Entrevista | Alice Caymmi desabafa: “O corpo tem que ser libertado!”

23/05/2016

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Divulgação

23/05/2016

Caso você não saiba, Alice Caymmi é uma mulher de posicionamentos fortes. Não satisfeita em ter lançado uma versão da música “Homem”, do Caetano Veloso, em seu disco Rainha dos Raios (2014) a cantora soltou há poucos dias um clipe para a faixa onde contracena com as travestis Melissa Paixão e Viviany Beleboni (assista abaixo).

Como ela afirma na entrevista que você lê abaixo, a gravação dessa faixa foi motivada por um forte desejo de abrir a cabeça das pessoas:

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– É pra problematizar as questões de gênero, trazer questionamentos pra quem está no processo de entender o masculino e o feminino dentro de si (independente de ser transgênero ou não) e é também uma maneira de ser feminista em um lugar muito estranho. É uma valorização do feminino de um jeito muito torto e maluco: sendo contraditória, acabo exaltando as mulheres. Até porque a descrição do homem que o Caetano faz é totalmente simplória nessa música. E o que ele fala das mulheres é interessante pra caramba – explica.

Nós também conversamos sobre seu lançamento mais recente, o DVD Rainha dos Raios – Ao Vivo, a crise na noção de autoria dentro da música, o funk carioca, a tal da “nova MPB” e algumas outras provocações. Desça a página e divirta-se.

Como foi a gravação do seu DVD?
Foi uma coisa muito rápida. Eu fui tocar no São Paulo Fashion Week e o Paulo Borges (idealizador e diretor criativo da SPFW) me encontrou lá, e sugeriu de montar um show. Aí ele trouxe algumas imagens e as ideias que ele tinha e eu disse, “vamos montar”. Em menos de um mês, estávamos gravando! Porque aí ele falou: “Vamos aproveitar pra fazer um DVD?”, e eu falei: “Vamos!”. O que tá no DVD é o primeiro show que eu fiz.


Já começou a tour registrando ela pra eternidade.
Exatamente! Uma loucura. Só eu mesmo pra fazer isso.

Você já tinha o desejo de lançar um registro audiovisual?
Ah, não tinha. Porque eu sempre fui fã de disco e de que as pessoas vão ver o show ao vivo. Mas no caso desse show, se não tivesse registro seria uma pena muito grande porque foi algo muito especial. Eu nunca tive o hábito de registrar nada, eu sou meio chata com isso, então eu nunca faço questão. Mas, dessa vez, eu fiz.

Você consegue pensar na sua música separada da parte visual?
Não. Por exemplo, eu comecei o Rainha pensando na capa antes de começar a gravar. Vinham muitas imagens de auto-retratos na minha cabeça, eu comecei o disco assim. E, pra fazer o Rainha, revisitei alguns filmes, vários do Tarantino, o Pele de Asno (1970)… Gosto de procurar inspiração em outras artes pra trazer pra música camadas a mais de significado. Sempre foi o meu desafio. Eu me importo muito com a estética, figurino, tudo. Gosto muito de criar em cima disso.


Seu disco de estreia saiu quando você tinha só 21 anos, sua percepção como artista mudou de lá pra cá?
Eu já queria ser quem eu sou hoje, eu só estava no processo. Eu sabia que artista eu queria ser, só estava no processo de crescimento. Mas não quis passar esse tempo todo sem gravar um disco, aí eu fiz o homônimo, que foi super importante pro meu processo. Mas eu já almejava esse ponto de expressão, essa autonomia artística. Fui conquistando isso pra conseguir ter o chão que eu tenho hoje pra trabalhar.

No disco de 2012, a maioria das músicas é de sua autoria. E no Rainha dos Raios (2014) essa relação se inverteu. O que levou você a essa escolha?
Eu descobri que eu não me curtia tanto como compositora. Eu me interessava mais pelas palavras dos outros, as situações dos outros que poderiam ser interpretadas por mim. É mais um conceito do ator, de tentar ser outro. Essa coisa de ser outro me trouxe o Rainha. E as situações inúmeras pelas quais eu nunca passei e que eu tive que expressar. Essa é a graça.

Quais são as possibilidades que se abrem quando você explora uma música de outra pessoa?
Olha, são inúmeras. Cada vez que eu canto descubro uma parte diferente da canção. Como a motivação dela não foi minha, não partiu da minha história e dos meus anseios, eu vou descobrindo ela aos poucos. Essa é a graça.

Seu primeiro disco foi muito relacionado a uma sonoridade que muita gente chamou de “nova MPB”.
Aff, aham. Aconteceu muito isso. Isso foi um dos motivos da transformação também. Eu tenho preguiça disso. Muita preguiça. Não gosto de ser chamada assim. Eu não sou isso. Não existe isso, inclusive! O que é hoje a música é o que a música é hoje, não uma reedição do passado. Isso invalida qualquer obra.

É justamente sobre isso que eu ia perguntar porque é um rótulo tão vazio que…
(Interrompendo) Ah, “nova MPB”, “neo tropicalista”, tudo isso invalida a geração nova. São gestos de invalidar essa geração. E se auto-denominar isso é um tiro no pé gigante. É um tiro na cabeça!

Até porque a própria MPB…
(Interrompendo) Já morreu! Já era! Ninguém mais faz isso. É outra coisa. Morreu! Só quem viveu aquela época e tá vivo até hoje é que faz o que é aquilo. Ninguém mais vai conseguir fazer. Não adianta nascer agora, em outro contexto, e querer fazer. Não vai fazer! Aí fica vivendo um luto, fica vivendo uma frustração, invalida o próprio trabalho e morre na praia.

Nesse sentido, acho que temos muito a aprender com o Caetano Veloso, que já não faz MPB há muito tempo.
Não só isso a gente tem a aprender com o Caetano! O Caetano é um absurdo. Ele consegue não envelhecer, ele é um Peter Pan. Ele conseguiu, depois do disco (2006), com o Zii e Zie (2009) e o Abraçaço (2012), trazer pra minha geração o que há de mais moderno. Isso é inacreditável! Quando ouvi isso eu falei: “Ele não tá fazendo isso! Não é possível!”. Eu escutei a primeira, a segunda, a terceira faixa do e falei: “Eu não acredito que ele tá reformulando o rock brasileiro. Não é pos-sí-vel uma coisa dessas!”. E ele fez isso. Ele tem 300 anos de idade e fez isso. Eu fico muito chocada. Não é uma pessoa normal, gente. Ele nasceu pra ser moderno pra sempre.

Me soa muito irônico que no seu disco você cante músicas do Caetano, do Gil, da Maysa, porque você pega grandes ícones da MPB e traz para uma linguagem contemporânea justamente se desvencilhando do rótulo de nova MPB.
Mas também trazendo essa carga. Claro que ela existe. É que você tem que pensar do ponto de vista de quem ouve minha voz e lembra do meu avô. Eu não sou antiga, eu não sou da MPB, mas a minha voz tem um registro no inconsciente coletivo da MPB que um dia foi. É interessante esse contraste. E não é a escolha do repertório que faz do seu disco algo moderno. É a maneira como você interpreta o seu repertório. Essa mania de ser autor a qualquer custo, mesmo que uma música que você fez não transmita nada, é uma idiotice. Porque ninguém se importa! Ninguém se interessa. Ou você faz uma música que fala ao coração de todo mundo, ou quase todo mundo, ou você esquece! Ninguém quer saber se você é mais importante porque você é o autor. Não! Você é o artista que você é. É o que eu penso. Acho que há um orgulho em ser autor que é desnecessário. A não ser que você seja um hitmaker do nível do [Michael] Sullivan, entendeu? Fora isso, pega as músicas que você gosta de cantar e se joga! Hoje não tem mais essa noção de que o fulano é um grande autor. Ninguém tá nem aí pra isso! O público não tá nem aí pra isso. Na época dos festivais da canção se falava no autor. Hoje, o autor, coitado, tá totalmente desmembrado. Então, eu vou me preocupar em ser autora de alguma coisa no momento em que o autor está morrendo? Não! A imagem do autor tá agonizando. É por isso que a gente tá falando tanto do Romero Britto, há uma crise na noção da autoria. Simples assim.

Será que foi a internet que nos levou a isso?
Também, mas essa é uma das questões. O que eu tô falando é uma coisa maior, é a crise na noção de autoria. Há uma cultura mundial de não se importar com o autor. Antigamente tinha isso, de repente se perdeu. Não é só pela internet não – pela sua relação com o produto, a venda e a pirataria – é em relação a tudo. O funk carioca chegou esculachando tudo e todos porque alguém fazia uma base e cantava uma coisa, aí outro pegava a mesma base e cantava outra coisa e aquilo não era de ninguém. A noção de autoria se diluiu ali e continua se diluindo.

Nesse sentido, um grande mérito seu é trazer o MC Marcinho lado a lado com artistas refinados como o Arto Lindsay, a Maysa.
Isso! A graça é essa! A graça é você não ter distinção de cultura e sub-cultura. Isso não existe! Tudo na mão de uma mesma pessoa faz sentido no final. Eu não me importo em me validar através de qualidade. Essa noção de qualidade não passa na minha cabeça. Qualidade, pra mim, é o que eu gosto de fazer e o que eu acho interessante.

Houve algum motivo especial para escolher “Princesa”, do MC Marcinho?
Eu gosto muito dessa música, eu gosto muito do funk melody. Tenho um respeito pelo funk carioca absurdo e, agora, pelo crescimento do funk de São Paulo também. Através do MC Brinquedo, do Bin Laden, Guimê, essa galera… Tenho muito respeito. E tenho muito respeito pelo Calypso, pelo Wesley Safadão. Acho o trabalho deles interessantes e tem coisas ali no meio e que a gente pode pegar, reinterpretar e fazer da maneira que a gente quiser. Aí, quando você vê, está em uma festa de ricão, ou de jornalistas e críticos, e tá tocando MC Marcinho. É só uma maneira que eu encontrei de obrigar as pessoas a ouvirem MC Marcinho e perceberem que elas amam o MC Marcinho. Elas só não sabiam que amavam, agora elas sabem. A ideia foi essa, mostrar: “Olha o que vocês estão perdendo”.

Lembrei agora da Björk botando o Brinquedo pra tocar.
Pô, ela é esperta pra caramba! Ela não tá de bobeira, não! E vou falar, aquele Arca também, produtor do disco, não tá de bobeira faz é tempo! É uma bicha ma-ra-vi-lho-sa! Ele é argentino, então ele tá aqui do lado. E ele tá olhando. Ele deve ter chegado e falado assim: “Amor, olha isso aqui” [sobre o MC Brinquedo]. E ela ficou maravilhada. Até porque a doida entende um pouco de português, o que é hilário.

Dentre as várias provocações que se encontram na sua obra, eu queria comentar especialmente a versão que você fez de “Homem”, do Caetano. Essa faixa aponta para uma forte identificação sua com o universo masculino, é mais uma forma de problematizar as questões de gênero, ou ambos?
É pra problematizar as questões de gênero, trazer questionamentos pra quem está no processo de entender o masculino e o feminino dentro de si (independente de ser transgênero ou não) e é também uma maneira de ser feminista em um lugar muito estranho. É uma valorização do feminino de um jeito muito torto e maluco: sendo contraditória eu acabo exaltando as mulheres. Até porque a descrição do homem que o Caetano faz é totalmente simplória nessa música. Apesar de ele falar no refrão com um orgulho muito estranho, muito cínico, ele fala mais das mulheres. E o que ele fala das mulheres é interessante pra caramba. É escatológico, ele fala do corpo feminino e não é tabu. É pra tirar esse tabu também! Ele fala em menstruação, lactação, adiposidade, tudo isso. É falar sobre isso sem fazer tabu.

Será que o Brasil tem se tornado um país menos preocupado com o pudor? Estamos avançando nesse sentido?
Ah é, um pudor absurdo que não faz o menor sentido com a vida básica nossa do dia a dia. Olha, pra alguns, o que é obsceno é o corpo. Pra outros, obsceno é o sexo. Pra outros, obsceno é o palavrão, o xingamento, o baixo calão. Pra mim, obsceno é roubar dessa maneira e olhar pra frente de uma câmera e sorrir. Se é pra ser purista, nesse sentido eu gosto de ser conservadora. Agora, em relação ao corpo não. O corpo tem que ser libertado! Outras coisas são promíscuas e não podem acontecer.

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23/05/2016

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

Ariel Fagundes