Entrevista | Moreno Veloso e a experiência de reviver o “Refavela”

08/12/2017

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Rodrigo Laux

Por: Rodrigo Laux

Fotos: Paola Alfamor/Divulgação

08/12/2017

No início de 1977, Gilberto Gil embarcava em uma viagem a Lagos, na Nigéria, que mudaria sua vida e se tornaria um marco na sua carreira, além de definir o rumo da sua famigerada trilogia do Re. Acompanhado de Caetano Veloso, de suas respectivas companheiras na época – as irmãs Dedé e Sandra Gadelha – e de outros músicos, Gil participou do 2º FESTAC (Festival Mundial de Arte e Cultura Negra), um evento gigante que contou com mais de 50 mil artistas africanos e da diáspora durante janeiro e fevereiro daquele ano.

A experiência abriu para Gil, como ele mesmo já explanou em diversas entrevistas, portas para um nível muito mais profundo de contato com as suas raízes musicais e com a cultura afrodescendente. Foi lá que ele definiu o conceito do álbum que se tornaria um dos pontos altos de sua carreira, o Refavela (1977), que dava continuidade ao seu ímpeto de conectar o próprio passado ao presente e ao novo, como havia sido no disco Refazenda (1975). Agora, ao invés de explorar suas raízes na sonoridade mais rural do nordeste, Gil se reencontrava com ele mesmo ao voltar-se à sua afro-brasilidade no ambiente urbano.

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Em Refavela, Gil misturou ritmos africanos, como o então recém surgido afrobeat (fruto do contato que Gil teve com Fela Kuti na Nigéria), o reggae (que já encantava o músico desde a época do exílio), o soul abrasileirado que ascendia com grupos como o Black Rio, os blocos afro da Bahia, o samba e o funk norte-americano da época. Dá pra imaginar mais groove do que isso?

Quarenta anos depois, o clássico está sendo revisitado por Gil em um show histórico que celebra o aniversário do álbum, além de trazer à tona as poesias e as sonoridades que parecem seguir tão ou mais atuais e inovadoras do que na época de seu lançamento. É por isso que seu filho Bem Gil – que é responsável pela idealização e direção do espetáculo, além de tocar guitarra nele – optou por recrutar músicos que não só tivessem a capacidade técnica de reproduzir os sons do Refavela, mas que compartilhassem do amor pela sonoridade e teor poético e filosófico do disco.

Pra isso, ele chamou os músicos Bruno Di Lullo (baixo), Domenico Lancellotti e Thomas Harres (bateria e percussão), Thiagô Queiroz e Mateus Aleluia (sopros), e Nara Gil e Ana Cláudia Lomelino (vocais). Quem completa o time para dividir os vocais ao lado de Gilberto Gil são as cantoras Maíra e Céu, além de Moreno Veloso, cantor, compositor e filho do principal parceiro musical da vida de Gil.

No domingo, 10/12, o show Refavela 40 chega a Porto Alegre (mais informações aqui). Aproveitamos para conversar com Moreno Veloso sobre o espetáculo e toda a carga de energia e emoção depositada por Gil e pelos músicos para fazer, como ele destacou, não uma imitação ou uma releitura, mas sim versões feitas “com o coração” por músicos que amam o Refavela.

Confira a entrevista completa abaixo.

Quando o Refavela saiu você tinha o que, uns 5 anos de idade?
É, eu tinha 4 pra 5 anos de idade mais ou menos.

Imagino que você tenha praticamente crescido ouvindo o disco. Você lembra quando foi que ele bateu pra você? Ou ele foi sendo assimilado ao longo da vida? Fala um pouco da tua relação com o Refavela.
Cara, eu acho que bateu cedo porque eu me lembro muito da viagem que eles tiveram na África. Meu pai, minha mãe, minha tia, Gil… me lembro de logo quando eles chegaram de lá, de como eles estavam animados e todas as coisas, as histórias, as fotos, as músicas… e essa viagem se refletiu nos dois discos né, de meu pai… acho que é o Bicho, né? E o de Gil que é o Refavela. Imensamente. Então eu não só acompanhei a volta da viagem, como acompanhei também essas gravações, acompanhei o lançamento dos discos. Eu era muito pequeno, mas essa viagem ficou na minha memória. Não que eu tivesse ido, mas o espírito deles quando voltaram era tão impactante que ficou na minha memória. Então essas músicas, essa sonoridade… elas já me acompanham desde essa época, desde a feitura do disco. E além de tudo isso, é muito familiar também, porque é da época que Gil era casado com a minha tia, que é irmã de minha mãe e mãe de meus primos. Eu vivia na casa deles quase todos os dias pra vê-los, então era um momento que o Gil estava muito próximo diariamente na minha vida. Isso faz com que esse disco e essa época sejam muito familiares mesmo. E além disso, claro, quando eu cresci e fiquei adolescente, com uns 13, 14 anos, eu pude curtir ainda mais o álbum. Porque não eram só as lembranças da incitação africana que se abateu sobre meu pai, Gil, minha mãe e minha tia. Mas também os arranjos, os músicos, aquela mixagem maluca com baixo, contratempo alto… tudo aquilo era muito excitante quando eu fiquei adolescente. E continua até hoje excitante. É impressionante como eu vejo que esse disco, essa sonoridade, essas músicas, elas ainda atingem as pessoas de hoje em dia. E mesmo as antigas como eu. É do mesmo jeito que me atingiam quando eu era adolescente e reouvi o “Refavela” num sentido estritamente musical.

O Bem Gil disse que a ideia, mais do que recrutar músicos que fossem tecnicamente capazes de reproduzir as canções do disco, era que fossem músicos que tivessem um gosto especial pelo Refavela, pra que fosse um trabalho divertido pra todos os envolvidos. Isso tem se concretizado? Como tem sido a turnê?
Nossa, arrepiante. Foi tão forte que a gente chegava a chorar no palco, eu chorei logo no primeiro ensaio. Quando eu vi a banda tocando, as lágrimas escorreram na mesma hora porque todo mundo realmente é apaixonado pelo disco. Então não é que a gente tá imitando o disco, a gente tá tocando com o coração, a sonoridade que sai não é uma imitação ou uma releitura. É simplesmente o que a gente lembra, o que a gente gosta, o que a gente consegue, o que a gente tá querendo. E o resultado disso é tão emocionante, tão arrepiante quanto o próprio disco. E no palco, eu acho que nós todos sentimos essa vibração. Todos realmente somos apaixonados por essa época, por essa sonoridade, por esse disco. E acho que a plateia sente isso também, porque a gente sente uma ligação forte, uma energia que vai e volta.

Ouça abaixo “É”, faixa de 1977 composta para o Refavela e que ficou de fora do álbum original:

É bem do jeito que o Gil gosta de fazer música né? Energia e coração.
Justamente, e a presença dele é mais emocionante ainda. Nessa hora ninguém se aguenta. Eu já não aguento mais chorar (risos).

Como que foram definidos os novos arranjos? Já ouvi falar muito que o Gil gosta de construir isso junto com os músicos no estúdio, foi assim também?
Antes mesmo do Gil chegar no estúdio, o Bem já tinha encomendado pro Thiagô Queiroz, que é o saxofonista, a refação e reestruturação dos arranjos de naipe do disco. E os próprios Bem, Thomas Harres, Bruno Di Lullo, Domenico Lancellotti… eles também já tinham uma ideia mais ou menos de como formatar aquelas bases de baixo, bateria, percussão e guitarra. Então quando o Gil chegou eles já estavam bem adiantados, porque os arranjos de naipe já tinham sido transcritos e refeitos de acordo com as possibilidades concretas da banda, e as bases já estavam muito redondas com a forma como eles conseguiram dividir a percussão com a bateria, o baixo e a guitarra. Já tava muito bom. E o Gil, que adora arranjo e adora participar da vida musical da banda, ficou muito alegre logo que chegou, e já foi lapidando uma ou outra coisa ali pra deixar ainda mais brilhante a sonoridade. Foi lindo o processo.

Fala um pouco da sua relação com a Maíra e a Céu. Vocês já tinham trabalhado juntos?
Já tinha trabalhado com elas algumas vezes sim. Tanto a Maíra quanto a Céu participaram da Orquestra Imperial, dos nossos bailes. E a Maíra chegou até a participar quase que oficialmente da Orquestra Imperial por um tempo porque a Thalma (de Freitas) foi morar em Los Angeles e a gente ficou precisando de ajuda feminina. E também já trabalhei com a Céu, fizemos uma gravação juntos de um programa de televisão, eu acho, que a gente gravou uma música antiga do A-ha, uma coisa assim. Foi uma experiência muito boa. E eu sou muito fã dessas meninas, cara. Elas são diferentes e incríveis, cada uma no seu estilo. A Maíra, além do suingue e do carisma, ainda toca piano incrivelmente bem. É uma musicalidade altíssima que vem dentro daquele invólucro de carisma inalcançável que ela tem. E a Céu nem se fala né, sou fã desde o primeiro disco, sou fã da voz, sou fã da pessoa, sou fã dos discos, sou fã da presença dela no palco, da beleza… é uma coisa muito linda né, a Céu.

E o que dá pra esperar do setlist além das músicas do Refavela? Qual foi o critério pra escolher os demais sons do show?
O critério foi pegar as músicas da época, que tão em volta do disco. Algumas foram gravadas pro disco mas acabaram nao sendo incluídas no LP, outras foram cogitadas pra gravação e não foram incluídas nem nas sessões do estúdio. Músicas também do disco Bicho, do meu pai, que é um disco irmão, que veio da mesma fonte, dessa mesma viagem pra África. Então são músicas daquele momento, e que outras pessoas gravaram nos anos 1970. Erasmo Carlos, Ney Matogrosso, acho que a própria Nara Leão… são canções que orbitavam o universo do Gil na época do Refavela. E mais, obviamente, alguma coisa do Bob Marley, porque também no mesmo ano de 77 ele lançou o Exodus, que é um disco super impactante que também ta fazendo aniversário. Então tem essa relação muito próxima do Gil com o Bob Marley, que aparece no show.

Tem a história do balafon, que dá nome a uma das músicas do disco e é um instrumento que o Gil trouxe da Nigéria. Li que ele ficou com o Djalma (Corrêa), percussionista do disco.
Sim! Essa lenda existe, mas não posso confirmar, mas eu ouvi a mesma história. (risos)

Ia perguntar se ele tá sendo usado no show ou algo assim.
Não, o balafon que está sendo usado no show provavelmente é outro, porque é um que o Thomas Harres trouxe de uma viagem que ele fez à África, e é um balafon diatônico afinado em dó, no mesmo tom da gravação. Ou seja, é um balafon irmão, muito próximo do balafon que o Gil trouxe da África e usou no disco. Então, até onde eu sei, é outro.

Considerando que você também é compositor, tem alguma lição marcante do Gil, ou mesmo do seu pai, que marcou a sua vida? O que você pode dizer que absorveu muito forte deles dentro do lance da composição?
Cara, a gente acaba aprendendo alguma coisa ou outra com a convivência. O Gil passa o dia inteiro com o violão na mão, experimentando coisas, tocando coisas conhecidas ou simplesmente dedilhando notas ao acaso. Algumas vezes, desses momentos de intimidade com o violão, nascem canções. E eu sou muito fã do violão do Gil, e sempre, desde pequeno, eu tava lá abusando ele com o meu violão do lado, pedindo pra ele me ensinar uma coisa ou outra dele em primeira mão, e ele sempre foi um professor muito bom pra mim nesse sentido. Muita paciência, muita alegria me ensinando as coisas, gostando de ver que eu tava interessado. E na minha vida de compositor muitas vezes eu também to dedilhando um violão com notas ao acaso, e daí sai uma música, sai um riff, sai alguma coisa que vai virar uma canção. É um estilo de composição bem Gilbertiano, digamos assim. E meu pai me ensinou muito mais coisa. Ele ensinou, por exemplo, que as músicas não podem ser perfeitas porque não dá tempo. (risos) Em alguma hora você tem que deixar a música ser terminada, você tem que entregar aquilo, tem que se contentar que ela já ta pronta mesmo. Meu pai é muito crítico com as próprias coisas e com as coisas dos outros também – dá pra ver né, pelo posicionamento dele de sempre. E eu também fui educado nessa mesma base crítica, então nós somos muito exigentes, principalmente conosco. Pessoas assim podem cair na armadilha de não terminar nada, de achar que as coisas nunca estão suficientemente boas pra serem apresentadas. Mas ainda bem que meu pai me ensinou – e ele tem dentro dele também – a urgência de apresentar as coisas, de não esperar ficar perfeito pra mostrar. Então isso é um ensinamento muito grande, e que até hoje me acompanha quando faço qualquer canção.

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08/12/2017

Rodrigo Laux

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