Entrevista | A fortaleza arretada de Fernando Catatau

18/11/2015

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Oswaldo Corneti/Reprodução

18/11/2015

Algum leitor desavisado pode pensar que Fernando Catatau é apenas mais um músico. Mas não se engane, a fala mansa do criador do Cidadão Instigado esconde o talento de um guitarrista grandioso, que, além de ter uma obra sólida com seu grupo, já trabalhou com Deus e o Diabo na terra do Sol.

Durante os seis anos que separam UHUUU! (2009) do novo disco do Cidadão, Fortaleza (2015), Catatau gravou guitarras nos álbuns Eu Menti Para Você (2010), Longe de Onde (2011) e Selvática (2015), da Karina Buhr, Bicicletas, Bolos e Outras Alegrias (2010) e Segue o Som (2014), da Vanessa da Mata, Ao Vivo Lá em Casa (2010), do Arnaldo Antunes, The Moon 1111 (2011), do Otto e Avante (2011), do Siba… É provavel que essa lista não esteja completa, mas nem o próprio Catatau tem certeza de quantos discos gravou nos últimos anos, como ele mesmo conta abaixo.

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O novo do Cidadão Instigado saiu há algumas semanas e foi recebido com louvor pela crítica. Na premiação de Música Popular da Associação Paulista de Críticos de Arte, a banda foi indicada à categoria de Artista do Ano e Fortaleza foi indicado como Disco do Ano. Considerando que Karina Buhr está concorrendo na categoria Show do Ano (e que o Catatau é o guitarrista do seu show), há mais essa referência ao músico na prestigiada premiação.

Realmente, 2015 está sendo mesmo um ano e tanto pro Catatau, veja como ele tem lidado com tudo isso.

Foram seis anos de intervalos entre os últimos discos, mas isso é normal pra vocês, né?
É normal, pra você ter certeza das coisas, precisa de tempo mesmo, saca? Por isso que demorou. Também porque fizemos o disco sem grana, tirando dos cachês de shows. A gente é independente, né? Mas às vezes a galera tem muito esse pensamento de “ter que” lançar discos, acho que isso não pode ser uma obrigação.

O disco saiu em março, mas só em outubro entrou nas plataformas digitais. Foi planejado?
Não, é que finalizamos o disco e lançamos. Já não tínhamos mais show pra fazer, precisávamos trabalhar, aí fizemos um tributo ao Pink Floyd (mas também não queríamos mais fazer isso porque não somos banda de cover) e resolvemos lançar. O disco tava pronto, então tinha que sair. Eu já sou lento, se deixar fico mais lento ainda. Depois que lançamos o disco pra download, conseguimos pagar tudo, especialmente com o show de lançamento. Agora que conseguimos fazer o CD e espalhamos nos serviços digitais. Eu não entendo direito essa história (Risos). Mas eu acredito na homeopatia: acho que as coisas vão chegando no tempo certo. Não temos que fazer as coisas na velocidade que as pessoas cobram. Queremos lançar em LP e vai ser na hora certa.

Tá pra sair em vinil então?
Espero que dê tudo certo pra que saia no ano que vem. Vamos fazer 20 anos de banda, aí estamos começando a organizar as coisas. Nossos discos também, tem um monte que fora de catálogo… Vamos tentar organizar tudo agora.

Você participou de vários outros discos nos últimos anos. Você sabe de quantos discos você participou no intervalo entre os discos do Cidadão?
Não sei, bicho… É tanta coisa que eu vou fazendo sem pensar muito. Teve o do Arnaldo, os da Karina, o do Otto… Um monte de coisa assim, não consigo lembrar exatamente.

Parece que você sempre traz algo muito seu pros discos dos artistas com quem você trabalha.
Eu busco muito uma parada pessoal, sempre foi minha procura em relação à música. Quando você consegue entender o jeito de tocar, os efeitos, quais são os clichês repete, aí você vai começando a firmar bem o que você tem. Quando toco com outras pessoas, tento me encaixar dentro do trabalho dela, mas dar a minha contribuição. Tento olhar a música inteira e botar só o que precisa, sabe? Aí acaba ficando muito da minha cara, tem os timbres que eu vivo pesquisando… Sempre dei mais valor a isso do que à técnica, pra ter uma ideia, que eu comecei a estudar mesmo, faz uns quatro anos. Eu sempre estudei, mas eram uns estudos muito espaçados, abertos, eu tocava mais do que estudava. Estudei muito quando era mais novo, mas parar pra se dedicar aos estudos foi mais agora. Principalmente por causa desse disco novo, em que eu queria fazer algo diferente mesmo. A galera já não aguentava mais o que a gente vinha fazendo. Pra conseguir fazer isso, tive que correr atrás. Nas guitarras, e no canto até. Quando comecei a compor as músicas, vi que eram muito difíceis. Pra o que eu fazia, não rolava, então corri atrás. Se não fica você insistindo em você mesmo.

Catatau e Karina Buhr ao vivo (Foto: Ariel Fagundes)

Hoje, você é uma referência para a guitarra no Brasil, especialmente em relação à música nordestina atual. Como você se sente sobre isso? Você se reconhece como tal?
É difícil ter a noção de até onde vai isso porque… quem sou eu, né? Muita gente fala, mas eu não consigo perceber até que ponto tô influenciando alguém. Não sei direito… Mas eu fico muito feliz mesmo! A única coisa que eu tento fazer é me descobrir a toda hora, pra melhorar, estudar mesmo, buscar o caminho que eu tenho traçado há muito tempo. Desde que comecei a montar o Cidadão, eu disse: “Cara, vou tentar ser o mais verdadeiro possível na minha parada”. Não quero ser igual a ninguém, entendeu? Então fui atrás do meu formato.

Sobre o Fortaleza, o que te motivou a fazer um disco batizado com o nome da sua cidade de nascença?
Eu sou muito apaixonado por Fortaleza, sempre fui. Nasci lá em 71 e vi muitas transformações da cidade, conheço bem tanto a parte de elite quanto a parte que não tem grana, sempre andei por todos os lados lá. Aí foi um momento em que eu precisei falar sobre tudo aquilo. Fiz 44 agora, e eu e minha galera, o Dustan [Gallas, guitarrista e tecladista do Cidadão Instigado], o Régis [Damasceno, baixista], Rian [Batista, violão e teclado], andamos juntos desde adolescentes. Vivemos uma Fortaleza muito massa e uma Fortaleza em decadência sendo invadida pelo turismo sexual, pela loucura imobiliária… Eu quis falar sobre a nossa existência, nem só sobre a cidade em si, mas sobre a Fortaleza da gente. É um registro da nossa história em Fortaleza. E estamos vivendo momentos difíceis, não só lá, mas no país inteiro. Essas coisas não tem como você não falar. “Fortaleza” não é simplesmente o nome da minha cidade, “fortaleza” são os condomínios fechados, são as fortalezas que as pessoas criam dentro de si pra poder se defender.

Essa Fortaleza é símbolo de um processo que acontece em todo Brasil?
Acho que é um processo mundial, viu cara? Na realidade é uma coisa muito simples e muito complicada: a gente tá chegando no limite e tá tudo indo por água abaixo, indo embora, se destruindo, se despedaçando. As crenças das gerações dos nossos pais estão todas erradas e a gente foi domesticado desse jeito. Fico sempre pensando nos jovens atuais, tenho visto uma galera mais nova muito mais massa, com outro pensamento. Mas é porque eles já chegaram na desgraça, com tudo meio se despedaçando, então vem com outro olhar. Eu acho um avanço. Não que seja todo mundo, mas hoje em dia tem mais gente pensando diferente. Lógico que a gente tem tudo, mas eu vejo muita gente legal hoje em dia, mais do que antes.

Enquanto compositor, você se preocupa em criar uma obra que seja retrato do seu tempo?
Me preocupar especificamente, não. Acho que isso é natural porque me preocupo com a vida mesmo, entende? Me preocupo com as pessoas com quem eu me relaciono, me preocupo com o planeta, com as árvores, me preocupo com um monte de coisas. Quando vou escrever, tento ser o mais pessoal, aí sai isso, as coisas que eu vivo no dia a dia. Na realidade, tudo que escrevo é uma percepção minha, né? Do mesmo jeito que a música “Fortaleza” é um lance muito pessoal. Não é que esteja certo ou errado, entende? Mas é a minha visão, o que eu vivi na minha cidade. Aí chegam pessoas de vários cantos se identificando, falando: “Porra cara, você escreveu isso de Fortaleza, mas parece a minha cidade”. É lógico, cara! Não é só do mesmo lugar, é um lance muito mais abrangente mesmo.

Seu som tá muito ligado às raízes da cultura nordestina. Você já sofreu algum tipo de preconceito por ser nordestino?
Ah, já! Principalmente quando vim [pra SP] nas primeiras vezes, em 1994. Morei em 94 aqui e em 95 no Rio de Janeiro, antes de montar a banda, quando eu comecei a fazer as músicas do Cidadão. Como não tinha muitos amigos aqui, foi um momento de luta por motivação. Mas as coisas foram mudando, naquela época começou a rolar o lance do manguebeat, eu conheci os meninos nessa época, o Nação Zumbi, o Mestre Ambrósio, toda galera… Isso, de alguma maneira, foi quebrando um pouco essa visão do nordestino. O Nordeste era visto como algo muito distante. Nos anos 70 teve uns discípulos da Tropicália, tipo Fagner, Zé Ramalho, toda essa galera que veio. Mas era sempre uma galera do mainstream e ou existia aquilo ou a seca, sabe? Ninguém queria saber muito do Nordeste. Ainda rola isso, muito mais depois das eleições. Mas na época do manguebeat, deu uma amenizada porque a cultura de lá começou a aparecer bem mais. Mas eu sofri muito e de vez em quando ainda rola. E a gente não é amestrado, não baixa a cabeça né? Então se vem, vai.

Você vê perspectiva de melhora nesse sentido? O Brasil está mais tolerante?
A tolerância é um lance muito individual de cada um. Preconceituosos são preconceituosos e nem sabem por quê. Isso é um lance que vem se quebrando há muitos anos, mas é uma quebra muito lenta. Você vê, os conflitos estão aí direto, seja com negros, com nordestinos, com árabes, com alemães. Cara, sempre vai ter alguém que não vai gostar de alguém. Ser humano gosta muito de viver nessas intrigas. Fui pra Salvador agora e vi gente falando coisas tipo: “Ah, essa raça aí”. Bicho, não dá pra acreditar que ainda existam pessoas assim, mas existem! O que você vai fazer, né? A única coisa que eu posso fazer é não ser assim. Eu sou cearense, descendente de libanês, minha família é das praias mais afastadas de Fortaleza, então sou muito mal visto por muitas pessoas. Tô nem aí.

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18/11/2015

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Ariel Fagundes

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