Entrevista | Bemti e a música como processo de reconstrução e representatividade

26/02/2018

Powered by WP Bannerize

Camila Oliveira

Por: Camila Oliveira

Fotos: Doma02/Divulgação

26/02/2018

Serra da Saudade, Minas Gerais. É de lá que Luis Coutinho trouxe toda a melancolia e elementos caipiras (que tornam seu som tão especial) para misturar com o indie folk, dream pop e MPB da Falso Coral. A história dele é quase como a de qualquer um que sai de uma cidade pequena pra ir morar em São Paulo… Envolve um deslumbre inicial com a cidade grande, mas também carrega a simplicidade e empatia de quem vem do interior.

No caso de Luis, saiu da cidade menos populosa do Brasil para ir estudar audiovisual na USP há 10 anos. Foi lá que encontrou a voz perfeita para dar forma às canções que escrevia desde os 15 anos anos e também tocou pela primeira vez na viola caipira, quando produziu a trilha de um documentário sobre a roça onde sua avó mora. Desde então, o instrumento faz parte de todos seus projetos musicais. Há seis anos como violeiro e fundador da banda metade mineira, metade paulista, ele embarca agora no seu primeiro trabalho solo. Sob a identidade de Bemti, ele segue trazendo referência dos animais com os quais convivia na roça. Dessa vez, lembra dos bem-te-vis que alimentava quando criança.

*

A intensidade pra mostrar o que está vindo de dentro e a sinceridade pra mostrar todas as marcas que o tempo deixou fazem com que seja muito fácil se identificar com o som de Bemti. A primeira faixa do seu projeto solo, “Gostar de Quem”, por exemplo, lançada no final de janeiro, é uma daquelas músicas que parece mansinha e confortável, mas quando você menos percebe, a letra está te rasgando por dentro.

No vai e vem de uma ligação que dependia da qualidade do sinal da internet, conversamos sobre viola caipira, começar a trabalhar no disco Era Dois (previsto para sair em maio), representatividade e feats. Leia abaixo um pedacinho dessa conversa:

Tanto na Falso Coral quanto no projeto solo, a viola caipira está ali como sua companheira. Como esse instrumento entrou na sua vida e o qual o significado dele?
Como eu tenho a raiz muito ligada com essa coisa de roça, da fazenda, interior de Minas, a viola caipira chegou num sentido muito interno, muito essencial. Eu já fazia música com violão e guitarra, mas foi só quando eu encontrei a viola que eu comecei a gostar pra valer das coisas que eu fazia e eu comecei a ter uma facilidade muito grande pra compor nos gêneros que eu gosto, que são mais ligados pro alternativo, pra nova MPB e tal. Eu quero que [a viola] seja minha próxima tatuagem! (risos)

Tem alguma coisa das experiências da Falso Coral que você está trazendo para o projeto solo?
Tudo! Inclusive tava conversando com o namorado hoje que tudo que eu já vivi com o Falso Coral me preparou para lançar uma coisa minha. Por vários anos eu compunha as músicas ouvindo uma voz feminina hipotética. Aí eu encontrei a Bela e a gente fez o Falso Coral. Mas com a confiança que eu ganhei, tanto tocando quanto gravando música minha, música dela, fazendo aula de canto, agora eu consigo compor ouvindo a minha voz.… Esse projeto só existe por tudo que eu já vivi com o Falso Coral.

A letra de “Gostar de Quem” e o clipe perpassam muito um cenário de reconstrução. De onde surge a vontade/necessidade de começar um trabalho solo? Está ligado a algum processo seu de reconstrução?
Foi muito orgânico começar esse projeto. [2017] foi um ano de rupturas, foi um ano que, falando de ciclos, foi o que eu fiquei pior desde que mudei pra São Paulo. Foram várias rupturas de amizades longas, de relacionamentos longos, de uma mudança profissional, de tomar decisões tanto relacionadas com músicas quanto na área audiovisual. As músicas que eu comecei a fazer nesse processo já não cabiam mais no crivo do som que o Falso Coral tem. Era um som pessoal, que eu precisava falar abertamente sobre ser gay, porque tava tudo ali. Foi um projeto solo que surgiu disso, dessa necessidade de falar. E depois da metade do ano que eu conheci meu atual namorado e isso deu um novo tom pras músicas de novo. Então é um disco sobre reconstrução, sobre se reconhecer sozinho de novo, se permitir tentar ser uma pessoas diferente, mesmo sem o apoio de quem você tinha antes e encontrar o amor de novo. Parece muito clichê falar assim “ai, nossa, tava no fundo do poço e encontrei o amor novamente”, mas acontece. A gente sofre com isso, a gente passa por isso e acaba moldando muito o que a gente cria, o que a gente faz criativamente.

E além de ser um disco sobre reconstrução, fazê-lo te ajudou nesse processo?
Nossa, super! Me deu um novo prumo também. A Björk fala muito de como a música salva a gente, de como ela tem esse caráter tanto terapêutico, de cura, mesmo de viagem. E pra mim é muito isso, a música vem muito de um instinto, eu não sento e falo ‘nossa, vou fazer uma música agora’. Não… é terapêutico, sabe?

Nas redes sociais e nos comentários do clipe no YouTube tem muita gente falando que se identifica com a música e está revivendo e lembrando de antigos amores. Como está sendo o retorno que as pessoas estão te dando?
Eu queria fazer uma coisa que tocasse, que emocionasse, mas eu não imaginava que ia ter tanta gente chorando. Eu concebi o clipe pensando nos aplicativos, mas tanto a música quanto o clipe se aplicam não só a quem tá nessa rotina de aplicativos, mas a quem sente que não está conseguindo desenvolver nada com ninguém, que tem sempre um empecilho. Acabou que ficou muito mais intenso do que eu achei que ia ser. Aí as pessoas tão chorando real-oficial. E eu acho isso ótimo. Mas eu juro que o disco não vai ser todo triste! Ele é metade triste e metade feliz, nostálgico, melancólico…

A primeira exibição do clipe foi num evento sobre produção artística para o público LGBT. A gente pode dizer que há uma cena LGBT na música que perpassa diferentes gêneros, dá pra citar Liniker, Johnny Hooker, Lia Clark, Linn Da Quebrada, Rico Dalasam… Esses artistas te influenciaram ou influenciam no disco que você vai lançar?
Acho que não tem influencia musical direta necessariamente da cena LGBT. Eu acho muito massa toda essa cena tão diversa. E se você é um cara fazendo shoegaze em português com uma pegada regionalista, se você é gay, faz isso ser gay, sabe? Em algum momento vai ter alguém que vai querer se ver representado nesse estilo. Eu sentia falta, tanto dessa abordagem do clipe, que é uma abordagem mais do cotidiano, quanto de ter uma música com uma pegada mais indie que é abertamente gay. Eu acho muito foda o trampo do Johnny Hooker, da Linn da Quebrada. E o disco vai ter um featuring! Se tudo der certo, amanhã eu vou gravar com o Johnny Hooker. Foi uma música que eu fiz que é bem emocional, bem intensa e que deu muito certo de ele curtir, de ouvir, curtir e topar o convite. [Até o fechamento da matéria, deu tudo certo pro Bemti! Rolou o feat com o Hooker e logo menos vocês devem escutar “Tango” por aí. A faixa é, de fato, um tango com viola caipira que narra uma história no Rio de Janeiro.] Esse disco que eu tô fazendo eu considero um primo caipira do Coração (2017) [segundo álbum de Johnny Hooker]. Eu adoro como o Johnny passeia por vários gêneros dentro do disco. Sinto que meu disco vai ser assim também, vai ter a viola caipira, synthpop, mas as músicas vão passar por coisas mais pop ainda, por coisas até mais regionalistas, mais acústicas sabe? Vai ser esse desafio de manter a essência passando por vários gêneros.

E como tá sendo a produção de Era Dois? Quando deve ser lançado?
Vão ser 10 faixas, quem tá produzindo é o Luis Calil, que é um amigo meu de Goiânia. Tá sendo uma coisa muito de nós dois… As músicas são minhas e eu tô mandando referências pra ele de o que eu quero, mando umas linhas de synth e tal, mas ele tá tendo uma responsabilidade criativa muito grande no projeto também. Eu espero lançar em maio! Já tive uma proposta de show de lançamento, então preciso correr contra o tempo.

Tags:, , , , ,

26/02/2018

Camila Oliveira

Camila Oliveira