: Márcia Xavier/Divulgação

13/02/2020

A sexta-feira do dia 7 foi a primeira do mês de fevereiro de 2020 e a data em que conhecemos o novo álbum de Arnaldo Antunes, O Real Resiste. Gravado em um sítio-estúdio no interior de São Paulo, o disco tem 10 faixas que trazem à tona assuntos que o próprio cantor e compositor define como coisas pelas quais ele “preza muito”.

É um disco político ao mesmo tempo em que é uma obra cheia de sutilezas afetivas. Agressivo ao mesmo tempo em que é sensível. Ele traz um equilíbrio que resume a essência do que é “real” na visão de mundo de Arnaldo. Na tarde do lançamento, batemos um papo com o músico e que você pode ler abaixo enquanto ouve o álbum. Confira:

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Por que “O Real Resiste”?
Esse título, quando tá nomeando a música, “O Real Resiste“, tem o sentido do “real” representar o coletivo, tem um sentido político de atuação de defesa. Quando se trata do disco, o “real” se expande para outras faces. Aí entram outros temas, como os indígenas, a natureza, a morte, o amor. Ele acaba se multiplicando em várias temáticas que o disco aborda, e acho que o real seriam coisas que eu prezo muito. Na canção “O Real Resiste” eu afirmo no presente, mas é como se eu estivesse dizendo “espero que o real resista” a esse pesadelo que, na verdade, é real, e que a gente tá assistindo. Mas eu estou buscando outro real, que são as pessoas de carne e osso, aquelas que prezam pelos valores primários da democracia, a convivência com as diferenças, a preservação do meio ambiente, a cultura, a educação, a ciência. É isso que eu acredito e quero transformar em uma ocorrência real a partir da afirmação da letra da canção. 

Eu tinha pensado inclusive no nosso contexto atual, do quanto estamos inseridos em um contexto virtual, onde a aparência conta muito e as pessoas acabam esquecendo sua essência, quem elas realmente são. E achei interessante que as músicas do disco são minimalistas, o que traduz também a ideia de que o “real” tá na simplicidade.
Tem isso também, trazer as pessoas para o mundo de verdade. É isso mesmo, a sonoridade acaba expressando ao seu modo esse contexto também.

Como você mesmo disse, o álbum tem músicas que falam de vários temas, como política, minorias, amor, vida, morte… mas qual foi o elo entre todas elas para que fizessem sentido juntas em um álbum?
Isso não foi algo pensado, não escolhi músicas que necessariamente estivessem expressando ou compondo um “real”. Isso foi algo que fui percebendo quando o repertório estava escolhido. Na verdade, fui escolhendo as coisas mais recentes que eu vinha compondo e que mais se adequavam a essa sonoridade que eu queria trazer pra esse álbum – que se baseia na ausência de percussão, uma formação mais enxuta e mais voltada pra canção da maneira que ela nasce mesmo. Fui escolhendo e pensando mais na sonoridade, assim fui percebendo que as coisas que eu estava compondo se voltavam – além da música “O Real Resiste”, claro, que fala da situação política que a gente está vivendo –, para assuntos que também são muito valiosos para mim. Elas de certa forma vão compondo um leque de coisas reais. Eu sinto que cada vez mais a gente tem que defender valores que a gente achava que eram comuns. São temas muito importantes, e temos que voltar o nosso olhar pra essas coisas que são muito primárias, mas que estão sendo muito hostilizadas atualmente.

Arnaldo Antunes em defesa do real (Foto: Márcia Xavier)

No ano passado você foi até o Acre e passou um tempo em uma tribo indígena. Foi dessa experiência que nasceram as músicas Língua Índia e Dia de Oca, certo?
Eu sempre tive muito interesse nos indígenas. Quando era estudante de letras, cheguei a fazer algumas aulas de tupi e, embora o estudo não tenha ido adiante, isso continuou fazendo parte dos meus interesses. Com o passar do tempo, [o interesse] foi até aumentando e eu acho que é muito importante a gente se voltar para as culturas indígenas, não só porque estão sendo ameaçadas, mas também porque são de uma riqueza muito grande. Estive lendo livros como A Queda do Céu (2016), do Davi Kopenawa, Ideias Para Adiar O Fim do Mundo (2019), do Ailton Krenak… E esse último título me chama a atenção porque parece que estamos vivendo o contrário, né. No momento em que o colapso ambiental está prestes a se tornar irreversível, nós temos governantes que não acreditam no aquecimento global e desprezam a preservação do meio ambiente. Mas esse interesse pela cultura indígena já existia em mim e eu tinha um desejo de conhecer uma aldeia. Minha filha já tinha certa aproximação com os iauanauás – visitou a aldeia deles algumas vezes e já tinha feito alguns trabalhos com eles –, e então ela me convidou, e nós fomos. Tivemos uma vivência durante uma semana por lá no ano passado e fiquei deslumbrado com a riqueza da cultura, com a música, com a medicina, com o conhecimento, com a doçura, com a gentileza… Na música “Língua Índia” eu já tinha feito a melodia e tinha começado a fazer a letra, mas acabei a letra lá, enquanto pensava nas transmutações da língua pelos falantes, como também a contaminação das línguas indígenas no português que se fala no Brasil, que veio do latim, tudo isso tá na música. No caso de “Dia de Oca” eu realmente fiz lá, foi resultado do impacto do que eu estava vivendo ali. Fiz a música pra eles, como uma retribuição ao que eles estavam me oferecendo, inclusive mostrei lá na aldeia, cantei com eles, foi muito bacana. Uma experiência transformadora.

Deve ter sido uma experiência sem igual.
Pois é, eu voltei muito impregnado da experiência. Aliás, na volta eu me machuquei no pé e fui ao hospital ainda com a pintura no rosto. 

E essa experiência de algum modo também influenciou a decisão de gravar o álbum no sítio-estúdio mais uma vez?
Isso foi algo independente, mas um dos “reais” que eu busco é o contraponto do ritmo da cidade e da velocidade da informação nos meios digitais. Encontrei esse contraponto no contato com a natureza, de fugir um pouco mesmo, de ter tempo de fazer as coisas mais lentamente, tempo para contemplar. Gravar lá no sítio propicia isso: um mergulho mais profundo no que a gente está fazendo. Entre as gravações a gente está dando um mergulho no lago, dando uma caminhada e encontrando os bichos, ou tá concentrado na música. Essa imersão foi muito produtiva. Além dessa rotina eu tinha os músicos tocando junto comigo, fazendo os arranjos, e nesse ritmo em uma semana já gravamos todas as músicas. O Real Resiste já é o segundo disco que eu gravo lá e agora eu só quero gravar lá porque é muito inspirador [risos].

Essa atmosfera com certeza ficou bem traduzida nas músicas do álbum, já que podemos sentir que ele é bem contemplativo… também pela ausência dos instrumentos de percussão, né?
Eu já tinha feito algo assim em Qualquer (2006), mas agora é um pouco mais diferente. Aliás, o show que eu vou fazer agora será ainda mais enxuto. Vou fazer algo que nunca fiz antes, que é apresentar no show de lançamento deste álbum com voz e piano, só com acompanhamento do pianista, que vai ser o Vitor Araújo. Vamos começar a ensaiar em breve, mas eu tenho a intenção de trazer outras canções que dialoguem com a ideia d’O Real Resiste. Também sempre separei minhas performances de poesia dos shows de música, e agora pretendo dar uma misturada, sabe? 

Voltando um pouco para a questão política, na sua opinião, qual é a força política da comunidade artística no nosso cenário atual?
Acho que a cultura é uma força em si, é a identidade da nação. Você não tem uma garantia de futuro sem valorizar a cultura, a educação… Acho que essa representatividade é enorme. Só não dá pra esperar que a cultura sozinha vá resolver a questão política. É uma questão complexa que envolve interesse econômicos, uma série de coisas. O que a cultura pode fazer é ter voz ativa de cidadania, dos valores que nos importam. Esperamos não apenas da cultura, mas também do cidadão da sociedade uma postura ativa de defesa da democracia.

Desde muito jovem você tem um olhar sensível e pensamento crítico. Mas qual é a sabedoria que você sente que adquiriu ao longo da carreira, depois de tantos álbuns em sua discografia?
Acho que existe uma experiência que a gente vai acumulando que dá uma certa maturidade, e isso acontece através de várias coisas. No canto, por exemplo, fui aprendendo a colocar melhor a minha voz, a relação entre letra e melodia para que seja feita de uma forma natural. Aprendi a lidar com a espontaneidade, sabe? Cada vez mais naturalmente. Ao mesmo tempo em que eu vou lapidando muito as coisas que eu faço, prefiro experimentar vários caminhos, trocar as palavras, tirar e pôr, vou fazendo muitos rascunhos, mas sempre tem que ter o dado espontâneo e natural. Apesar de feito e refeito várias vezes, a busca é sempre essa naturalidade. A adequação da voz à melodia, o timbre, a entonação, o arranjo… Isso é uma coisa que eu acho que a gente vai acumulando com a experiência: conseguir fazer música nessa condição natural e adequada, cada vez melhor.

Arnaldo Antunes dilata os sentidos de real em novo disco (Foto: Márcia Xavier)

E para finalizar: o álbum termina com uma música que tem uma pergunta no título… Eu gostaria de replicar esta pergunta. Onde foi parar o seu coração, Arnaldo?
[Risos] Meu coração tá em muitos lugares, mas ele não tá perdido como o do personagem. Acho que ele está dividido entre os afetos, e tentando fazer esse contraponto de ser alguém cada vez mais apegado a coisas muito primárias, sabe? Conforme a idade passa, a gente vai se apegando cada vez mais a coisas muito primárias que vão se tornando muito importantes – para mim vem sendo a natureza, os animais, os indígenas, a arte, a cultura –, e assim vou misturando sempre os meus afetos ao trabalho. Eu não saberia fazer de outra forma.

É o seu “real” existindo… e resistindo. 
Isso. Passa por um filtro amoroso inevitavelmente, acho que essa é a nossa grande resistência à cultura do ódio que estamos vendo tomar conta do Brasil atualmente. A resposta tem que ser dada através de uma coisa amorosa, caso contrário a gente tá perdido… Se o coração se perde, a gente também perde [risos].

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13/02/2020

Lou Reed é minha bússola.
Tássia Costa

Tássia Costa