Entrevista | Aláfia faz do afeto seu fato em “Liturgia Samba Soul”

04/11/2019

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Brenda Vidal

Por: Brenda Vidal

Fotos: Renato Nascimento/Divulgação

04/11/2019

Depois de um registro cheio de acidez como São Paulo Não É Sopa (2017) e de tantas reviravoltas no campo político e social do Brasil de 2017 até os dias de hoje, muitos não achariam que o Aláfia teria como norte do seu novo trabalho o afeto. O que para os desavisados parece escapismo, na verdade é a força motriz da revolução sonhada pela banda.

Em Liturgia Samba Soul, lançado este ano, o Aláfia presta sua homenagem ao samba soul, reincorpora as sonoridades cadenciadas e dançantes dos primeiros álbuns e decide abrir caminhos, mesmo em tempos tão turvos, reivindicado o afeto como seu fato e seu feitiço, como anunciam no single “Canção Pra Nós”.

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A reverencia à ancestralidade musical, o processo em estúdio e a potência do afeto em tempos caóticos. Sobre isso tudo e muito mais, conversamos com o fundador e diretor do Aláfia, Eduardo Brechó, no papo que espera por você a seguir. Dê play em Liturgia Samba Soul e leia tudo pra já!

Eduardo, é o quarto disco de vocês, já são sete anos de banda e 11 integrantes – com algumas modificações de membros. Como foi ir para o estúdio fazer Liturgia Samba Soul e como esses fatores – discografia, ser uma big band que tá há setes anos na estrada – influenciam nesse processo? 
Ah, vai ficando cada vez mais fácil. A gente tem mais experiência, até mesmo em estúdio, vai aprendendo bastante, melhorando repertório e a dinâmica vai melhorando, mas sem muita variação do que é, sabe? A gente parte sempre do mesmo princípio que é o conceito do Aláfia: a união do tradicional a uma roupagem urbana e contemporânea, baseado nas narrativas míticas ancestrais e tal. Nós continuamos nisso. A banda, a parte da cozinha nesse disco, gravou do jeito mais fluído do que nunca. Nos outros álbuns, eu chegava com a coisa muito pronta, as linhas dos instrumentos muito prontas. Dessa vez, a gente sentou mais para tocar e arranjar juntos a cozinha porque a gente se conhece, já tem um entrosamento, já sabe quais macetes queremos usar, todo mundo que tá ali tá consciente, participando. É uma formação mais consciente, mais presente e mais participativa do Aláfia

Vocês pegaram um som que já é híbrido, que é o samba soul, misturaram com a música urbana e todos os ritmos que são evocadas a partir da espiritualidade afro-brasileira. Como foi essa investigação dos limites do samba soul? Como a estética dessa fusão foi trabalhada para que não se perdesse a coesão? Vocês tinham essa preocupação? 
Sim, tínhamos essa preocupação, mas depois eu percebi que a nossa sonoridade é uma coisa praticamente espontânea, que não tem muito pra onde fugir. Ela vem da história dos terreiros, que vai tá sempre muito latente, e essa é a identidade real do Aláfia. A relação com o samba soul vem de antes do Aláfia, o samba soul vem dessa musicalidade dos anos 70 e 80, que é uma coisa que a gente mergulha, que a gente bebe muito. Nas nossas conversas, enquanto músicos, sempre buscando referências, sempre nos chamou a atenção o quão inventivo eram os músicos dessa geração. E também me chamou a atenção o fato de eles não serem muito reconhecidos pelo grande público, nem terem o reconhecimento midiático à altura da obra deles. E eu sei que isso tem muito a ver com o racismo estrutural do Brasil, então o estilo de vida desses músicos é a luta, suas dificuldades, tudo que essa realidade brasileira impõe. Então, o próprio samba soul passou por isso de não ter sido levado a sério enquanto a bossa nova foi. Acho que a nossa ideia é mais afirmativa, por isso fizemos questão de homenagear nominalmente alguns heróis da nossa música, que são pessoas que a gente gostaria de ver sendo reverenciadas por todos os músicos do Brasil, cantores, cantoras, compositores e compositoras que fizeram e fazem esse tipo de música mas ainda não se sentem reconhecidos e acabam morrendo às mágoa. É um tipo de cuidado íntimo, de músico pra músico, até no sentido de tentar cuidar dos nossos, sabe? Acho que esse disco tem muito dessa dimensão de cuidado e do afeto. 

O disco antecessor, São Paulo Não É Sopa, é bastante agudo, enquanto Liturgia Samba Soul caminha para algo um pouco mais leve, afetuoso e dançante. O que mudou nessa transição do terceiro para o quarto disco e como vocês chegaram em um resultado tão diferente? 
Bom, eu acho que não teria como falar de São Paulo de outra maneira. E também têm alguns elementos de leveza no disco, são poucos os momentos que cabiam, e São Paulo Não É Sopa é quase um musical feito para a cidade de São Paulo. Enquanto o Liturgia Samba Soul é um álbum mais diverso, ele tem essa inspiração no samba soul, mas as temáticas variam muito; eu relacionaria ele mais com Corpura (2015), outro disco do Aláfia. Em São Paulo Não É Sopa a gente tentou fugir um pouco dessa estética, que é uma estética muito fácil pro Aláfia ter porque é espontâneo, é a nossa identidade. Digamos que o São Paulo Não É Sopa foi mais pensado para não soar assim do que esse [Liturgia Samba Soul] foi pensado para soar assim. Esse é mais normal, é mais o que é o Aláfia mesmo. No terceiro disco, eu tinha um distanciamento muito grande pra fazer, pensava muito, e tudo tinha que servir para aquela onda de falar sobre São Paulo, então tinha que fazê-lo soar ácido, tinha muito ruído. Esse aí é bem livre, mas ele não é poluído. Procurei fazer pouco overdub, só uma linha de guitarra, só uma linha de baixo, uma linha de teclado, etc, não queria colocar um monte de camada. 

No single “Canção Pra Nós” vocês reforçam muito a potência do afeto, em versos como “o afeto é o nosso feitiço”. Você pode comentar para a gente os usos e as intenções do termo “feitiço” que tá na canção – já que estamos em tempos de fake news e ela é uma palavra que evoca muitas coisas -, e como o afeto pode conduzir a transformações em tempos tão caóticos? 
Bom, vamo lá: o [Karl] Marx fala do feitiço, né, do fetiche da mercadoria, que é aquela motivo que faz com que um nike custe o que ele custa. Qual é o tanto de feitiço que é colocado no produto para que ele passe a custar tão mais do que é o custo de sua fabricação, entende? Essa é a mais-valia, que envolve o feitiço. Foi legal que você falou de fake news porque ela enfeitiça. Ela usa aspectos de feitiçaria, de ilusão, que é essa propensão do ser humano com o animismo. Ou seja, a gente coloca alma em coisas que não tem alma, a prosopopeia da linguagem, a personificação. Todos os objetos que ganham vida, foram animados por nós. E a gente passa a adorá-los. O capital passa a ser adorado, o herói, o mito, todos eles passam a ser adorados. Então, a gente os enfeitiça, sejam as pessoas ou as coisas, porque o ser humano tem essa inclinação a animar, a adorar, a enfeitiçar; isso é o feitiço. E “eles” chamam a gente de feiticeiro, né? Mas o capitalismo é baseado em feitiço. A fake news também é um feitiço, tudo o que aconteceu nas eleições de 2018 é jogo de ilusão. Quando a gente fala que “o afeto é o nosso feitiço” é porque eu aprendi que o que realmente transformou a minha vida foram momentos de afeto. É o que valeu além de qualquer tipo de feitiçaria, nesse sentido, de tentativa de manipulação da natureza, tentativa de interferência no destino através de soluções mágicas. Eu não tô falando de soluções mágicas, eu tô falando de algo bem simples que é o afeto. E isso foi o que mais transformou, de fato, o meu destino. Pra mim, é muito melhor lembrar do afeto da minha mãe do que qualquer outro tipo de solução mágica ou intervenção artística ou política, de palanque. É difícil explicar. Eu gostei da pergunta, faz pensar. No disco, a gente trabalhou com o afeto e “Canção pra Nós” foi a primeira que puxou a vontade de fazer o disco, que fala muito de todo mundo ficar mais junto. A última música que eu fiz para esse disco foi “Faca Fake” porque não deu conta de ficar falando só de afeto já que a realidade não tá assim… mas, ainda hoje, ela não é uma das minhas prediletas não. Acho que a gente, enquanto Aláfia, tá vibrando mais no afeto. 

O afeto que vocês pregam no disco me parece ser o afeto que não é alienante, o afeto propositivo. Digo isso porque, às vezes, alguns discursos de afeto meio que fecham os olhos para as questões de desigualdade e acabam até flertando com discursos meritocráticos. Como essa postura política e crítica sempre presente nos versos do Aláfia foi costurada a esse samba soul mais cadenciado e dançante? Foi de um jeito mais orgânico? 
Pra falar a verdade, nesse disco eu não pensei muito em fazer a crítica não porque a gente já tem a nossa trajetória aí. O que a gente faz não é um bagulho forçado, então é muito natural o jeito que a gente compõe. “Abre Caminhos”, a primeira faixa do disco, é uma canção política para mim, afinal fazer uma música para Exú, do jeito que eu faço, com os dados melódicos que eu uso, faz dela enfrentativa. Eu posso não estar falando “Bolsonaro”, “fulano”, e “sicrano” na letra, como eu já fiz em outras músicas. Eu não gosto de ser ilustrativo, eu tento não fazer muito panfleto. O Jairo Pereira às vezes tem uns discursos mais diretos, então eu deixo um pouco mais para ele hoje em dia essa parte do discurso mais direto e procuro trazer questões, entendeu? E eu acho que ainda cabem questões e sempre caberão questões. Não é porque a gente tem que se unir que não cabem questões. Temos várias no disco como “Levante Amazona”, a própria “Faca Fake”, “Dama das Demandas”, todas são músicas que contestam. 

Como foi trabalhar com as parcerias de Sueidê Kintê e Carlos Dafé? 
O Dafé chegou por ter sido um cara que conviveu com o Oberdan Magalhães [Black Rio], que é a pessoa que eu homenageio nessa música. Então, quis chamá-lo para cantar essa homenagem e também enquanto uma maneira da gente se sentir abençoado pelo cara, de não estar correndo paralelo. Não faz muito sentido eu estar falando dos caras e estar correndo deles, sabe? Se tenho a oportunidade de trazer um deles para perto, pelo menos, e trocar com ele, vai ser bom. E ele nos mostrou que nós estamos em um caminho que ele acredita. A Sueidê é minha amiga, é poeta, e é da Nação Jeje, e como eu percebi que o disco tava se caminhando para uma onda que vem do Daomé, e eu quis chamá-la, já que ela é iniciada no Jeje, e a Raquel, que é compositora de “Levante Amazona”, também. Então, chamei a Sueidê para falar da questão de ser mulher sob um ponto de vista daomeniano no Brasil. 

Vocês fazem homenagem às referências musicais de décadas passadas. Como a reverencia ao passado pode nos guiar na construção de um futuro mais unido e afetuoso? 
Eu acho que se você pegar a mensagem do Aláfia, a genta usa muito [ideogramas do sistema] Adinkras, e o que a gente mais usa é do Sankofa. E o Sankofa fala exatamente sobre isso. Ele diz que não é demérito nenhum você apreender com o passado pra andar pra frente. Aquele passarinho que olha pra trás, né? Esse é o Sankofa. Eu acho que esse ensinamento é fundamental para a construção do que a gente entende como futuro. Nem existe futuro, né? Acho que tudo é um ciclo que a gente faz parte, estamos é construindo o presente a toda a hora. O que virá também tem a ver com o que está sendo e com o que já foi, não existe muita divisão. Quando a gente fala do Sankofa, é justamente isso, reverenciar o que a gente sabe que já se passou. A gente reverenciar o hoje para que a amanhã a gente tenha uma noção mais consciente sobre o espaço que já temos, sobre a linha de continuidade. O Aláfia faz parte de uma continuidade da música negra do Brasil. E é isso que a gente quer ser.  

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04/11/2019

Brenda Vidal

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