Produtor, apresentador de TV, jornalista e acima de tudo letrista de canções, já faz algumas décadas que Carlos Rennó mantém-se como uma figura importante da música popular brasileira. Desde o fim dos anos 1970, quando começou a escrever letras com Tetê Espíndola, seu elenco de parcerias cresceu a ponto de incluir uma parte muito significativa do cenário musical brasileiro.
Com um repertório de composições que inclui de canções de amor a canções de protesto, sua obra é vasta e inclui discos, livros, shows e clipes. Seja ao lado dos tropicalistas Gilberto Gil, Rita Lee e Tom Zé, seja com músicos de sua própria geração, como Lenine, Chico César e Paulo Moska, ou seja ainda com artistas mais novos, como Criolo, Xenia França e Russo Passapusso, Carlos Rennó imprime em suas parcerias uma bagagem extensa a respeito do estudo da poesia da canção.
Na revista NOIZE #100, que sai com o vinil de Gil Baiana Ao Vivo em Salvador, Carlos assina um artigo sobre o encontro de Gilberto Gil e BaianaSystem (tiragem limitada, assine aqui e garanta o seu). Aqui, conversamos com ele sobre a sua trajetória artística e as diferentes facetas do seu trabalho e comentamos episódios notáveis de sua carreira, desde a composição do hit de “Escrito nas Estrelas” até a curiosa produção do disco Canções do Divino Mestre (1998), que reúne Gil, Gal Costa, Tom Zé, Elba Ramalho, Belchior, Geraldo Azevedo, Walter Franco, Cássia Eller, Arrigo Barnabé, Chico César, Lenine, Siba, entre outros.
Leia abaixo.
Quando você começou a compor e como você equilibrou sua criação artística com a carreira de jornalista?
Comecei em Campo Grande (MS), em meados dos anos 1970, quando conheci a família Espíndola, dos cantores e compositores Tetê Espíndola, Geraldo Espíndola, Celito Espíndola, Alzira Espíndola. Eu namorava a Alzira e vim a conhecer a Tetê. Comecei compondo com a Tetê, quando eu vi Tetê tocar e cantar, eu decidi fazer letras de músicas. Eu tinha aspirações a ser poeta, gostava muito de poesia e a paixão pela palavra cantada era muito profundamente arraigada, então quando vi a Tetê cantar, fiquei tão impressionado pela afinação e originalidade do canto dela que imediatamente descobri o que eu ia fazer na vida, qual ia ser o meu ofício principal. Imediatamente vi que eu ia ser letrista.
Equilibrar essa atividade com a atividade de jornalista, que também começava nesse mesmo período, foi uma questão e tanto em determinados momentos da minha vida. Porque, por um bom tempo, a carreira de jornalista, embora fosse algo verdadeiro, no meu caso, considerando as minhas aptidões, não era algo que eu queria colocar em primeiro plano. Ela serviu sobretudo pra propiciar uma maneira de sobreviver, já que a atividade artística em geral no Brasil e no mundo não é uma atividade de rendimentos seguros ou estáveis. A carreira de jornalista desde então é uma alternativa, tive que fazer isso em alguns anos, mas não foi na maioria do tempo até hoje. Já há muito tempo que minha atividade principal é a de letrista ou atividades extensivas à de letrista, como palestrante, com cursos, palestras, conferências, sobre poesia de canção, que é a minha área.
“Escrito nas Estrelas” foi o primeiro grande sucesso que você escreveu. Quando compôs, tinha alguma ideia de que essa canção poderia chegar tão longe? Como o sucesso dessa música impactou sua vida?
Quando fiz a letra para a música do Arnaldo Black, que era meu amigo e tinha se tornado marido da Tetê Espíndola, eu achei que ali estava um sucesso potencial, que aquela composição tinha muita chance de se tornar um hit. A Tetê quis inscrevê-la num festival da Globo, e aí aconteceu o que aconteceu, ela se tornou uma canção muito popular naquele período, das mais tocadas no Brasil. Não imaginava tanto, mas imaginava que ela poderia ter sucesso. Ela permitiu que eu passasse alguns anos vivendo de composição, eu trabalhava na Folha de S. Paulo, no caderno Ilustrada e abandonei a Folha pra voltar dois anos depois pra ficar mais dois anos e sair e não voltar mais à redação, com exceção de um ano na revista Época, no primeiro ano da revista, em 1998.
Você tem parceria com dezenas de artistas ilustres. Como você foi se aproximando deles até o ponto de criar essas parcerias?
De fato, eu tenho um leque de parceiros que é bastante grande. Alguns são especialmente importantes ou pelo que eu vim a fazer com eles ou pelo número de parcerias, pela predominância de alguns em determinados períodos da minha carreira. Esse processo de me tornar parceiro de muitos compositores se deu naturalmente, dependendo do temperamento da gente, a gente vai conhecendo compositores, cantores, e aí vai acabando por estabelecer relações pessoais, algumas das quais se transformam em relações artísticas, profissionais. Daí eu ter vindo a ter o prazer, o grande prazer, de me tornar às vezes parceiro de artistas que tinham sido meus ídolos, como Gilberto Gil. Na época em que eu fiz com ele um trabalho que conjuminava a atividade de jornalista, de pesquisador e de compositor, fizemos um livro sobre a obra dele, em que ele comentou a gênese de duas centenas de canções que ele fez. Aí acabamos compondo juntos por iniciativa dele mesmo. E tive outros parceiros, Tom Zé, Rita Lee, João Bosco, que tinham sido importantes na minha formação de algum modo. E acabei tendo como parceiros gente mais ou menos da minha geração, como Lenine, Chico César, Pedro Luís, Moska, enfim, assim fui erguendo um elenco de parceiros maravilhoso.
Hoje você tem uma longa de lista de composições que dividem-se entre temas líricos, de caráter engajado (com temas políticos, sociais, ambientais) e também versões para canções norte-americanas. Esses sempre foram os seus temas de interesse ou seu foco foi se deslocando com o passar do tempo?
Sim, na verdade esses temas que você listou, de algum modo estiveram presentes na minha trajetória desde o começo. Canções de amor e canções engajadas fazem parte do repertório do meu início, nos anos 1970. Eu nunca tive uma produção grande quantitativamente falando, mas entre as canções que eu fiz no início de carrerira estavam canções que eram chamadas na época de “ecológicas”, que expressavam já minha preocupação socioambiental com a destruição da natureza. Essas canções já faziam parte do repertório que eu fui erguendo par a par com canções de amor. E eu lembro que ali mesmo eu já me interessei por verter canções originalmente escritas em inglês, fiz uma versão de “Blackbird”, dos Beatles, que foi inclusive gravada pela Tetê Espíndola. Depois, essa vertente do meu trabalho se aprimorou porque tive contato com a obra dos poetas concretistas, que me influenciou muito tanto do ponto de vista da poesia criada por eles quanto da poesia de tradução – eles ergueram uma obra de tradução de poesia que se constitui num dos capítulos mais maravilhosos da poesia brasileira dos anos 1950 pra cá. E eu fui influenciado por isso sobretudo pela obra e pela musicalidade do Augusto de Campos. Então, eu quis transpor para o campo da canção os critérios que eles aplicaram no campo de tradução de poesia erudita. Acabei fazendo isso em um livro e dois discos com versões de canções de Cole Porter, [George] Dershwin, e outros grandes autores do período áureo da canção clássica americana dos anos 1930 e 40 sobretudo.
Mas ainda sobre essa pergunta, eu tenho a lhe a dizer que a exploração dessas vertentes em meu trabalho foi se modificando. O tipo de canção, o tipo de letra, tanto do ponto de vista de conteúdo quanto do ponto de vista estilístico formal, foi ganhando novas cores, novos matizes, novas abordagens, novas perspectivas. No caso da canção política, houve um momento que foi um turning point, digamos assim, se deu quase ao final dos anos 90, quando eu, influenciado pelos alarmes que começaram a ser dados pelo painel intergovernamental de mudanças climáticas, fui retomando a temática socioambiental que foi muito significativa no meu início de carreira. Essa preocupação acabou sendo transposta para o meu trabalho de composição e acabou resultando em canções e produções que eu considero das mais importantes do meu repertório de lá pra cá.
Pegando o gancho das suas canções engajadas, às vezes são músicas que apresentam uma letra bastante extensa e há um certo conflito entre “letras muito longas” vs. “formato radiofônico de música de massa”. Mas existem canções que furam essa bolha (“Like a Rolling Stone”, de Dylan, e “Faroeste Caboclo”, do Renato Russo, são exemplos disso). Como você enxerga essa questão?
É, realmente, sobretudo as letras tematicamente engajadas. Embora a primeira letra de extensão dylanesca que escrevi foi pra uma canção de amor, que é “Todas Elas Juntas Num Só Ser”, que tem 120 versos musicados pelo Lenine. A “Todas Elas Juntas” de número 3 também foi musicada pelo Felipe Cordeiro, isso consta no meu livro Canções (2018), que reúne canções minhas com textos sobre meu trabalho escritos pelo José Miguel Wisnik, pelo Antonio Cícero, ali consta a letra de “Todas Elas Juntas Num Só Ser” incluindo a número 2, número 3, número 4 e a final. Isso totaliza 520 versos. Enfim, as de número 2 e número 4 ainda não foram musicadas. Mas vão ser! E bom, aí a questão da extensão né, bem, o fato é que por influência de Bob Dylan e de Cole Porter, grande letrista americano que também fez algumas letras longas, eu passei a dar vazão a um ímpeto de escrever letras de longo fôlego. E isso acabou se manifestando sobretudo no terreno das minhas canções engajadas, políticas e socioambientalistas.
Eu acho que é por isso. Também muito porque, a partir de um momento, aproximadamente da metade da minha trajetória até hoje, eu passei a escrever letras não partindo da música. Sobretudo quando comecei a compor com Lenine, antes era diferente, eu principalmente fazia letras sobre músicas e isso naturalmente delimitava a extensão porque as frases melódicas determinavam as métricas dos versos. Quando eu passei a escrever letras principalmente sem músicas, pra serem musicadas, eu acabei então dando vazão a um impulso de escrever letras sem limitação dada pela medida do número de notas das frases melódicas. Claro que por influência também de compositores letristas que fizeram letras longas, também de poetas porque há uma influência de poetas propriamente ditos no meu trabalho. Aliás, só me tornei letrista porque havia criadores que demonstraram pra mim que canções poderiam ser um meio de se fazer poesia cantada.
Ainda sobre essa questão e o fato de essas canções mais longas não terem muita saída radiofônica, é um fato, são raros os exemplos de letras longas que se tornaram sucessos populares. Enfim, mas eu não posso pensar muito nisso, eu tenho que fazer aquilo que eu tenho que fazer como artista.
Com essa temática, destacam-se os trabalhos recentes “Para Onde Vamos?”, “Demarcação Já” e “Manifestação”, três composições que foram lançadas em vídeos com vários intérpretes. Pode comentar esses projetos?
Pois é, eu ao escrever as letras, percebi que tratavam de questões que interessavam muito a sociedade e aos artistas. Porque se tratam de questoes emergentes ou urgentes a cerca da situação da humanidade e do planeta, então eu sempre imaginei, desde “Demarcação Já”, que elas poderiam e até deveriam ser gravadas por muitos cantores. E essa produção ainda não terminou, eu tenho duas letras já prontas, que espero que sejam musicadas em breve, que dizem respeito a questões contundentes do momento que vivemos como povo, como nação, como humanidade, como civilização, e que eu espero que se tornem também vídeos até o final do ano, vídeos que sejam impactantes e que tragam a participação de vários artistas também.
A essas canções deve-se somar, embora não tenha virado clipe, “Reis do Agronegócio”, que eu fiz com o Chico César. E sobre essas três há que se destacar que elas serviram a campanhas de organizações importantes. Eu não as escrevi pensando nisso, eu não escrevi letra de “Demarcação Já” pensando que ela poderia servir a campanha do Greenpeace por demarcação de terras indígenas, como veio a acontecer. Nem escrevi a letra de “Manifestação” pensando que ela poderia servir para a campanha por direitos humanos da Anistia Internacional no Brasil como também veio a acontecer. Mas houve um momento em que eu percebi que elas poderiam servir às campanhas dessas organizações. E foi um feliz caso de correspondência entre as canções resultantes das letras e a decisão das organizações de bancarem a produção das gravações e das filmagens. Esses vídeos foram feitos por ótimos cineastas, André Vilela D’Eli fez “Demarcação Já”, João Weiner e Fabio Braga que fizeram “Manifestação” e o Toni Vanzolini, que fez “Para Onde Vamos”, que serviu à campanha da Coalização pelo Clima.
Uma coisa que eu gostaria de salientar é que, no caso de “Demarcação Já” e “Manifestação”, as letras foram realizadas nos últimos anos de 2016 pra cá, mas a letra de “Para Onde Vamos” ela data de dez anos atrás. Embora ela tenha sido gravada em 2018 numa versão quase demo para o álbum digital Miscelâneas, que saiu embutido no meu livro Canções, e tenha tido a gravação que resultou no clipe lançada no final do ano passado. Mas a letra dela data de dez anos antes. Muitas pessoas pra quem eu falei isso se surpreenderam porque achavam que o recado era muito atual. O fato é que a questão da destruição ambiental e do aquecimento global é uma questão para a qual a nossa civilização ainda não despertou direito. O que a canção minha e do Beto Villares diz já era urgente há dez anos. Nossa sociedade dorme e continua dormindo para o que está acontecendo com o mundo. Daí não ser surpresa uma pandemia como essa [do COVID-19], que é resultante de destruição, de desmatamento, é a natureza respondendo.
Após parcerias importantes nos anos 1980 e 1990, em 1998 você lança o que é o seu primeiro disco, Canções do Divino Mestre. O CD saiu com a tradução de Rogério Duarte do Bhagavad Gita e reúne um grande time de artistas. Como nasceu esse projeto e que importância ele teve?
Não é bem um disco meu, é um disco meu como produtor artístico. Ele tem uma história. Esse disco saiu encartado no livro Canção do Divino Mestre, que é uma tradução do Rogério Duarte do Bhagavad Gita, a grande Bíblia do hinduísmo, um dos livros do Mahabharata. O Rogério Duarte, um gênio que eu tive o prazer e a honra de conhecer e de quem me tornei amigo, um dos tropicalistas da turma de Caetano e Gil, amigo do Glauber Rocha também, se tornou hinduísta a certa altura da vida dele. E, erudito como era, aprendeu sânscrito pra traduzir o Gita direto do original e em versos, usando uma métrica, usamos o decassílabo e a redondilha maior, sobretudo a redondilha maior. E aí ele, sabendo do meu gosto por tradução e da minha afinidade com os ritmos poéticos, quis compartilhar o trabalho criativo dele comigo e me chamou pra fazer uma revisão poética, rítmica e métrica da tradução dele. Eu lembro que ele veio aqui em casa, ficou mais de um mês aqui, nós diariamente debruçados sobre a obra dele exatamente nessa sala de onde estou falando agora. Isso em 1997. O livro com o álbum veio a sair em 98.
Enquanto eu fazia esse trabalho de revisão da tradução dele com ele, eu percebi que vários trechos da tradução se adequariam a virar canções, a serem musicados, e aí concebi esse disco para o qual eu escolhi os trechos e artistas correspondentes e os convidei pra musicarem e gravarem no disco. Esse disco deu início a minha experiência de produção de álbuns e, depois, de clipes, com elencos coletivos, foi aí que tudo começou.
Além de compositor, você produziu discos, shows, apresentou programa de TV, trabalhou como jornalista. Há alguma linguagem que você tenha predileção? Como equilibra internamente seus fluxos criativos?
Sim, eu tenho essas atividades todas até hoje, produzi discos como produtor artístico, shows também, teve uma série chamada Pais e Filhos, que, aliás, no segundo espetáculo da série, reuniu Moraes Moreira e Davi Moraes, o Moraes se foi bem recentemente. Essa série começou com Caetano e Moreno. Teve o programa de TV sobre o processo de composição [Uma Vez, Uma Canção, da TV Cultura] , e trabalhei como jornalista, mas tudo isso como extensão do meu interesse profundo sobre a arte da canção, a arte da conjugação dessas duas linguagens, a musical e a poética, que é o que essencialmente me interessa, sobretudo quanto à criação de letras. É isso o que eu mais gosto de fazer e é a o que eu mais inteiramente me entrego. Essa pra mim é a minha principal atividade.
Como você avalia o destaque que é dado aos compositores das músicas? Sente que há o devido reconhecimento?
Não, não há o devido reconhecimento a nós autores de músicas. Isso tem uma história. Por um lado, é natural que a gente não seja reconhecido, nós que somos apenas autores, não somos artistas de palco, não somos cantores, não somos músicos, sobretudo nós que somos letristas, é natural que não tenhamos o reconhecimento que só mesmo o artista que aparece tem. Eu não tenho nenhum problema quanto a isso. Aliás, até, por um lado, é preferível, por um lado é mais tranquilo. Agora, por outro, ocorre o seguinte. Durante muito tempo era difícil a gente ser reconhecido como autor das canções. Embora haja uma lei que determine que, em rádio, sempre tenha que se dar créditos aos autores, isso raramente acontecia e mais raramente acontece ainda de uns tempos pra cá, desde a maior propagação da internet. Que é uma coisa maravilhosa, mas que, pra nós autores, não apresenta certos aspectos interessantes, não. Tanto do ponto de vista financeiro, de remuneração, porque é muito claro que passamos a receber bem menos pelo nosso trabalho. As grandes corporações ligadas à internet, Google, YouTube, Spotify, enfim, não pagam aquilo que deveriam pagar e adiam a alteração na legislação mundial acerca disso com mecanismos que elas acionam por serem poderosas. Mas tão ruim quanto isso é a gente não ser reconhecido como autor. Porque você pode observar que, na internet, raramente aparecem os nomes dos autores, aparecem apenas os nomes dos intérpretes. Eu observo no meu caso, em mais de 90% das vezes, as canções e as letras mesmo aparecem só com o crédito do intérprete, do meu parceiro. E daí disso decorrem coisas como, por exemplo, o fato de amigos meus não raro gostarem de canções minhas e não saberem que são minhas. Entende? Isso é uma coisa, pra mim, lamentável.
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