Entrevista | Noura Mint Seymali e a música griô da Mauritânia

04/12/2023

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Jacob Crawfurd/Joe Penney/Malika Diagana/Divulgação

04/12/2023

Com seu canto hipnótico e tocando seu ardin, Noura Mint Seymali vem promovendo uma revolução na música da Mauritânia. A artista começou sua carreira aos 13, como vocal de apoio de sua madrasta, Dimi Mint Abba, uma das maiores vozes da música mauritana. Seu pai, Seymali Ould Ahmed Vall, também é um músico e compositor importante do país, que possui uma importante tradição musical centrada na figura dos griôs. “Cresci em uma linhagem griô que vinha do lado paterno da família”, explica Noura em entrevista a Noize: “O papel dos griôs na Mauritânia é que eles são o grupo que tradicionalmente guarda a história oral, faz poesia e conta histórias”.

Desde 2004, Noura toca com seu marido, Jeich Ould Chighaly, no circuito local de Nouakchott, a capital do país. Enquanto ela canta e toca o ardin, um instrumento tocado apenas pelas mulheres griôs, Jeich toca guitarra e o tidinit, instrumento exclusivo dos homens. Como dupla, eles lançaram dois discos na Mauritânia, Tarabe (2006) e El Howl (2010). Após se unirem ao baixista Ousmane Touré e ao baterista e produtor Matthew Tinari, em 2012, Noura e Jeich gravaram os EPs Azawan (2012) & Azawan II (2013), ambos gravados em Nouakchott.

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A tradição musical mourisca corre em suas veias, mas Noura vem desenvolvendo há décadas um trabalho que expande os limites das formatações ancestrais, pondo em diálogo a modernidade e a tradição. “É uma forma de ter o melhor dos dois mundos, como se estivéssemos rearranjando e modernizando isso, mas nós também não descartamos tudo, ainda está muito conectado à música tradicional”, diz a artista.

O nome da artista passou a circular internacionalmente no ano seguinte, em 2014, quando assinou um contrato com a gravadora Glitterbeat Records, que lançou Tzenni (2014), reunindo músicas dos lançamentos anteriores e novas gravações, e o álbum seguinte, Arbina (2016). Nos últimos anos, Noutra vem se dedicando a viajar pelo mundo com sua música.

De lá pra cá, tocou em grandes festivais, como o norte-americanos Desert Daze, Bonnaroo e globalFEST. Ela se apresentou também na Europa, na Oceania, na Ásia. Em 2019, Noura tocou no Mimo Festival, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em 2023, ela retornou ao Brasil, parte da programação do festival paulistano Sesc Jazz. Em meio à correria da passagem de som, Noura conversou rapidamente com a Noize, tendo sua fala em francês sendo traduzida para o inglês pelo baterista Matthew.

Foto: Joe Penney/Divulgação

Qual é o papel dos griots na Mauritânia e como você se conecta com essa tradição?

Minha conexão com a cultura griô é que eu nasci nela. Meu pai era griô, minha mãe, não. Cresci em uma linhagem griô que vinha do lado paterno da família. O papel dos griôs na Mauritânia é que eles são o grupo que tradicionalmente guarda a história oral, faz poesia e conta histórias. São responsáveis ​​pela tradição oral sendo passada de geração em geração. Eles têm licença para tocar música tradicional em cerimônias, são os músicos tradicionais do país. Esse é o ofício deles. Eles são os músicos da sociedade, e desde muito atrás, nos tempos antigos, o jornalismo, a transmissão de diferentes mensagens, era tudo feito por meio de música. Então é o grupo de pessoas que tradicionalmente conta histórias através da música, também guardamos a história e tocamos músicas com finalidades culturais.

Existe uma forte tradição de instrumentos de cordas africanos. Você toca o ardin, pode nos contar sobre ele?

O ardin é um instrumento que só se encontra na Mauritânia, é específico da Mauritânia, você não o encontra em outros países da África Ocidental. Ele é tocado exclusivamente pelas mulheres griô, então os homens tradicionalmente não tocam, e as pessoas que não são griô geralmente não tocam o instrumento também. É feito de cabaça e madeira. Existem diferentes tamanhos de cordas, podem ser 14, 15, 16 cordas, podem ser menores. Este tem nove cordas, é deliberadamente pequeno para caber no compartimento superior do avião. E você pode usá-lo para tocar percussão também, esta parte aqui [a cabaça] é usada para percussão às vezes.

Por que é tocado apenas pelas mulheres?

É apenas um costume tradicional. Ele é acompanhado por outro instrumento, que é tocado apenas por homens, chamado tidinit. Normalmente esses instrumentos vêm juntos. É como uma vestimenta, ou alguma outra coisa, tradicionalmente é apenas para as mulheres. É assim que a cultura é, não há realmente uma razão, apenas é o que é.

Você pode comentar mais sobre como a sua espiritualidade está ligada à sua música?

A música está muito integrada em todo o tipo de estilo de vida na Mauritânia, e como a espiritualidade é uma grande parte da vida, obviamente a música e a espiritualidade se fundem, tudo faz parte do mesmo tecido. Canto às vezes algumas músicas devocionais para o Profeta Muhammad, e essas músicas podem começar com algumas palavras ou frases devocionais. Então o assunto [das canções] muitas vezes aborda religião e espiritualidade, mas também é apenas música, e está tudo conectado.

No EP Azawan, vocês trabalham com cinco modos melódicos da música mourisca tradicional, e cada um busca produzir um efeito, certo? Como funciona esse sistema? Vocês ainda usam esses modos?

A música tradicional mourisca divide-se em cinco modos. Há um ciclo modal em que, nas performances tradicionais, você passa por cada modo em sequência. Então depois de terminar de tocar o primeiro modo, você passa para o segundo, e não vai voltar para o primeiro. É um ciclo completo, quando chega ao quinto modo, tudo acaba.

Então isso é como um sistema energético, que existe há muito tempo, e é uma espécie de estrutura onde cada parte tem uma energia diferente. Assim como o segundo e o terceiro modo, por exemplo, são muito quentes e enérgicos, o quinto modo meio que traz você de volta à calma. No EP Azawan, a ideia era tentar conseguir uma música de cada modo, pra representar isso no disco.

Quando tocamos ao vivo e nos disco depois de Azawan, nem sempre respeitamos a ordem modal. Quando tocamos num contexto diferente, nem sempre é necessário aderir estritamente à sequência modal. Mas é algo que conhecemos e certamente é um guia de como construir um set list às vezes. O raga indiano é um pouco assim, cada modo tem uma espécie de vibração e dá cor a esse modo.

Você traz o canto tradicional para uma base de bateria, baixo e guitarra. Recentemente, em 2023, saíram colaborações suas com o rapper francês CTD Diamant Noir. Como o público da Mauritânia vem recebendo o seu som?

Então, no início havia tradicionalistas ou puristas na Mauritânia, que pensavam que esta música deveria ser tocada sentada, e que a bateria não é um instrumento tradicional e tudo o mais. Havia uma espécie de purismo no início, mas as pessoas aceitaram, e fizemos um esforço para manter muitos dos aspectos tradicionais no que estamos fazendo. Na bateria, por exemplo, são os ritmos tradicionais adaptados à bateria. Não mudamos radicalmente a estrutura ou as melodias ou coisas assim.

É uma forma de ter o melhor dos dois mundos, como se estivéssemos rearranjando e modernizando isso, mas nós também não descartamos tudo, ainda está muito conectado à música tradicional. Agora as pessoas aceitaram isso, com certeza muita gente na Mauritânia está orgulhosa. Há toda uma geração jovem de músicos, muitos artistas atualmente estão fazendo coisas que estamos tentando fazer há algum tempo. No início, havia mais uma espécie de reação purista a isso, agora as pessoas aceitaram e estão orgulhosas e nos encorajando.

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04/12/2023

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

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