Os segredos do rapaz esforçado | Um papo com Jards Macalé

07/05/2014

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Pedro Jansen

Por: Pedro Jansen

Fotos: Ariel Fagundes

07/05/2014

Quando dei play no documentário Um Morcego na Porta Principal (2008), a primeira impressão que tive de Jards Macalé foi de um homem direto e ríspido, muito contundente quando falava. A imagem ornava bem a poesia lindíssima e ainda assim bastante bruta, explícita e às vezes angustiante que brota das músicas que mais se destacam na sua carreira. O show gravado no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, para virar um DVD que comemora toda a trajetória do artista carioca, foi baseado justamente no repertório que melhor encaixa com essa descrição.

No entanto, quando a banda Let’s Play That, formada por Leandro Joaquin (trompete), Ricardo Rito (teclado), Thiago Queiroz (flautas e saxofone), Victor Gottardi (guitarra), Thomas Harres (bateria) e Pedro Dantas (baixo), subiu ao palco e logo ali em meio deles veio o tal morcego, risonho, um tanto barrigudinho, metido num terninho verde da hora e com um oclinho muito miúdo (que sempre me faz pensar em como é enxergar para as pessoas que os usam), eu já não tinha certeza de que voz esperar na manhã seguinte ao show para a entrevista. Melhor assim, considerei.

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E foi mesmo. Começando pela entrevista e já já falando do show, preciso contar que Jards esperava a mim e ao fotógrafo Ariel Fagundes de muito bom humor, fumando um dos quatro cigarros que acendeu durante os 40 minutos de papo. Conversava com uma senhora de sotaque carioca, que foi embora assim que nos apresentamos. “Tchau, querida, nos falamos mais tarde”, falou o Macalé e enquanto eu me acostumava com a vista do 16o andar do Everest Hotel, aqui no centro de Porto Alegre, ele sentava de pernas cruzadas. Mexia um suco de laranja que provavelmente trouxera do café da manhã – o buffet estava servido num salão anexo, e a Let’s Play That ainda estava por ali. O relógio marcava 10h.

“Vamos a elas, diga o que você quer saber.”
“Na verdade não quero saber nada em específico, quero conversar contigo.”
“Ótimo, então vamos conversar.”

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Depois de revelar a minha admiração pelo trabalho dele, à qual ele agradeceu de maneira polida e formal, mas simpática, engatamos um papo sobre “a polêmica da vez”, o tal caso das bananas atiradas em estádios de futebol e suas hashtags primatas. E a conexão do fato com Jards? Bem, tendo sido ele o sujeito que na noite anterior entrou no palco munido também de um cacho das frutas, bem amarelas e aparentemente maduras, e atirou – uma a uma – todas elas na plateia, a coisa fazia bastante sentido.

“Veja só, não dá pra deixar um cacho de bananas no meu camarim numa época dessas e esperar que eu não faça nada. Cheguei no camarim, vi o cacho de bananas em cima da mesa e pensei: ‘ah, eu tenho que fazer alguma coisa com isso’”, diz ele com um riso muito orgulhoso. “Decidi daí entrar no palco e jogar as bananas pro público”. Essa não foi o único momento performático de Jards na apresentação. Antes de tocar “Gotham City” – música com o amigo Capinam e que estreou no Festival Internacional da Canção de 1969 sob uma cachoeira de vaias, o cantor tijucano pediu, bem educado, que fosse vaiado novamente pelo público (ao que foi prontamente atendido). Um terceiro momento tomou forma quando Zeca Baleiro, um dos convidados do show, já estava no palco. Para cantar a história de “Na Subida do Morro”, de Moreira da Silva, Jards sacou uma… faca! Sim, uma faca de verdade, que assustou a Zeca e a mim (confesso). Não houve nenhum sinal de violência, por óbvio, a coisa ficou toda no campo da provocação artística.

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As cortinas se abrem para o morcego

Depois de atirar as bananas do cacho, Jards Macalé sentou no banquinho que o esperava, catou o violão no apoio, checou afinação e olhou para a banda, esperando o contato visual que prepararia a todos para a abertura de “Let’s Play That”.

O arranjo da faixa mais consagrada do cantor (única composição de Jards em que composta em parceria com o tropicalista Torquato Neto, que além de poeta e cineasta nasceu em Teresina como eu, participa) já traduziu inequivocadamente que aquele seria um show especial: um blues vigoroso e menos atravessado que a gravação original divertia a banda, que tocava sorrindo. Num dos breques, um primeiro erro. O aviso dado antes do início da apresentação, de que algumas faixas poderiam ser repetidas ao fim do show para corrigir possíveis erros começava a se tornar real.

Ali da oitava fileira do Theatro São Pedro, onde eu sentara bem na ponta direita, era possível ver caras e bocas não só de Jards, mas da banda como um todo. Meus arredores eram ainda mais fáceis de ver, e senhorzinhos e senhorinhas ocupavam boa parte das poltronas. Parecia um reencontro com antigos amigos, ou admiradores, ou aquela reunião de 30, 40 anos da formatura no colégio. Alguns jovens também davam as caras por ali e todos aplaudiam de modo vigoroso.

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Vigoroso como o show como um todo. “Movimento dos Barcos”, “Farinha do Desprezo”, “Gotham City” (aquela que ganhou uma sonora e entusiasmada vaia da plateia), “Revendo Amigos”, “Mal Secreto”, todos os clássicos passaram por ali. Entre os convidados, “78 Rotações” e “Hotel das Estrelas”, com a cantora Thais Gulin; “À Flor da Pele” e “Vapor Barato”, com Zeca Baleiro; e por fim, Luiz Melodia e a canção homenagem “Negra Melodia”. O show ainda teve a participação virtuosa do violonista piauiense Renato Piau.

Emocionante, profundo e cheio de riso, enfim ouvir Jards Macalé ao vivo não só foi um prazer, como também foi um sacrifício: uma crise de enxaqueca assombrosa me tirou do teatro antes do fim definitivo da apresentação. Soube, porém, que mesmo com a impaciência de Jards para repetir o número em homenagem a Moreira (provavelmente porque refazer a performance da faca sem o elemento surpresa não estava nos planos), tudo acabou bem, em palma, riso e alma lavada.

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Um papo com o Guaíba ao fundo

Pergunto para Jards o que o fez começar a cantar, ele que já era compositor muito antes de quase qualquer coisa. E como quase tudo na carreira do homem sentado à minha frente e também impaciente com a cordinha da persiana, balançando por culpa do vento que passa pela persiana aberta (o segundo cigarro foi acesso há pouco), a razão foi a necessidade.

“Eu era muito tímido para cantar, estava sempre por perto de grandes vozes, Cauby Peixoto, Gal Costa… Até mesmo o João Gilberto… Ele um dia me chamou na casa dele e me perguntou. ‘Macal – ele me chama de Macal – você quer saber o que é a bossa nova? Então vem pra cá’. E eu fui. Ele pegou o violão, sentou na ponta da cadeira e passou horas (hoooras) tocando o mesmo acorde. E foi aí que eu entendi que a bossa nova era aquele violão. Pois bem, daí o meu amigo Waly Salomão começou a insistir: ‘você tem que cantar, você TEM que cantar’. E aí eu resolvi cantar, mas do meu jeito, claro. Não sou nenhum Pavarotti, não sou nenhuma Gal Costa. Vamos dar um jeito de fazer as coisas, eu pensei. E aí desenvolvi o meu jeito de cantar. Eu gosto de vozes estranhas, Louis Armstrong, por exemplo, essas vozes que fazem AHHH [o cantor imita uma voz “trombonada”]. E comecei. O mais legal é que todo mundo tem cover. Você ouve as músicas na radio e fica se perguntando: será fulano? Será beltrano? E nunca sabe. Comigo a coisa é diferente, sempre que você ouvir a minha voz, vai saber que sou eu, não tenho cover”.

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A banda que o acompanha desde o início da turnê foi responsável por repaginar músicas que têm mais de 40 anos. Vindos da nova leva de músicos da noite carioca, a formação da Let’s Play That foi mantida em segredo até pouco antes da turnê por motivos que divertem Jards.

“Pra cantar as músicas antigas, músicas feitas em 67, 69, 70… eu tive que reler. Reler as músicas para não deixa-las iguais. Fomos montando o repertório e renovando as músicas, dando tons mais modernos. Mas mantendo a tradição. Eu até nem gosto tanto desse termo ‘releitura’, prefiro dizer que é uma leitura, porque é algo que começou mesmo do zero, só partimos das estruturas das músicas. Eu gosto de tocar com músicos jovens, músicos que estão em formação e que gostam de se expor. E sempre foi assim. Engraçado que antigamente, sempre que eu montava uma banda, vinha alguém e levava um membro. Trabalhava com Gal, com Caetano e, de repente, perdia um membro da banda. [risos] Quer saber? Esses caras tão sempre levando alguém da minha banda, vou começar a ficar na moita. Quando estiver bom a gente aparece.”

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A semelhança estética com o trabalho recente de Caetano também foi pauta. Pensemos só: artistas que tem como instrumento primeiro o violão, acompanhados por bandas completas, umas de rock (como é com o baiano) e outras mais puxadas para o jazz, com sopros e piano (como é com o carioca). Mas para Jards, mesmo sendo parecido, é bem diferente.

“Os trabalhos são totalmente distintos, mas a concepção dos discos vem da mesma coisa, da mesma inspiração. É similar a quando fomos gravar o Transa, tão longe de casa, da nossa terra. Nosso esforço era de gravar um disco vigoroso, um disco cheio de energia e foi o que fizemos. No caso das estéticas de hoje, eu nunca renegaria o rock n’ roll, eu sou filho do rock n’ roll, filho de Elvis The Pelvis, Little Richards, Erasmo Carlos [risos]. As pessoas falam que eu sou tropicalista e que essa mistura está no meu som por isso, mas eu não sou tropicalista. Se eu tivesse participado do movimento ativamente, eu não teria problema nenhum em dizer que sou, mas na verdade eu estava só por ali, estudando paralelamente para ser um músico e o Tropicalismo aconteceu.”

 

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Outra coisa que quis saber de Jards era sobre seu repertório, sobre revisitar e resgatar músicas tão antigas, que já falaram tanto para ele e que têm tanto peso. Para mim, enquanto fã, já é dolorido escutar aqueles versos todos, de tempos em tempos, com tônicas diferentes. Tenho uma relação profunda e muito respeitosa pelo que Jards canta, principalmente em seu primeiro disco, porque muitas vezes – muitas mesmo – ele foi capaz de me acalentar e perdoar, guiar e fazer levantar a cabeça. Hotel das Estrelas, para mim, é uma das músicas mais bonitas já compostas em português. E sempre que a ouço, algo dentro de mim se arrepia e se apruma. Fiquei curioso se o mesmo (esse turbilhão todo) se dava com ele.

“O meu repertório vem sendo revisitado por toda a minha carreira, né. Gal estourou com “Vapor Barato”, no disco Fa-tal, maravilhoso, depois estourou novamente, com a mesma música, num dos discos dela. Aí veio o filme do Walter Salles, Terra Estrangeira, em que ele coloca “Vapor Barato” com a Gal tocando violão ao fim do filme. Depois veio a versão d’O Rappa, uma coisa mais reggae, e também a versão do Zeca Baleiro, em que ele usa a harmonia da minha música para compor a música dele, a “À Flor da Pele” – foi esse o número que fizemos ontem. Então só essa música teve cinco momentos de sucesso, sendo que ela é das mais anacrônicas, uma coisa hippie, ‘eu vou andando por todas as ruas, com minhas calças vermelhas, meu casaco de general, cheio de anéis…”, são figuras muito hippies. Ao redor disso, mais gente gravou minhas músicas, inclusive uma turma de bandas novas gravou um tributo para mim ano passado.”

E foi assim, faceiro e bem humorado, que Jards passou por Porto Alegre. Deixou olhos e ouvidos sorridentes e palmas das mãos dormentes de tanto se encontrarem. Que venha a próxima visita!

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07/05/2014

Me interesso por música desde muito jovem, e de ouvinte acabei passando a músico (claro) e escritor (que surpresa). As bandas até que deram certo, mas escrever sobre música tem sido muito mais recompensador. Sou fã de post-rock e de Deize Tigrona, de Caetano hippie e rap nervoso. Meu refrigerante predileto é Fanta Uva. Adoro morar no futuro.
Pedro Jansen

Pedro Jansen