Entrevista | Angela Carneosso: devolvendo à paisagem os vômitos da experiência

13/09/2017

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Thiago Cidade

Por: Thiago Cidade

Fotos: Theodora Charbel/Reprodução

13/09/2017

Não queria ser o mar, me bastava a fonte
Muito menos ser a rosa, simplesmente o espinho
Não queria ser caminho, porém o atalho
Muito menos ser a chuva, apenas o orvalho

Não queria ser o dia, só a alvorada
Muito menos ser o campo, me bastava o grão
Não queria ser a vida, porém o momento
Muito menos ser concerto, apenas a canção

*

O ouro afunda no mar
Madeira fica por cima
Ostra nasce do lodo
Gerando pérolas finas

(Re)interpretando a canção “O ouro e a madeira”, do grupo carioca Os Originais do Samba, Angela Carneosso, alter ego da multi-artista paulistana Laura Diaz, interpreta a si mesma. Fruto regurgitado da cidade que a cultivou, Carneosso é vocalista do grupo Angela Carneosso e a Peste – selecionado para participar do edital Natura Musical 2016 – e integrante do live eletro-orgânico Teto Preto, projeto nascido no ninho de serpentes da festa/culto Mamba Negra, da qual Laura é uma das fundadoras.

Em seu devir-canibal, ritmos populares brasileiros são mesclados ao jazz e ao techno, por exemplo, para dar à luz a canções de protesto que denunciam, utilizando o deboche e o imaginário cotidiano, a crise política, econômica e estética a que estamos constantemente submetidos. O vanguardismo, longe de representar um mero exagero kitsch, tem aqui uma função precisa: é o “experimentalismo como um contrapeso do conformismo mediocrizante” de que fala um outro antropófago, Caetano Veloso, no definitivo – e polêmico – Verdade Tropical (1997).

Com um EP muito celebrado nas costas chamado Gasolina (2016), do Teto Preto, Carneosso prepara-se para lançar, no ano que vem, o segundo trabalho do grupo. Enquanto isso, segue em turnê com ambas as iniciativas, expondo também o material que virará o álbum de estreia do projeto com a Peste.

Convidada pelo festival Kino Beat para se apresentar pela primeira vez em Porto Alegre, no dia 15 de setembro, no espaço Agulha (mais informações aqui), Laura conversou com a NOIZE sobre antropofagia, produção independente, performance-corpo, vinil e relação com o poder público e com o capital. No estúdio ou na rua, é sempre o mesmo assunto: “A gente ama música e vai fazer barulho, que é o que a gente gosta”. Já que o papo foi por e-mail, optamos por manter a grafia original das respostas da artista acrescentando apenas os negritos e as letras maiúsculas nos nomes, ok? Confira abaixo!

A Angela Carneosso é uma personagem, um alter ego. A Laura Diaz, uma multi-artista. Num caso e no outro, a performance e o anti-minimalismo aparentam sempre aparecer como estratégias estético-políticas que, mais do que apenas formas de expressão, são elas próprias conteúdo. O que elas dizem e o que diz por elas?

conteúdo e forma não se dissociam.
na medida do (im)possível, minha vida e as ferramentas que criamos para conseguir exercer nosso ofício refletem o conteúdo das questões com as quais me debato todos os dias.
enquanto mulher desse século, enquanto artista exercendo ofício que é ócio, negação do negócio.
a linguagem das artes é (inclusive) a sedução.
a mamba é mais do que ferramenta ou meio, é o suporte e a mensagem.
é uma mistura ácida da gente, da Cashu (Carol Schutzer), e de toda uma constelação de atuadores que fizeram e fazem parte do nosso imaginário ofídico: a maneira como a festa se desenvolveu e por quem ela é feita são o que ela significa subjetivamente enquanto agente da cidade, e também como perspectiva do “autofianciamento” de uma rede da qual ela faz parte.
além disso, ao contrário do que a discussão moralizante coloca, as festas são, cada vez mais, um lugar de autonomia, em meio a um mundo imerso na alienação das pessoas com a própria vida.

me formei em cinema/audiovisual, hoje posso cantar,
reunir potências, projetos incandescentes da época em que vivo e colocá-los numa f(r)esta, trabalhando com pessoas que admiro e respeito (um tantão).

artista trabalha com o que tem.
mas não trabalha com qualquer um.
artista dá trabalho.
tem que dar.

a arte trabalha com esses limites.
nesse meio de aventura e guerrilha urbana artísticocoltural que comecei a fazer música.
a angela existe desde 2010 no CANiL_ (espaço autônomo ocupado na USP).
ficou mais autoral e mais interessante quando formamos o TETO PRETO (2014), um projeto totalmente ligado à construção da identidade da MAMBA.

CARNEOSSO entra em nova fase de dupla gestação com parto pro carnaval do ano que vem:
discão do TETO PRETO, com nova formação em paralelo à incubação desse primeiro disco da ANGELA CARNEOSSO E A PESTE com o todasquer Filipe Massumi.

O corpo é um elemento muito presente nas tuas apresentações. Não um corpo, mas esse corpo. Qual é o papel dessa territorialização na tua produção artística e no teu discurso político?

sempre cantei com o corpo exposto, desde a primeira vez.
era a minha premissa.
devolver à paisagem os vômitos da experiência:
a fome, a peste, terremoto.

a cantora é um pedação de carne.
é a bonita da MPB, afinada e virtuosa.
ser mulher, na sociedade ocidental, em grande medida é isso.
e tudo o que eu quero é ser o negativo disso.

angela é agente duplo.
de seduzir banqueiro pra financiar a guerrilha anarcodadaísta da juventude que faz festa-poesia-teat(r)o-filme-música.

a nudez crua.
o sexo exposto.
entregue, de cara, o pré e o suposto sobre “a cantora”.

fora isso, o público mais presente é sempre o das mulheres.
isso me faz pensar que a comunicação está, de fato, acontecendo.
falam da angela como um não-objeto de fortalecimento das mulheres frente às inseguranças, perygos e violências. a gente se inspira e dá mais tesão ainda de continuar.

nesse ano comecei a trabalhar com a Fábia Bercsek nos figurinos y parto da CARNEOSSO.
tem sido essencial conseguir desenvolver um trabalho tão vivo tanto no TETO quanto na PESTE.
no TETO eu tenho a honra de performar com o Loic Koutana, o VIRGO.
corpos elétricos – o feminino e seus duplos.

O encontro com o violoncelista Filipe Massumi, do Teat(r)o Oficina, marca o início do projeto Angela Carneosso e a Peste, certo? O contato com a Universidade Antropófaga do Teat(r)o Oficina serviu para te aproximar ainda mais da antropofagia? Quais dicotomias essa “terceira geração de antropófagos” quer superar, isto é, devorar?

várias vezes uso o termo pra cortar caminho.
acho que, nesse momento, falar em antropofagia é um pouco redundante.
por quê?
porque isso é muito natural.

comecei a cantar e fazer música já com o eletrônico, punk, maracatu, lupicínio-gilbertos-costa dentro do organismo.

eu e o Massumi nos conhecemos na ocupação do Parque Augusta, em paralelo à ouvidor 63 e ao circuito das festas no centro. era um dos malucos que levavam instrumento pra cima e pra baixo pra tocar. a gente se aproximou mais ainda no Oficina, principalmente quando ele me chamou pra montar a “Gasolina” com o projeto dele e da Carina Iglesias que ia se apresentar no festival das bandas do teat(r)o.
foi meio a partir daí que a gente resolveu pegar a encrenca que é a ANGELA CARNEOSSO pra nascer de novo com A PESTE num discão-espetáculo.

A PESTE, muitas vezes, parece ter vida própria.

A Angela Carneosso parece fugir propositalmente de fáceis classificações de gênero, unindo samba-canção, poesia concreta e maracatu, por exemplo. Quais são as referências musicais de vocês? O que representa o flerte com a música eletrônica nesse contexto?

eu venho do eletrônico.
trago referências do cinema, poesia, teat(r)o e do que mais pintar.
uso a voz que é um instrumento infinito.
superar o purismo do cantor, semelhante ao do tocador de violão contra a guitarra elétrica.
eu e Massumi falamos com as cordas, respiramos por pedais.
e isso é uma orquestra inteira na mãoarcopeitobarrigarganta.

vai ser muito difícil não ter o eletrônico nesse disco.
e a gente não tá sabendo direito definir o que vai sair dessa história.
é um universo cinematograficosonoro de delírios, ruídos y silêncios.

A influência da Vanguarda Paulista – confirmada pela versão do Teto Preto da música “Já deu pra sentir”, de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção – é clara. Achei interessante que, ano passado, tu e a Cashu (Carol Schutzer) lançaram a Mamba Rec., gravadora da festa Mamba Negra, inserindo-se numa tradição de produção independente consolidada no país exatamente por esse movimento. Como se deu o processo de construção do selo? O que guia a curadoria da Mamba Rec.?

fazer o selo era uma idéia da gente desde o comecinho da MAMBA, pensando que a cena tava crescendo e a gente tinha uma pesquisa sonora muito foda pela frente, de cada vez mais pessoas produzindo eletrônico autoral brasileiro no aqui e agora.

a MAMBA começou na linha de encontrar o eletrônico e o orgânico numa mesma festa, só que sem o clima de proto-tropicalismo pra gringo ver.
teve até EPICAC, CHAISS na MALA, CARNEOSSO E OS BACANAIS, CAIXA CUBO eletro.
a gente foi afinando a pesquisa e conhecendo mais lives.
hoje dá pra ver que chegamos a ter uma pegada mais marcada pelo techno, que vejo como período de afirmação de uma identidade-som da cidade. mas acho que a gente já tá vendo e produzindo muito além, comendo do house, acid, industrial, experimental.

dentro desse raciocínio a gente lança pela MAMBAREC os artistas e projetos que tem a ver com a construção dessa identidade mutável e, principalmente, dessa cena.
dá pra ter uns palpites do que mais vai sair acompanhando as festas e os line ups 😉

Falando em Mamba Negra, só melhora, né?! A label já é reconhecida internacionalmente. Paralelamente, no entanto, a relação com o poder público e com os empresários do entretenimento sempre foi marcada por tensões. Como vocês lidam com essa situação? O que leva a Mamba a (re)instituir o espaço (público ou não) como elemento central na geopolítica estética da festa?

atuar em São Paulo é uma batalha campal.
nós sempre atuamos nas ruas e ocupações, com ou sem recurso, dando um jeito.
também sempre pensamos no autonomia financeira dessa cena com as festas fechadas que se autofinanciam.

o que está acontecendo em São Paulo não é novo e nem mistério.
as autoridades só param para existir na sua vida quando querem dinheiro.
e todo o bla bla bla de alvará ou documentação entra no grande argumento da “legalização” das festas “clandestinas”.
o que sabemos e não pode ser dito, é que o circuito de entretenimento da cidade é ele todo “clandestino”. o sistema de obtenção dos laudos e documentação sempre opera em documento frio e os acordos com o poder público também.

acho que a MAMBA, como outras festas, servem para colocar em evidência vários tabus.
seja o do uso de drogas, que além de não ser crime em si, é uma questão de saúde pública.
seja o da sexualidade, numa festa que não tolera nenhum ato de preconceito e violência à mulher, às gays, lésbicas e trans e deixa isso bem claro.
seja o racial, de ser uma festa que xs negrxs e o coletivo NAMIBIA não apenas frequentam, como protagonizam.
seja o geracional, de uma juventude que não quer ir ao shopping para escutar música, ser livre e dançar.

então essa perseguição e “rivalidade” acerca dos processos de legalização tem esses dois temas ocultos: o econômico e o político. ambos dizem respeito às tentativa de aniquilar nossa liberdade de produção e articulação artística, essa sim, na sua totalidade, a mais perigosa aos senhores empresários y donos de cabeça dy gado.

nós, pela parte que nos cabe, fazemos as festas fechadas em antigas fábricas desativadas.
são lugares que, apesar de antigos, tem toda a estrutura de circulação, evacuação e ventilação adequadas a milhares de operários e maquinário pesado. são lugares especialmente alvaráveis em zonas menos residenciais, e a MAMBA sempre tem alvará.

mas, de fato, nesse último ano, as locações e a obtenção dos documentos para alvará subiram praticamente de 200-300%.
então calcule você, de onde vem o golpe e onde recai o prejuízo.

Em outra entrevista, tu disseste que a Mamba Negra utiliza o deboche como resposta ao hedonismo tropical. Como é produzir sob essa perspectiva?

é (G)RAVE

O primeiro EP do grupo Teto Preto (CARNEOSSO, L_cio, Zopelar e Bica), Gasolina, foi gravado nos estúdios da Red Bull em São Paulo e lançado em vinil no ano passado pela Mamba Rec. Como foi a experiência no estúdio? A opção pelo lançamento em vinil também é, de alguma forma, uma declaração?

foi demais ter acesso ao estúdio e à equipe da Red Bull.
o vinil era um ponto meio irredutível da gente, porque a gente precisava construir um objeto.
era irresistível também fazer um 12″ de 180g com um espação dos dois lados e a gente encarou como um investimento, tanto pra MAMBAREC quanto pro TETO.
foi o vinil, a identidade visual do Estúdio Margem (Alê Lindemberg e Nath Cury) em parceria com a Ilana Tschiptchin, o clipe dirigido por mim e encarnado pelo Loic, foi o lançamento do selo.

pro próximo disco a gente tá pensando em outras coisas.
a gente tá bem a vontade e animado com o [Arthur] Joly que vai receber nosso processo todo.
estamos indo atrás de pessoas próximas e muito queridas para participar.

A faixa “Gasolina” é um hino. O seu clipe, um manifesto audiovisual. E a popularidade da faixa em alguns meios a aproxima de um “hit underground”. Como você enxerga essa aparente contradição?

gasolina é um hino por ser filha do aqui e agora.
da narrativa bíblica, que desemboca em mitologia glauberiana, encontra carneosso que convoca piva, a pomba-gira do absoluto e todas as bacas do bate-cabeça.

por isso vejo gasolina, O HIT, mais como um GLITCH.
não vejo contradição nenhuma.
inclusive mal posso esperar pelo dia em que a Petrobrás compre essa faixa.

Em “Já deu pra sentir”, o William Bica no trombone é um espetáculo à parte. Podemos esperar uma incorporação cada vez maior de instrumentos orgânicos nas músicas do grupo? Quais são os próximos passos de todos esses projetos?

o TETO, desde a primeira jam que fizemos, tem o Bica e tem conga, cuíca, trombone.
isso é uma característica “imorrível” do grupo.
“Gasolina” tem a participação essencial do Filipe Massumi com o cello também.

a gente tá bem animado com a liberdade que tem pra pensar um disco de umas 6-8 faixas.
o TETO compõe muito junto, e o Zop é um parceiro muito importante pra comprar a viagem de mergulharmos no eletrônico de uma maneira mais ampla. é um prazer poder transitar entre galáxias pensando em não pensar na gramática dos gêneros de mercado. a gente ama música e vai se enfurnar no estúdio pra fazer barulho, que é o que a gente gosta.

Queria terminar com uma provocação: o trecho “Eu sou uma metralhadora em estado de graça” faz referência ao “Poema vertigem”, do poeta Roberto Piva, né? O teu universo lírico enquanto compositora parece ser rodeado de frases de guerra, de poesias pensadas no âmbito da guerrilha. No “Poema porrada”, o mesmo Piva escreve: “Eu quero destruição de tudo o que é frágil: cristãos fábricas palácios juízes patrões e operários”. Gasolina neles?

– FOGUEIRA MONUMENTAL NO FUTURO DE AMANHÃ –

CAR NE OSSO
A S S A S S I N
OSSO DE COSTELA
CARNE QUE DIZ SIM

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13/09/2017

Curador-Chefe da ONNi, DJ e pós-estruturalista.
Thiago Cidade

Thiago Cidade