“Estou bem feliz com isso”. Parece simples demais, mas é da forma mais correta que Karina Buhr fala sobre o novo rumo de sua carreira, que anda ao mesmo passo de suas andanças. Ex-integrante do Teatro Oficina, Mestre Ambrósio, Eddie e Estrela Brilhate, sempre de muitos lugares e muitas coisas ao mesmo tempo. Em 2010, com o lançamento do disco “Eu Menti Pra Você”, Karina – que há mais de dez anos é voz, percussão e composição da Comadre Fulozinha – agora escancara uma assinatura talentosa e honesta, “ficção científica baseada em fatos reais”, como a baiana-recifense descreve. Em entrevista à Noize, Karina foi do carnaval ao carinho pelos músicos com quem toca, tecendo suas descrições com palavras bonitas e sonoras como instrumentos: timbal, alfaia, xequerê.
Texto: Ana Laura Malmaceda
Fotos: Bárbara Santos/ Reprodução
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Você começou tocando no carnaval, certo? Sei que é muito subjetivo, mas dá pra esboçar alguma coisa sobre a sua relação com o carnaval?
Foi com o carnaval que tudo começou pra mim. O carnaval de Pernambuco é um troço muito louco e muito especial. Ter começado como baiana no Piaba de Ouro (maracatu de baque solto, de mestre Salustiano) e sempre tocando quando o mestre virava as costas, por que mulher não podia tocar, foi uma coisa muito preciosa. O primeiro lugar que toquei, podendo tocar realmente, foi no Maracatu Estrela Brilhante (de baque virado), que tem o baque liderado por Walter França, um grande músico e, provavelmente, o primeiro de todas as agremiações a, não só permitir que mulheres tocassem, mas a exigir delas tanto quanto exigia dos homens.
Sugiro uns googles, com as devidas ressalvas, pra quem não souber a diferença entre baque virado e baque solto, por que se eu for explicar aqui, vão rolar umas páginas inteiras só com essa resposta… (risos).
Saí dois anos no Piaba de Ouro (cantando e dançando de baiana e tocando mineiro/ganzá “escondido”), depois passei 4 anos no Estrela Brilhante (tocando bombo, que também chamam de alfaia) e depois 5 anos num afoxé (no afoxé eu tocava timbal, bombo e xequerê). Ao mesmo tempo eu tocava em bandas de estilos totalmente diferentes umas das outras. É difícil de explicar, mas essa mistura toda e mais a loucura que é o carnaval lá são as minhas grandes influências mesmo.
Músicas como a debochada “Ciranda do Incentivo” e a preocupada “Nassira e Najaf” possuem um sentimento de indignação. Você acha que falta esse tipo de voz atualmente? Digo, falta ardil?
Não acho que falta não. Acho que tem muita, mas muita gente mesmo expressando indignação com um monte de coisa, por que, afinal de contas, está tudo errado mesmo, porém, o que é mais divulgado na grande mídia é que é o lado mais blasé. Mas nunca dá pra se deixar enganar por isso. Busco um espaço pra divulgar meu trabalho e muita gente também faz o mesmo. É importante botar sempre muita energia nisso, mas sem perder a essência do que se quer dizer, do que se quer tocar.
Cada vez mais a gente vê fórmulas prontas aparecendo por aí e isso é um saco. Mas acho que o que existe, na verdade, é um descompasso entre a realidade e o que a mídia mostra e isso não está restrito à música, mas é o que impera sobre todos os acontecimentos do mundo. Cada vez mais tem gente procurando fama e não música e não uma expressão verdadeira. Isso é muito triste, mas tem muita coisa de verdade que também está procurando espaço e muitas até estão encontrando.
Ouvindo seu disco, é como relacionar um apartamento a uma pessoa, é um universo só seu, de detalhes, contemporâneo e enraizado ao mesmo tempo. O quão confessionais são suas composições?
São confessionais no sentido de que uso coisas da minha vida pra criá-las, mas também uso o que acontece do meu lado e não tenho nenhum compromisso documental com isso. Costumo falar que é ficção científica baseada em fatos reais.
“Eu Menti pra Você” possui músicos diferenciados, não parece muito um “acompanhamento”. Você concorda? Com isso, muda a maneira de criar nas gravações?
Acho que nunca é um “acompanhamento”. Sempre que um músico toca ele imprime sua identidade e juntei uma galera muito especial mesmo pra tocar comigo. Fico muito feliz de tê-los comigo. A minha maneira de criar não muda em nada por conta disso, pelo contrário, tenho sempre que afirmar bastante as minhas idéias, por que com músicos maravilhosos eu poderia ceder aqui ou ali nas coordenadas e o resultado continuaria sendo legal. Só que, no caso, mais importante do que isso é a identidade dessa história. Prezo muito por isso. Mostro o que quero, eles entram totalmente na viagem e isso é precioso. E cada nota que eles botam é com toda a força que eles tem, de músicos maravilhosos que são. Quando fomos gravar eu já tinha feito todas as letras e músicas e feito os arranjos junto com Mau, Bruno Buarque, Guizado e Dustan. Cito também Otávio Ortega e Guilherme Calzavara, que foram as primeiras pessoas pra quem mostrei minhas músicas e com eles comecei a levantar os primeiros arranjos.
Edgard e Catatau gravaram as guitarras depois que o disco já estava quase todo pronto. Vieram como temperos maravilhosos, a ponto de hoje estarem totalmente envolvidos nesse trabalho. Catatau foi a primeira pessoa que pensei em chamar pra esse projeto, mas por conta de agendas (eles estava produzindo os CDs do Cidadão Instigado e de Arnaldo Antunes) ele acabou chegando no segundo tempo.
A primeira formação que pensei foi com Catatau e Gigante Brazil. Gigante topou, mas a vida não… Enfim, dirijo os arranjos que fazemos juntos e ter essa equipe do meu lado é um presente. Minha equipe amada: Bruno Buarque na bateria, Mau no baixo (produziram o disco junto comigo), Guizado no trompete, Dustan Gallas no teclado, Catatau e Edgard Scandurra nas guitarras e Duda Vieira fazendo o que chamamos de produção e assessoria artística, pela falta de uma denominação que explique realmente o que implica esse trabalho, mas que envolve e liga todas as camadas, de um jeito muito especial.
Sobre a sua relação com o teatro: algumas heranças dessa “formação” se refletem no palco e na dinâmica de criação? O teatro faz parte do universo das suas composições?
Nunca estudei nem música, nem teatro da maneira formal. Tudo o que aprendi e aprendo e desaprendo vem de fazer fazendo. No Teatro Oficina também não foi diferente. Nunca tinha atuado verdadeiramente na vida e, de repente, a partir do convite de Zé Celso (convite feito depois de me ver tocando e cantando na Comadre Fulozinha, em 1998…) me vi no Teatro Oficina, fazendo a peça Bacantes e depois as 5 peças que compõem as 30 horas de Os Sertões. Aprendi muita coisa lá e isso levo pra minha vida, consequentemente pra minha música.
Quando e como você decidiu que ia seguir na música? Digo, for real?
Foi tudo de um jeito muito natural. Não parei e decidi. Quando vi já estava fazendo isso da vida. A única certeza que eu tinha é que nenhuma das profissões que me apareciam via universidade era a que eu seguiria. Por que simplesmente não me vi nunca sonhando em fazer outra coisa além de cantar, tocar, desenhar, atuar, dançar…sem isso não vivo.
Sempre gostei de música e me envolvi completamente com tudo o que acontecia em Recife no início dos anos 90. Comecei naquela época, tocando no maracatu Piaba de Ouro e depois Estrela Brilhante e daí vieram as bandas, primeiro o Eddie, depois a Comadre Fulozinha, DJ Dolores… e passei a fazer tudo ao mesmo tempo.
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Você possui passagem por vários lugares bem, digamos, característicos. Alemanha, Recife, Salvador, e agora São Paulo. As mudanças de lugar são importantes para a identidade da sua música?
Tudo o que acontece comigo é importante pra identidade das minhas músicas, inclusive essas andanças. Mas isso não tem nada a ver com, por exemplo, eu começar a fazer um trabalho sem percussão, mais pop, mais rock and roll por que vim pra São Paulo. Em Recife eu também fazia outros tipos de música além do que faço na Comadre Fulozinha, por exemplo, onde mostro uma influência muito forte dos ritmos de lá. Toquei na banda Eddie, com DJ Dolores, Bonsucesso Samba Clube, entre outras…
Não sei explicar direito as influências, mas talvez justamente porque eu não ache importante explicá-las.
Você tem uma carreira em várias áreas artísticas: artes visuais, dança, teatro. A decisão de tornar-se solo e gravar um disco foi feita como?
Desde 1997 tenho a banda Comadre Fulozinha e toco percussão em outros projetos. Eu tinha essas músicas que acabei gravando nesse primeiro disco e também outras e elas não cabiam dentro do que faço na Comadre Fulozinha. Eu teria que criar outra banda, só que eu já estava bem cansada de não ter um trabalho reconhecido. A Comadre Fulozinha era/é conhecida como uma “banda de meninas” e era bem difícil mostrar pras pessoas que “meninas” eram essas. Recife é massa, mas é também muito machista e eu sempre me via invisível quando as pessoas falavam sobre “as bandas da cena pernambucana” ou algo assim. Se perguntavam sobre mulheres, citavam meu nome, mas antes disso eu era um fantasminha no meio daquilo tudo, apesar de atuar tanto quanto todos os outros e dedicar minha vida totalmente a isso também. Nem eu sabia mais direito qual o meu papel. Resolvi então botar a cara a tapa, assinar em baixo do que faço, dizer o que eu queria dizer com minhas letras e ter uma liberdade maior pra botar essas idéias na rua.
Eu precisava mostrar que eu tocava percussão e cantava, mas o que de mais importante eu tinha eram minhas letras, minhas músicas e isso estava escondido atrás de um “banda de meninas”. Nunca toquei percussão almejando atuar como “músico” em trabalhos de outras pessoas. Minha percussão sempre foi voltada pra o que eu queria dizer com minhas músicas ou então pra tocar no carnaval, na catarse.
Me veio então o impulso de assinar meu nome mesmo, em vez de começar a pensar num nome de banda, inventar uma situação pra isso…não ia ser sincero. Queria ter liberdade também de não depender das agendas de todos os envolvidos pra dar sequência ao trabalho, sabia exatamente o que queria do repertório e da cara desse som e não queria perder mais tempo.
Daí chamei as pessoas que eu gostaria de ter junto nessa empreitada, elas toparam e estou bem feliz com isso.