Entrevista | André Sampaio e o sagrado afro-rock de “Alagbe”

21/12/2017

Powered by WP Bannerize

Rafael Donadio

Por: Rafael Donadio

Fotos: Divulgação

21/12/2017

Carioca de Vila Isabel, André Sampaio foi criado em família cristã e foi adepto do movimento Rastafari durante muitos anos, antes de começar a frequentar as casas de Candomblé. Há seis anos iniciado Ogan Alagbe (lê-se “Alabê” – guardião da música sagrada do candomblé), hoje, o músico aponta sua guitarra para o afro-rock dos anos 70 em seu segundo disco solo, Alagbe.

“Ser Alagbe não é só quando estamos no sagrado – nos Ilê Axés, as casas de Axé –, acontece no cotidiano. Exercemos, também, essa função de contato com o mundo exterior, de sagrado com o mundano”, diz. Apresentando-se como Alagbe guitarrista, o músico acrescenta um tempero brasileiro ao afro-rock e se propõe a desmistificar as tradições de raízes africanas. Tirá-las do folclore, do exótico, e trazer ao “mundo exterior”.

*

Ainda integrante do grupo de reggae Ponto de Equilíbrio (do qual fez parte durante 15 anos), Sampaio gravou em 2013 o primeiro trabalho solo, ao lado da banda Os Afromandingas, Desaguou. Agora, fora da banda, Alagbe reflete um novo momento: “Eu lanço realmente como o meu trabalho. Antes eram minhas influências, que eu também colocava no Ponto”, comenta.

Sem instrumentos de sopro nas 13 canções e com referências do candomblé (nos ritmos e nas letras), o guitarrista procura os acordes com os movimentos de quem toca instrumentos de percussão. Para dar ainda mais força ao instrumento, a produção foi feita pelo também guitarrista Cris Scabello (integrante do Bixiga 70) ao lado do próprio Sampaio. A mixagem é de Victor Rice e masterização de Fernando Sanches.

O disco traz ainda boas participações, como as de Maurício Fleury (tecladista do Bixiga 70), Roberto Barreto (que toca a guitarra baiana no BaianaSystem), DJ Nato PK (programações), Nelson Maca (poesia), Lenna Bahule (de Moçambique) e a cantora nigeriana Okwei Odili. Além de parcerias com Sekou Diarra (Burkina Fasso), Maurício Bongo, Pedro Leão e Okwei Odili.

Por telefone, conversamos com André Sampaio sobre as pesquisas das raízes da música africana e seus guitarristas, o percurso da carreira como músico, a produção do novo lançamento e os simbolismos e influências do Candomblé dentro desse trabalho.

Antes de falar do disco, eu gostaria que você falasse um pouco da sua experiência como Ogan Alagbe.
A função do Alagbe dentro das casas de Candomblé Queto, que é a tradição que eu faço parte, é ser o guardião das músicas, dos cantos e dos instrumentos sagrados. É aquele que faz a conexão do sagrado com o mundano através da música. Traz as forças dos orixás através do toque. Alagbe quer dizer “senhor da cabaça”, que é um instrumento que a gente toca também, além do atabaque. Além de instrumentos de percussão, para nós (os instrumentos) são divindades, são orixás. Tudo tem um toque, e é dessa chave, desse “aparelho de WiFi” ancestral, que a gente se conecta os nossos ancestrais.

No seu caso, como guitarrista, como é feita essa conexão?
Eu comecei a entender que o meu lugar também era de fazer isso através da guitarra. Para nós, o Candomblé vai bem além da religião em si. Então ser Alagbe não é só no momento em que estamos no sagrado, acontece em todos os momentos. Inclusive, a figura dos Alagbes e Ogans é muito presente no inconsciente coletivo, como os tocadores de samba, os mestres de coco, os tocadores de maracatu. Então o Ogan exerce essa função também, de contato com o mundo exterior, do sagrado com o mundano.

As duas primeiras faixas, “Abram os Caminhos” e “Alagbe”, trazem você, guitarrista, utilizando a música para trazer o mundo exterior para dentro do disco?
Sim. Eu falo numa perspectiva de alguém que é de axé e que está querendo comunicar para as pessoas como eu vejo o mundo. Através desse prisma de ver o meu deus no vento, a nossa divindade numa árvore, num sol que brilha ou num sorriso de uma criança. E tento também desmistificar, sair um pouco do lado folclórico. Para nós, Ogum é quando eu falo “Armadura, espada, rei ferreiro quem forjou”, que estou falando da tecnologia; quando eu falo “Soem os tambores / Nosso rei já trovejou”, eu estou falando que o trovão e o som do tambor me remetem a Xangô, que é o pai da justiça: “Pra fazer valer justiça é só grita-lo: Kawô Kabiecilé!”. Então, eu trago esses elementos para o nosso dia a dia e peço respeito. Respeito à religiosidade e a essas tradições porque a gente está vivendo um momento de ataques agudos de racismo institucional, religioso e cultural contra as manifestações religiosas de matrizes africanas.

Sobre Alagbe, como foi o processo de produção?
Eu pré-produzi, já fui com bastante coisa adiantada. Fiquei o mês de janeiro (2017) todo no Rio trabalhando nisso. Já tinham músicas prontas e outras que foram sendo feitas nesse processo. Esse foi o momento de assumir mais eu mesmo, o meu trabalho. Apesar de ter sempre uma banda que me acompanha, é um trabalho solo. E com o Cris (Scabello) foi foda, primeiro por ser um cara que é de uma das bandas com maior referência no Brasil atualmente, no afro moderno e instrumental; segundo, o fato dele ter me curtido como guitarrista. Ele me incentivou a assumir esse lugar de guitarreiro, de protagonismo da guitarra roqueira, misturando todos os universos. Ele também me ajudou a ter um outro olhar, vindo de fora, de alguém que entende e que ouve o que eu ouço para me inspirar. E também foi ele quem trouxe o Victor Rice, que mixou o disco.

Victor Rice inclusive lançou um disco, Smoke, no mesmo dia que você lançou o Alagbe.
Pois é. Eu gosto muito do que ele faz. Acho que o Victor faz coisas bem diversas. No caso do meu disco, ele achou uma sonoridade dele. O meu som tem uma sonoridade bem própria e o Buguinha Dub, que fez o primeiro disco (Desaguou), mandou super bem também. O primeiro disco tem outra sonoridade, porque ele foi sendo feito aos poucos, a gente gravou ao longo de quase dois anos, em várias viagens e tal – Mali, Moçambique, Portugal, Rio de Janeiro, Pernambuco. Esse segundo disco é um pouco mais conciso, mais porrada, e eu acho que o Victor se conectou bem nas ambiências. E está moderno, está atual.

Que pesquisas você fez para o disco durante essas viagens que mencionou?
Primeiro eu fui para Moçambique, em 2009, num projeto de intercâmbio cultural. Fiquei lá dois meses aprendendo com o mestres de mbila, um instrumento da família dos xilofones, e de lá eu consegui umas gigs para dar um rolê na Europa. Fui para o Mali e Burkina Fasso, fiquei dois meses lá também. Aprendendo com alguns mestres, tocando e gravando. Saí de lá com a participação do Vieux Farka Touré, que entrou no disco Desaguou, e mais três músicas com participações de artistas do Mali e Burkina Fasso, entre eles o Sekou Diarra. Com ele eu aprendi muita coisa de guitarra de Burkina Fasso, que é uma guitarra bem rock. Mandinga, mas rock na essência. Aí fui pesquisar música mandinga e os instrumentos dessa região. O Alagbe foi meio que o amadurecimento, é a volta dessa experiência de lá com experiências que vivi aqui. Inclusive do meu amadurecimento enquanto Alagbe e de entender o meu lugar nessas tradições e como um dos guerreiros que está na linha de frente da resistência. O meu mais velho (sujeito mais antigo no Candomblé) Aderbal Axogum fala isso, que nós somos artistas por ofício, os artífices de axé. Então, nós estamos, naturalmente, na linha de frente.

No percurso na carreira musical, você passou por uma banda (Ponto de Equilíbrio), depois foi solo, mas ainda com banda (André Sampaio e Os Afromandingas), e agora realmente solo. Teve essa necessidade de dar alguns passos para superar certas inseguranças?
Eu sempre trabalhei muito em grupo, sou muito do coletivo. O Candomblé é uma dinâmica coletiva. Não existe uma roda de capoeira angola se você não tem pelo menos oito pessoas na bateria e dois jogando, né? E para tocar também, eu venho muito de tocar em grupo, apesar de fazer bastante coisa sozinho. No meu caso, essa mudança foi muito porque, antes, era a minha individualidade, André Sampaio, explorando outras coisas fora do Ponto de Equilíbrio. Quando eu quis fazer um trabalho fora disso, eu quis fazer de alguma forma uma ponte entre o que eu fazia com alguma outra história. Então era o André Sampaio e Os Afromandingas, também inspirado num Chico Science e Nação Zumbi, Bassekou Kouyate & Ngoni ba, The Jimi Hendrix Experience, Curumin e Os Aipins. Por ser o primeiro disco que eu gravo tendo saído já do Ponto, eu lanço [Alagbe] como realmente o meu trabalho, antes eram minhas influências, que eu também colocava no Ponto. Não é tanto o lance da insegurança, porque o Ponto foi muito minha escola de superar essas coisas.

Uma coisa que chama a atenção logo de início é a ausência de metais, em um estilo que geralmente tem esses instrumentos. Como surgiu essa decisão de não usar o naipe de metal?
As minhas influências na música africana são mais guitarristas: King Sunny Ade – contemporâneo de Fela Kuti e guitarrista fundamental da juju music nigeriana – Chief Ebenezer Obe, Vieux Farka Touré, Ali Farka Touré, músicas africanas mais de cordas. Tem o Ebo Taylor também, que, apesar de guitarrista, tem um naipe de metal forte no som dele. A minha formação sempre foi mais roqueira. A ideia era o Bigixa 70 também participar como naipe de metal desse segundo disco. Mas mais uma vez o Cris foi ótimo, porque ele me encorajou a fazer uma coisa que eu sempre tive vontade: disco de música afro moderna sem metais. No Brasil eu não conheço um disco que faça isso e também foi bom para dar um destaque maior para a guitarra e para a formação mais roqueira.

Intenção de fazer um trabalho definitivamente afro-rock…
Essa sigla afro-rock é uma coisa interessante, que já é antiga, vem desde a década de 1970, da Nigéria, mas não é muito utilizada aqui no Brasil. Para mim, o principal afro-rock que eu conheço, antes do trabalho que a gente está propondo, são os primeiros discos da Nação Zumbi com o Chico Science [Da Lama Ao Caos, 1994, e Afrociberdelia, 1996], que é bem essa pegada, mas é da década de 1990. Essa é uma referência de afro-rock na veia. Hoje tem uma cena afro contemporânea com o afrobeat, que inclusive foi também a minha primeira aproximação desse afro contemporâneo. Mas vendo os guitarristas africanos tocando, eu me amarrei e achei que tinha um lugar que a guitarra poderia estas mais como protagonista. O próprio Kologbo (guitarrista das duas formações das bandas de Fela Kuti), que foi um dos africanos que eu vi tocar de perto, colocando distorção, foi uma das pessoas que me incentivou a isso. Eu também já havia tocado com Vieux Farka Touré, que é mais na onda do desert blues, com distorção. Gravei também com Bassekou Kouyate, uma faixa que não saiu ainda (risos), mas vai sair daqui um tempinho, com ele tocando ngoni (instrumento de cordas africano), que é uma coisa super roots, plugado no [pedal] wah wah e distorção. É o que eu sempre curti e onde me sinto confortável, no rock, então acho que é natural.

Nas composições do disco as letras falam basicamente sobre o quê?
O disco fala muito dos povos marginalizados. Não só do povo preto, mas do povo marginalizado. Na música “Alagbe” eu tento trazer a visão do que é orixá para o cotidiano, para desmistificar, sair do lugar folclórico. Acho que é um dos caminhos mais importantes para a gente deixar de ser perseguido e deixar de ser estranho, exótico. Começa com isso e termina com “Stop Fighting Immigrants” (com Okwei Odili), que fala sobre uma questão muito atual no mundo: a questão das imigrações. Fomentam a globalização, principalmente o dinheiro e as riquezas, mas querem prender a circulação das pessoas, justamente as mais exploradas. Então, sai de um lugar local, de axé e Alagbe que eu sou, e vai para um ponto que diz respeito a todo mundo. E termina com “Zumbi Vive”, um dub, que diz que apesar da guerra (“Lorogun”, que significa rito de guerra entre orixás) a gente vai continuar vivendo.

Qual o simbolismo do nome do disco, sendo você um Ogan Alagbe?
Para mim, a guitarra ocupa, assim como o berimbau e o atabaque, um lugar de ferramenta chave de conexão entre ancestralidades e atualidade. Quando eu sou confirmado Alagbe tocador esses sentidos começam a ganhar consciência. Então, basicamente, o lugar é esse, de Alagbe tocador, Alagbe guitarrista, alguém que faz essa conexão do ancestral com o contemporâneo, e de várias africanidades com essa diversidade que a gente chama de brasilidade, com uma sonoridade de rock e de afro contemporânea.

Em relação aos ataques que você mencionou anteriormente. Como você enxerga esse preconceito a essas religiões de matrizes africanas, que aparecem cada vez mais na mídia?
É uma situação muito complexa. Porque a gente vive um estado de crescimento dos movimentos neofascistas, de direita e tal, e é um movimento planetário. A gente vê nos discursos desses ataques um discurso muito próximo, se não os mesmos, dos fundamentalistas e de muitas legendas, inclusive pentecostais, que não necessariamente tem a ver com religião. São lideranças religiosas que insuflam o ódio e uma série de ataques à liberdade do outro. Existe uma mercantilização da fé, em que pessoas estão se infiltrando nas mais diversas instâncias de poder, desde a polícia e exército à política. Muitas dessas (instâncias) estão por trás dessas legendas e por trás desses ataques e insuflam supostos traficantes a isso (ataques a casas de Candomblé). A gente vive um momento em que a diferença não é bem vista, um momento em que as pessoas estão buscando uma homogeneização do pensar e da liberdade. É óbvio que em um momento como esse o primeiro foco vão ser aqueles que sempre foram perseguidos. O candomblé e as manifestações afros como um todo sempre foram perseguidas. Elas deixaram de ser crime na década de 1930, mas continuam sendo perseguidas. A diferença é que eles estão perdendo o pudor, estão filmando e tal. As agressões são de várias formas, inclusive no aparelhamento do Estado – ensinamento de religião nas escolas e tal – e na exclusão daqueles que não seguem determinada religião. São questões muito perigosas e a gente está vivendo a beira de um Estado fundamentalista. Mesmo não curtindo essa coisa panfletária, a gente está em um momento em que temos que nos posicionar, e meu posicionamento é pela tradição. Defender as tradições no geral, mas defendo as que tenho mais conhecimento e são mais próximas.

Você nasceu em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, mas atualmente mora em São Paulo. Como tem sido essa mudança?
Continuo indo muito ao Rio, claro, mas, para mim, tem sido ótimo essa mudança. Tem gente do Brasil todo aqui hoje (em São Paulo) e a gente vê muita coisa interessante, no meio deste fluxo que vive a cultura, em que tudo que é construtivo e democrático. Aqui ainda tem uma circulação interessante e eu tenho contato com o mundo todo, tive contato com o Bixiga 70, gravei com o Cris Scabello, toco com uma galera massa, enfim, tem uma circulação muito boa de ideias. O Rio de Janeiro, entretanto, está passando por um momento conturbado, principalmente no que diz respeito a área cultural, justamente por uma apropriação do meio público pelo meio privado, sendo que agora é o meio privado pentecostal. Agora a gente tem um domínio total da Igreja Universal sobre a Prefeitura do Rio de Janeiro. Aqui em São Paulo também tem várias questões, mas eu vejo que tem uma classe artística, uma classe cultural que ainda permanece sólida e se reinventando, buscando novas formas de acontecer.

São Paulo então só ajudou na construção do Alagbe?
Esse disco vem muito dos meus rolês. Fui para Europa, fui para África, entrei em contato com essa música do mundo, mas ela amadureceu aqui no Brasil – nessas idas e vindas, fluxos e refluxos – e agora que estou em São Paulo eu acho que isso voltou a ir mais para o mundo também. A música está voltando a entrar em contato com a cena internacional, mundial mesmo, que está rolando por aí.

Você teve muitas participações durante a gravação, mas qual é a formação da banda para shows?
Na verdade a gente tem uma banda base que às vezes muda um ou outro, de acordo com a necessidade. Mas a base é Maurício Bongo na bateria, o baixista é o Rico Bass (OQuadro), o percussionista é o Romulo Nardes (Bixiga 70), Zé Ruivo no teclado e Silvia Duffrayer na percussão e backing vocal.

Quais os planos para o futuro?
Para o ano que vem os planos são rodar com o disco pelo Brasil. Para o começo do ano já tem algo apontando para o Nordeste e também queremos dar uma circulada fora do Brasil no meio do ano. Saímos em algumas coletâneas lá fora, cinco lançamentos no total, então a minha música está chegando muito bem lá fora.

Tags:, , ,

21/12/2017

rafaeldonadio@gmail.com
Rafael Donadio

Rafael Donadio