Entrevista | Em “Transfusão”, Viridiana investiga as frestas do Pop

08/11/2021

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Brenda Vidal

Por: Brenda Vidal

Fotos: Lau Baldo/Divulgação

08/11/2021

De meu olhar jornalístico, amparado em minha subjetividade atravessada pela vivência em um corpo cisgênero, penso que a força que impulsiona pessoas trans, não-binárias e travestis a se expressarem e a se afirmarem como tal, mesmo com todas as violências e apagamentos pelos quais estão suscetíveis, é não só escudada pelas belezas e levezas que fazem parte da experiência trans, como também por um forte devir em, sim, ser protagonista de sua vida, autônoma em seu corpo-identidade-subjetividade, em ser fiel a si mesme, mesma, mesmo, acima de tudo. Mas essas são hipóteses que, se (provavelmente) não dão conta da pluralidade do que é ser trans, são evocadas a partir da trajetória da multiartista gaúcha VIRIDIANA. Em Transfusão, seu álbum de estreia, ela assume, reafirma e projeta ao público o protagonismo de sua narrativa, criando um universo transcentrado; à sua maneira, porém, sem deixar de ser coletiva.

Viridiana é a plataforma artística de Bê Smidt, cantora, compositora, performer e produtora musical trans não-binária baseada em Porto Alegre. Na última quinta-feira, dia 4, seu primeiro disco chegou às plataformas digitais pelo selo PWR Records e patrocínio da Natura Musical, via lei estadual de incentivo à cultura do Rio Grande do Sul (Pró-Cultura). O enredo é habitado e orquestrado de forma central por VIRIDIANA nas mais diversas frentes: composição, voz, performance, produção e mixagem, quase tudo direto de seu estúdio caseiro, além da parceria com o Estúdio Sangha. Boas colaborações também dão os contornos; o registro conta com a masterização de Malka Julieta, direção criativa de Rita Zart e Bel_Medula, e produção executiva de Mauryani Oliveira.

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A atmosfera tece aquilo que a própria artista nomeia como uma sonoridade”trans-oitentista”, marcada pelo uso das camadas essencialmente eletrônicas, evocando pitadas da produção dos anos 70 e 80, enquanto estabelece relação direta com nomes contemporâneos do quilate de SOPHIE e Arca. As letras vão sempre na ordem da transparência, mesmo quando fogem da literalidade. Canções dotadas de uma subjetividade verborrágica, do mental ao sentimental, da fruição à afirmação. Percorrer Transfusão é como acolher a aproximação de alguém que dança junto de você, bem embaixo de um globo espelhado, e que, em determinado momento, estica a mão a você, em um convite a atravessar a pista por entre as luzes difusas e esfumaçadas a fim de sentar, pausar a festa para conversar e compartilhar aquilo que vem do íntimo. Em release divulgado à imprensa, VIRIDIANA sublinhou:

– São canções que se pretendiam a falar sobre ser trans, sobre habitar o mundo se identificando assim, se relacionar assim, amar assim, chorar assim, e acabou saindo sobre muito mais. É uma carta, uma confissão, um testemunho de tanta coisa que corre solta no meu peito, coração e pregas vocais. tenho pensado que se antes os meus trabalhos falavam muito de ser trans “pro lado de dentro”, esse trabalho é sobre ser trans “pra fora”.

Aproveitamos o frescor do lançamento para conversar com Viridiana sobre as intenções sonoras e líricas do álbum, o Pop como potência estética e os ambientes festivos como lugares de acolhimento simbólico, artístico e profissional à comunidade trans. Leia na sequência!

Viridiana no clipe de “3X4” (Foto:Ana Beatriz Vieira/Divulgação).

Oi, VIRIDIANA! Obrigada por ter aceitado conversar com a Noize. Parabéns pelo lançamento de Transfusão! Gostaria de começar por uma coisa bem básica, mas que me instiga bastante. Você poderia construir sua carreira artística autoral como Bê, seu nome “real”, mas optou por “VIRIDIANA”. Por que você decidiu desenvolver uma persona artística e como foi o processo de escolha do nome pelo qual também a conhecemos? Existe algum subtexto na escrita em caixa alta?
Oi Noize! Oi Brenda! Tô bem boba com esse convite, agradeço de coração a oportunidade de falar um pouco sobre o disco novo e meu trabalho aqui, onde tanta gente que eu admiro já passou. Então, quando eu comecei a estudar música e começar a construir um caminho trabalhando com isso, eu demorei bastante pra começar a compor. Eu desempenhava uma função mais técnica antes, operando som ao vivo, editando áudio e coisas assim. Mesmo quando eu fazia música autoral, era em grupos, como o coletivo Medula. Quando eu comecei a escrever e produzir coisas pra mim, surgiu essa necessidade de ter um começo “do zero”, encontrar esse pontinho no mapa, da onde sairiam os meus caminhos e jornadas, e optei por escolher um nome novo. “Viridiana” apareceu numa conversa que eu tive com a minha mãe há muito tempo, eu devia ter uns doze anos, e a gente conversava sobre nomes de filhos, se ela e meu pai tinham pensado em outros nomes antes de me chamarem de Bê. E ela falou (e reproduzo com licença poética e de gênero aqui) que se eu “tivesse nascido menina, um dos nomes que a gente queria era Viridiana”. Isso era uma memória super distante, mas que voltou quase como uma epifania na hora de me nomear artisticamente. E sobre a caixa alta, é algo que surgiu pensando muito na nossa intersecção atual do musical com o visual, eu acho que é um nome que fica bonito em caixa alta, as linhas dos “I”s, os ângulos dos “A”s. Mas é algo bem facultativo pra mim, também! Não precisamos sempre gritar em caixa alta, rs.

No release divulgado à imprensa, você conta que as canções presentes no álbum possuem um caráter confessional. Elas foram compostas em que período? Pode comentar sobre como é o seu processo de composição?
A música mais “antiga” que entrou pro disco é “curta distância”, que eu escrevi em março de 2020, logo que a quarentena tinha começado, e que também marcou essa imersão que eu fiz ano passado. O meu processo, no geral, é uma caça ao tesouro mesmo, uma melodia que aparece no banho, lavando a louça, ou um timbre de sintetizador que apareceu sem querer e vira faísca pra uma composição. É mais raro as palavras virem antes dos sons pra mim, acho que tem uma coisa de ver como eu sinto o som no corpo, e ver qual sensação e qual memória residem ali naquela parte. Todos os dias eu acordava e tentava fazer algum som, alguma melodia, descobrir um cantinho novo de música dentro de mim que eu podia botar no computador. A criação do disco teve dois momentos bem distintos: esse primeiro, de uma investigação mais sozinha, quando eu nem sabia que eu tava fazendo um disco! E o segundo foi o que aconteceu lá pelas tantas, quando o projeto foi aprovado no Natura Musical, em que eu pude sair um pouco desse ciclo sozinha e trazer junto as diretoras criativas do rolê, a Bel Medula e a Rita Zart, que me acompanharam de dezembro até abril desse ano. Elas escutaram tudo que eu tinha escrito em 2020 e começamos a entender qual era a identidade desse disco que nascia, o que ainda faltava, o que eu podia investigar ainda e por aí fomos.

Bom, Transfusão nos apresenta 14 faixas, o que, num cenário marcado por singles e trabalhos mais enxutos, é bastante coisa. A ideia de ser música “demais” chegou a causar em você algum tipo de insegurança ou apreensão? O que guiou o processo de definição do que deveria entrar, ficar ou sair da tracklist?
Chegou muito! Meu processo, no geral, ainda me dá bastante espaço pra insegurança, me questiono mil vezes sobre todas as decisões, e ter uma tracklist mais longa com certeza bateu nesse lugar. Acho que, no geral, eu precisei conciliar minhas duas vontades, uma que queria ter o espaço pra construir essa narrativa e universo imersivo que o disco longo proporciona, e a outra queria ser mais convidativa pra ume ouvinte nove, por isso a estrutura do disco tem um primeiro bloco mais indie/pop convencional, e aos poucos ele vai ficando mais denso. A gente brincava que na segunda metade do disco podia ter os “biscoitinhos” pra quem chegou até ali! Também foi bom olhar pra outros discos do pop e do alternativo que tem sido lançados, tipo o disco da Jadsa [Olho de Vidro], que optou por um número maior de faixas, e também o Nebulosa Baby do Giovani Cidreira agora também! Essa ideia de conseguir surpreender e cativar a audição de alguém ao longo de todo o disco é uma das coisas mais preciosas pra mim.  Isso reflete muito como eu penso as questões de gênero e sexualidade, pensei que se eu quisesse falar sobre esses assuntos no disco, eu precisava de um espaço pra explorar isso em diferentes ritmos, moods, significados e olhares, porque é assim que a gente experiencia a nossa identidade, né? Tentar ser muito honesta com essas questões, mas deixar espaços abertos pra quem me ouve poder ficar refletindo sobre aquilo. Não quero dar respostas prontas e fechadas com esse disco. 

Você é bem ativa na produção musical no trabalho de outros artistas. Imagino que deva conferir bastante autonomia ser uma cantora e compositora que também é produtora, mas, no nível mais criativo, você se viu tendo que mediar o lado “produtora” com o lado “artista autoral”? Como Transfusão também muda a produtora musical para além de VIRIDIANA?
É um fluxo muito interessante esse, porque vejo a Viridiana como a confluência de todas essas faces. Eu tento fazer com que todas essas diferentes “Viris” se comuniquem, a compositora que quer aquela letra muito específica, a produtora que quer passar horas mexendo nos timbres e efeitos, a performer que quer ter espaço pra pirar e dançar e sentir tudo aquilo no corpo. Isso alinhado com olhar pra minhas maiores referências de produtoras, pessoas tipo a SOPHIE e a Arca, entender como eu posso incorporar coisas que podem ser clichês e fórmulas do pop mas vestidas com as minhas roupas. Transfusão acabou sendo o resultado de uma imersão muito profunda em todas essas partezinhas, tentando me levar ao limite delas mesmo. “Qual a letra mais íntima que eu consigo escrever?” “Qual é o pop mais chiclete que eu quero produzir?”, acho que foram com esses tipos de perguntas que eu conciliei essas vontades todas. O que acaba sendo bem diferente do processo de produzir ou mixar alguma música de outra pessoa, porque nesse outro processo a minha prioridade é entender aonde ela quer chegar e traçar esse caminho junto dela. 

VIRIDIANA, a atmosfera sonora em Transfusão se comporta de forma leve, etérea, mesmo que o álbum seja marcado por um sabor agridoce. Com que elementos sonoros você buscou imprimir as camadas mais festivas, dançantes e fruitivas e quais você lançou mão em momentos mais intimistas, ácidos e tristinhos, tudo isso sem soar pesada?
Eu gosto muito de trabalhar com contraste, sabe? Encontrar as respostas na contradição e na surpresa. Canções como “delírio”, que começa só com a voz e o piano e vai lentamente sendo preenchida por vários outros elementos que eu fiz pós-performance e que acabam colorindo essa paisagem que antes era super minimalista, e que acaba virando mais densa e etérea. Ao mesmo tempo, gosto muito de incorporar a ideia dos loops da música eletrônica de pista. “invisível”, por exemplo, pega dois loops de guitarra e repete eles a música toda, mesmo que ela não seja necessariamente de pista, enquanto “expectativa” e “curta distância” fazem um uso muito consciente desses recursos. A guitarra toma várias caras diferentes ao longo do disco, desde o indie pop que marcou minha adolescência em “antimatéria” até à roupagem mais atual e limpa de “menina” e “gravidade”. Reinterpretar esse instrumento, que pra mim [ocupa] um lugar super masculinizado, ajudou a virar várias chaves no processo do disco. 

Transfusão é um álbum Pop. Qual a força do Pop em tempos de crise e como ser pop sem cair na superficialidade?
Pra mim, o pop é o espaço onde eu sinto que posso expressar minha identidade, tanto sonora quanto de gênero, de uma forma livre e inventiva. Historicamente, é um lugar  em que enxergo muito a comunidade LGBTQIA+ como central e como resistência. Pensando desde a música disco norte-americana até movimentos como a PC Music e as cantoras drag queens que cada vez marcam mais presença hoje, as pessoas que alimentam esse movimento e essa inovação estética são parte da comunidade LGBTQIA+. Ao mesmo tempo, entendo o pop como um lugar onde a experimentação visual é muito presente também, o que me dá a possibilidade de entender meu som e minha mensagem como imagens e performance, sentir no corpo essas canções e impulsos. Acho que se confunde muito uma ideia de pop com algo fabricado, plástico e sem autenticidade, mas encaro como justamente o contrário: é o espaço onde a estética está constantemente em movimento, em reinvenção e transmutação. Pra mim, o caminho de poder ser sincera e não ser superficial foi o de agir sobre o corpo nas partes dançantes, com os graves nas partes densas, e com os vazios sentimentais. Tentar gerar no corpo as sensações que queria invocar nas letras.

Capa oficial do disco Transfusão (Foto: Gabz404/Divulgação | Projeto Gráfico: Florença Smidt e Noah Dias/Divulgação)

A direção de arte parece ocupar um papel de destaque na narrativa da capa do disco, dos singles e também nos videoclipes. Que potências artísticas ela acende em você?
Pensando nas referências que eu quis trazer pra esse universo, é muito presente nelas a criação de todo um conjunto de signos, imagens, coisas que vão além do som, mas levam a pessoa que te ouve cada vez mais pra dentro desse disco. Pessoas que nem a Arca, que já mencionei aqui, a MC Tha, a Luedji Luna, até mesmo a Madonna, que minha mãe me mostrou logo cedo na vida. É um processo de retroalimentação, sabe? Pirar em imagens me dá respostas sobre as músicas também, não é só o fluxo oposto: “Essa música pede um clipe”. Nada disso! “Como que essa imagem soa?”, aí acho mais interessante. Ainda mais querendo acessar coisas tão pessoais pra mim, memórias e sensações tão profundas, me parece que tudo se torna mais tátil e de verdade quando a gente tem outros recursos pra contar essa história. Os vídeos dos bastidores que compõe o clipe de “menina”, por exemplo, mostram essa equipe majoritariamente trans trabalhando, existindo e se fazendo visível. O clipe de “tua, toda.”, que mostra o conflito que eu sentia entre meus desejos e vontades contra as forças que aparecem e nos censuram, nos deixam submissas. No fim das contas, é mais um jeito de expressar minhas mensagens, e de deixar mais dúvidas e questionamentos no coração de quem me acompanha. 

VIRIDIANA, em “expectativa” você fala sobre como podemos ser instigados pela espera por uma festa. Isso me fez pensar, a partir do meu lugar de corpo-identidade cisgênero, o quanto os circuitos da arte e da festa operam enquanto ambientes acolhedores para as vivências de identidades trans, travestis e não-binárias; levando em consideração essa dimensão, que impacto a ausência de eventos artísticos e de festas presenciais em tempos de isolamento social teve em você? 
A festa é aquele espaço que pode proporcionar uma efervescência gigante de expressões e sensações, né? Historicamente, pessoas trans e travestis usam esses espaços pra poderem escapar e se sentir plenes, em face de uma sociedade que sempre nos rechaça e nos restringe o acesso a todos os espaços, tanto de convivência quanto de trabalho. Enxergo que coisas parecidas podem acontecer no show também. Aquele momento em que eu olho pro palco e vejo uma pessoa trans tocando e me lembro que é possível, e que é muito potente quando essas estruturas são rompidas e se concretiza, de fato, um cenário inclusivo. Eu comecei a sair na rua vestida com roupas que me contemplam pra ir em festa, eu conheci pessoas e artistas que pensam de forma parecida com a minha em festas, então acho que esse ambiente que é caótico, mas também é de uma alquimia constante, é muito poderoso. Quando os eventos pararam 100%, eu me lembro de me sentir muito perdida nisso tudo, parecia que a minha existência como pessoa trans dependia um tanto desses encontros, de poder estar criando e dançando com outras pessoas, e isso foi muito claustrofóbico. É triste também pensar que isso é a fonte de sustento de muitas de nós, a cultura, a vida noturna, e como tivemos basicamente zero auxílio pra passar por esse período, mais do que nunca se mostrou a importância desses encontros e eventos. Tento pensar pelo lado positivo, que é o fato de eu estar tendo apoio de uma plataforma como a Natura Musical, pra poder empregar o máximo possível de pessoas trans nesse disco, desde a parte da master, com a Malka, até a fotografia da capa, que quem fez foi o Gabz404. É uma construção muuuito complexa, mas pra mim foi fundamental poder trabalhar com outras pessoas trans pra construir ambientes festivos como esses, de celebração das nossas corpas e criações.

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08/11/2021

Brenda Vidal

Brenda Vidal