Entrevista | Lúcio Maia, da Nação Zumbi, estreia solo entre congas e riffs

15/10/2019

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Caio Cestari/Divulgação

15/10/2019

Por quase 30 anos, Lúcio Maia foi conhecido principalmente por ser o guitarrista da Nação Zumbi. Após décadas de uma trajetória que se tornou histórica, Maia decidiu que era a hora de experimentar caminhos que nunca havia trilhado. Desde 2016, ele começou a trabalhar em seu primeiro disco solo, que recentemente veio ao mundo.

Intitulado Lúcio Maia, o álbum apresenta uma cara diferente do músico para quem estava acostumado com a sonoridade da Nação, mas também serve como um convidativo cartão de visitas para quem não havia se conectado ainda ao trabalho dele. A sua busca, conforme ele explica na entrevista que você lê abaixo, foi muito pautada pelo ineditismo, pelo desejo de vivenciar novas experiências, novos timbres, novas estéticas.

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Nesse sentido, o disco traz uma ênfase em ritmos e estruturas de gêneros dançantes de música latina, como a cumbia, a salsa, e a guitarrada, que, apesar de brasileira, é também latina, sim. Inclusive, a identificação do nosso país com o continente latino-americano é um dos temas que instiga Lúcio Maia e que surgem no nosso papo. A situação atual do cenário instrumental e a relevância da guitarra elétrica são outros assuntos que você vê Lúcio comentar abaixo.

O projeto desse álbum solo começou em 2016. O que lhe motivou a lançar um disco solo? 
O que me motivou a fazer esse disco foi exatamente o que me motiva a trabalhar com música a vida inteira. É isso o que eu sei fazer. É a minha missão. Procuro sempre me diversificar bastante, então acho que esse disco é diferente de tudo que já fiz. Acredito que, dentro do âmbito musical, nesses quase 30 anos de carreira, consegui fazer vários tipos de coisas diferentes, e eu nunca tinha flertado diretamente assim com influências de música latina, apesar de que isso tá inserido em muitos momentos dentro da Nação Zumbi. Mas resolvi fazer um disco assim talvez por causa dessa questão, que foi uma ideia que eu tive: nunca tinha feito isso antes, então foi um bom incentivo a fazer um disco com esse formato. 

Como foi o processo de produção do disco?
Foi muito tranquilo, foi lento, tive bastante tempo pra trabalhar. Eu compus os temas muito rapidamente, em torno de dez dias compus os sete temas do disco. Então, essa parte foi a parte mais rápida. O resto, eu fui aos poucos. A princípio, peguei essas ideias e falei com o Tom Rocha, que é baterista da Nação Zumbi, e percussionista da Academia da Berlinda. Ele me ajudou a montar uma demo com um esqueleto, aí convidei o Fábio Sá, que depois acabou gravando o disco, o Maurício [Fleury], que também gravou o disco, a gente montou uma estrutura ali, que é uma demozinha pra se guiar. Fiz alguns shows com eles, uns dois ou três shows pra dar uma azeitada no som, e aí a gente entrou no estúdio e gravou tudo em dois dias. E depois foi pós-produção, mixagem, masterização… Mas foi um processo bem tranquilo, não foi tão lento, mas também não foi um processo que teve que ser dixavado.

Ao longo das décadas, você ficou conhecido por desenvolver uma linguagem própria na guitarra. Até que ponto você quis aprofundar o som que as pessoas já esperam do Lúcio Maia e até que ponto você quis romper com isso? 
Essas coisas são muito difíceis de dizer porque não é isso que eu penso quando eu sento pra fazer uma música ou pra produzir um disco. Eu jamais fico esperando qual vai ser a reação das pessoas. Na real, acho que isso é uma das últimas coisas que penso, se é que penso nisso. Eu faço a música pra mim em primeiro lugar. Se eu gostar da música, e acho que todo mundo é assim, todo mundo que trabalha com arte termina o trabalho no momento em que você se satisfaz com aquilo porque aquilo realmente é a tua expressão e é aquilo que você quer dizer. Primeiro tem que agradar você, depois você mostra pras pessoas e as pessoas vão se identificando. Então, assim, primeiro eu procurei fazer um trabalho diferente, com uma abordagem musical diferente, com timbres… Isso foi um trabalho muito minucioso que eu fiz, o som da guitarra, o timbre do baixo, o timbre dos teclados, tudo isso também foi uma preocupação. Não fiquei voltado só para o âmbito guitarrístico técnico do negócio, pelo contrário, eu queria que o disco soasse de forma super emotiva e eu acho que eu consegui. Tendo em vista a aceitação das pessoas, que captaram rapidamente, não houve estranhamento sabe? Pelo contrário, foi super bem recebido e eu tô muito muito feliz e me sentindo grato por tudo que tá rolando.

Seu álbum aponta essa conexão com sonoridades da música latina; como você sente que o público brasileiro tem assimilado esses sons?
Olha, não é a primeira vez que a gente se propõe a trabalhar flertando com a música latina, né. Porque, assim, a gente não é uma banda de cumbia, a gente não é uma banda de salsa, a gente é uma banda que toca músicas com influências de muitas coisas e uma das mais fortes foi essa tendência da latinidade, das congas, que são muito presentes. Enfim, creio que a internet é super responsável pela popularidade de muitas coisas no Brasil atualmente e muitos ritmos que, antes, eram tratados como regionais, hoje em dia, são vistos como nacionais. E um deles é a guitarrada, a música do Pará inteiro, que é muito difundida naquela região, veio de lá, os artistas mais importantes são de lá, e tá começando a ser absorvida no Brasil. E com certeza é por causa da internet, até porque existem já grandes ícones da música paraense, como a Gaby Amarantos, Dona Onete, outros grandes pesquisadores e músicos como Pio Lobato, enfim, todas essas pessoas são responsáveis pelo que tá acontecendo, essa absorção nacional da música do Pará, que tenho bastante influência também, por sinal. Não é de agora, é de muito antes, porque desde criança a gente ouve a música paraense por causa do “Melô do Puladinho” [apelido da faixa “Lambada do Tibúrcio”] do Aldo Sena, que é um hit do anos 80, tocou muito na minha região, então é uma coisa com que a gente convive já há muito tempo. Eu sempre tive muita influência do Aldo Sena, depois eu tive oportunidade de vê-lo tocar ao vivo e de conhecer ele. Mas acho que isso é devido a essa grande explosão tecnológica, tem muita gente foda por aí dando continuidade, como o Felipe Cordeiro, o Jaloo, artistas incríveis. 

Por que será que ainda não reconhecemos que a nossa produção cultural também é latina?
Pois é, eu creio que isso é um questionamento que deve ser feito, sim, em larga escala. Porque o Brasil tá inserido dentro da América Latina, apesar de que não fale o mesmo idioma é da mesma região. Então, eu acho que é por alguma coisa, talvez uma questão mercadológica ou talvez por uma questão do bairrismo linguístico. Os brasileiros não têm essa questão bem resolvida. Como se, por exemplo, alguém lá do Chile quisesse tocar samba e não pudesse. Acho que essa condição tá em aberto aí pra quem quiser. Não existe regra, a música não pode ter regras, a música não pode ter formatos, e não pode ter fórmulas, essas coisas têm que acontecer pelo que elas são, acho que é isso o que a música tem a oferecer para as pessoas. É, num certo momento, você se deparar com uma canção e ela te atingir de um jeito que pode mudar tua vida, assim como tem tantas pessoas que usam a música como uma maneira dos seus problemas, enfim. A música tem uma condição espiritual muito forte no ser humano.

Como você sente o consumo de música instrumental (fora do circuito erudito) no Brasil hoje? Qual contribuição você busca trazer para esse cenário?
A música instrumental hoje em dia tomou outra proporção, diferente de antigamente né, até porque se ampliou bastante. Ainda no final dos anos 80, começo de 90, começaram muitas bandas incríveis instrumentais, que foram abrindo o leque pra muitas outras, hoje em dia tem um monte de banda instrumental por aí. Tem a Khruangbin, que é uma banda texana incrível, que é bem grande, tem sei lá, um milhão e quinhentos mil ouvintes mensais, tem aquela BADBADNOTGOOD, que também é uma banda muito bacana, hoje em dia tá bombando por aí bandas jovens instrumentais de altíssima qualidade. Quando eu fiz esse disco, eu não imaginei que ele ia ser instrumental, ele virou instrumental. A ideia era fazer um disco com influências de música latina, mas eu não encontrei um parceiro ou uma parceira que me ajudasse com as questões das letras e da música cantada em si, aí resolvi desencanar disso. E as coisas acabam acontecendo como elas têm que ser né.

Lúcia Maia comenta as experimentações de seu disco solo (Foto: Caio Cestari/Divulgação)

Além das composições autorais, você trouxe para seu disco uma versão inusitada de “Lithium”. O que lhe motivou a revisitar esse clássico do Nirvana?
Como eu comecei a fazer essas composições em 2016, eu tinha acabado de ver o documentário no Netflix do Kurt Cobain. E foi legal porque o Nirvana foi uma banda que passou meio em branco pra mim naquela época. No começo dos anos 1990, eu estava pirando em outras coisas, minha cabeça estava mais voltada pro rap, eu estava ouvindo o NWA e todas aquela explosão da West Coast, não estava muito prestando atenção nos cabeludos de Seattle. Apesar de que ele não era de lá. Mas enfim, o grunge, quando surgiu, eu achava “po, legal essas bandas de rock”, mas passou um pouco em branco. Depois, teve o lance do suicídio dele e eu fiquei me sentindo mal. Foi uma banda que todo mundo pirou tanto e eu não conhecia, aí passei a procurar saber só depois da morte do Kurt Cobain, e aí que eu entendi a banda que eles eram. Achei muito foda, comecei a pirar, ouvir os sons e tal. Aí passou. E sei lá, uns 15 anos depois, 20 anos, em 2016, eu fui ver o documentário e passei a ouvir de novo e pirei de novo. E aí, até porque a gente estava precisando de músicas pro show, eu fiz alguns covers, e essa de “Lithium” foi uma que ficou super bacana, o andamento é muito parecido do original, então foi fácil de transpor pra uma levada diferente. Eu toco no tom original… Mas foi mais por isso, por uma identificação, pela questão de eu estar ouvindo ali naquele processo de construção do negócio. E a versão ficou meio popularzinha nos shows, as pessoas ficavam comentando, aí resolvi gravar no disco.

Você é um guitarrista lançando um disco de música instrumental bastante centrado na guitarra. Hoje, dentro de alguns estilos, há uma tendência de se questionar o papel da guitarra na formação base de uma banda. Como você avalia esse contexto atual do instrumento? Na sua visão, a guitarra pode ou precisa ser reinventada? 
Olha, isso pra mim nunca foi uma questão, não. De a guitarra ser reinventada. Até porque a gente tá meio velho já, a gente vai fazer 30 anos de carreira, e a gente passou por muitos momentos já. Eu vim de uma época em que as bandas que eu gostava eram dos anos 1970 e 80 e aquilo ali era apinhado de guitarra. Metal eu gostei muito, gosto até hoje, e tem muita guitarra. Nos anos 1990, veio aquele período dos grunges, e tinha muito rock bombando por trás, enquanto a música eletrônica estava começando a estourar mundialmente, e ali já não tinha mais guitarra. O boom do Daft Punk, Chemical Brothers, nada daquilo tinha guitarra. E a guitarra foi sobrevivendo, passando seus perrengues, seus auges, seus altos e baixos. Eu, como instrumentista, não me preocupo com isso porque sei que a guitarra vai ser um ser, assim como o vinil, que vai passar por seus momentos, mas nunca vai desaparecer. Ela é essencial. E a guitarra não começou com a guitarra do Leo Fender, começou muito tempo antes. É uma coisa muito antiga. E que ela tá sendo reinventada é certeza. Já já vai aparecer aí um moleque fazendo alguma coisa incrível com o instrumento. Já tem muita coisa… Você vê que a técnica desenvolvida já evoluiu bastante, é só verificar nesses vídeos do YouTube, do Instagram, a molecada tá fazendo horrores. E isso aí vai continuar. Assim como scratch, que parou de ser inserido no rap, mas continuou, existem campeonatos e mais campeonatos de scratch por aí, virou outra coisa. Não vai morrer. Já tá sendo reinventado assim como a guitarra, o baixo, tudo, todos os instrumentos.   

Seu lançamento solo interfere de alguma forma na dinâmica com a Nação Zumbi? O que um projeto traz para o outro?
Sem dúvida, interfere diretamente, indiretamente, eu não sei te explicar nem mensurar quanto influencia, mas obviamente essas coisas todas fazem parte do processo e têm a sua importância. Pra mim, tudo é o lance do momento da vida, muito mais importante do que qualquer outra coisa. Quando você sai migrando de momentos de sua vida, que você tá ouvindo um som ou tá vivendo numa cidade, e aí você se muda e vai e conhece outras pessoas, todos esses momentos vão te modificando e vão trazendo necessidades diferentes. Então, eu acho que todos os projetos que a gente faz interferem dentro da Nação Zumbi. E a Nação Zumbi interfere nos projetos. São trocas em um ambiente sadio de criação, um ambiente artístico totalmente propício, totalmente benévolo pra tudo. Até porque a gente vai se desenvolvendo. Não dá pra mensurar, não faço ideia, mas com certeza isso acontece.

Maia no palco (Foto: Caio Cestari/Divulgação)

15/10/2019

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Ariel Fagundes

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