Entrevista | O acalanto chill out de Yazmin Lacey

21/10/2019

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Guilherme Espir

Por: Guilherme Espir

Fotos: Guilherme Espir

21/10/2019

O groove vive um momento de mutação. O rótulo Neo-Soul foi mais um que entrou pela tangente do R&B e caracteriza essa malemolência com tons mais modernos. É uma consequência natural do momento que a música vive, principalmente em função da relevância do Hip-Hop no cenário contemporâneo da cultura Pop.

O Jazz influenciou a abordagem dos timbres dessa nova ramificação e misturou essa riqueza de temas e variações com uma escolástica que sempre tratou as batidas muito bem. Com a fusão dos scratches, o resultado é um som mais cool e preciso, com aquela exatidão que lembra um beat.

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Aquela caixa e bumbo milimétrica, o compasso do groove encorpado e um toque minimalista nas harmonias. Falando assim até parece fácil, mas quem viu o show da cantora britânica, Yazmin Lacey – debutando em terra brasilis com seu trio – logo percebeu que fazer o Funk pulsar está longe de ser uma tarefa fácil, ainda mais com um som tão delicado.

Dona de um requinte e um feeling grandioso, Yazmin foi responsável por um show interessantíssimo. Ao vivo, ela mostra as novas características dos artistas mais novos que estão começando a conquistar o mercado de Soul/Funk/R&B e tudo que orbita o groove.

A Yazmin Lacey dá o que falar no cenário de Londres desde 2017. Radicada em Nottingham, sua peculiar abordagem ecoa na cena desde que o EP Black Moon chegou como quem não quer nada. No EP, a cantora pinta um universo sublime, onde o Soul é sua principal veia para emoldurar os belos instrumentais que contextualizam seu trabalho, mas o que chama atenção é, apesar de uma abordagem que muitos diriam que é mais sintética, que o som se mantém cremoso e orgânico do começo ao fim do espetáculo.

Graças ao DJ, radialista e colecionar, Gilles Peterson (dono da Bronswood Recordings) que o talento da Yazmin começou a ser mais reconhecido. Um dos principais fomentadores da cena, Gilles promove uma série de lançamentos em Londres, dando atenção desde o underground, mas também com alcance mainstream. Com a sua icônica série de compilações intitulada “Bronswood Bubblers” – que já está na décima terceira edição – o Funky junkie coloca muitos projetos no mapa e a voz da Yazmin foi um deles. Aliás, Yazmin e seu trio, brilhantemente formado por Jordan Hadfield (bateria) Sarah Tandy (teclados) e Marla Mbemba (baixo).

Salvo o primeiro trabalho de estúdio, que contou com membros da Three Body Trio e da Broadstrokes, o segundo trampo de estúdio da cantora, o competente When The Sun Dips 90 Degrees, foi o que de fato direcionou seu trabalho no último um ano e meio e tudo isso esteve presente no palco do SESC Pompéia.

Mais um dia de SESC Jazz. Uma atração que mostra a atenção da curadoria frente ao cenário emergente do Jazz atual, o show da Yazmin foi cirúrgico e dentro do que estava proposto, beirou a perfeição. Com o mesmo cuidado e a precisão das gravações em estúdio, a cantora conduziu seu trio com grande liberdade e fez seu compacto repertório render, preenchendo o set com pouco menos de 90 minutos.

Sabe aquela velha história que grandes músicos só tocam com os melhores? Então, pois bem, isso também vale para a cantora. Num trio muito entrosado e bastante prudente, Sarah Tandy (teclados) é quem roubou a cena no show. Com harmonias doces, feitas com uma das mãos com a tranquilidade de um monge budista, a requisitada instrumentista (que, além de disco solo, já gravou com a saxofonista Camilla George), é peça chave no combo.

Ela harmoniza e conduz o show como um termômetro. A bateria de Jordan Hadfield é muito compacta, mas está longe de ser fácil. Parece que ele só acompanha o som, mas nota-se a sua precisão, justamente pelo fato de manter a constância em termos de timbre. A baixista, Marla Mbembe é outra que poderia ter passado desapercebida, mas os seus grooves  estavam sempre presentes, a questão é que pela proposta, os graves endossavam os climas quentes… Não tinha espaço para chegar com uns tempos mais quebrados.

A voz da Yazmin era o plano de fundo e apesar da clara extensão vocal e da apurada técnica, a própria interação dos músicos aponta para o show vibrante, bonito e groovado, mas com um equilíbrio e uma sobriedade gigante.

Essa é a tal da proposta do Neo-Soul… Houve também espaço para a improvisação e para que uma das cantoras mais interessantes dessa nova geração de músicos londrinos mostrasse seu repertório formado por clássicos instantâneos, como “Something My Heart Trusts” e “A Mother Lost”.

O som deixa o ouvinte intrigado. O frescor é tão notório que a Noize teve que trocar uma ideia com a cantora pra entender um pouco mais sobre essa fórmula tão suave, mas ao mesmo tempo tão impactante. O público que esgotou os ingressos para o show em apenas 15 minutos não se arrependeu nem por 1 minuto… Eu mesmo saí da Comedoria do SESC torcendo para que ela grave um full lengh e não um terceiro EP.

Como você vê a relação do movimento Neo-Soul – liderado pela Erykah Badu & The Soulquarians – frente à cena Acid Jazz que foi o contraponto que aconteceu na cena de Londres?

Eu entendo o seu ponto. Definitivamente foi um momento muito importante, esse envolvimento da Erykah com o pessoal do The Roots e etc, mas em Londres é um pouco difícil entender essa questão do Acid Jazz, pois muito músicos que foram rotulados dessa forma nem fazem parte desse contexto mais, sabe?

Algumas bandas dessa cena de Acid Jazz que tiveram um trabalho mais longevo conquistaram essa alcunha, enquanto hoje em dia parece algo que é uma consequência natural dentro do que essa nova geração de músicos está produzindo. Talvez não tenha funcionado como um contraponto, mas é uma visão interessante. 

Pelo fato de ter crescido em Londres e pegado um pouco dos resquícios dessa época, eu vi elementos de Drum & Bass, por exemplo, que mostram diferentes abordagens para interpretação. Quando eu penso nisso o nome do Henry Wu (Kamaal Williams) sempre vem à minha mente, justamente pelo desenvolvimento dessa nova linguagem.

O Kamaal conversou comigo semana passada, achei muito interessante a visão dele quanto a questão da “cena de Londres” nesse sentido.

Em Londres existe essa questão do Jazz muito forte, mas lá os próprios músicos possuem influencias diferentes. Pela liberdade que o Jazz nos proporciona, não faz sentido ficar só nessa caixinha, sabe? Eu mesmo sou muito influenciada por esse conceito de liberdade, mas também adoro R&B e Soul, por exemplo. 

Lá vocês tem um senso de colaboração muito interessante. Você tem o Joe Armon Jones (tecladista) tocando com o Ezra Collective, Jorja Smith, Nubya Garcia, por exemplo, sempre orbitando diversos projetos. 

Isso é uma característica marcante da cena, eu mesmo já toquei com o Joe, Shabaka Hutchings, o próprio Henry Wu me ajudou bastante no começo. Eu acho que ter essa questão do rótulo possui seus pontos positivos e negativos. Por um lado talvez exista um hype, mas ele é importante justamente para captar a atenção das pessoas.

Por um longo tempo eu acho que as plateias sentiam que o Jazz era música da classe média branca. Hoje o pessoal está indo atrás do som e se engajando com uma mentalidade muito diferente e isso é muito importante pra nós.

Pegando o gancho dessa questão da colaboração novamente, queria falar sobre a questão de consumo. Na Europa parece que tanto os músicos quanto os ouvintes consomem sem necessariamente precisar seguir uma tendência. Isso é interessante por que no Brasil as pessoas consomem o rótulo e eu queria saber a sua opinião, porque em Londres, não é como eles não ligassem para o que estão tocando, mas isso é apenas um detalhe, sabe? O que você pode falar nesse sentido de liberdade que vocês possuem? 

É interessante você falar isso porque, quando eu estou trabalhando, eu não chego no estúdio e falo: hoje vou gravar um EP de Jazz. Como artista você precisa ter essa liberdade de mudar o que você está fazendo. 

No momento eu estou trabalhando em coisas muito diferentes do que você escutou nos dois EPs. Umas coisas misturadas com música eletrônica, por exemplo. Eu também chamei o Femi Koleoso (baterista da Jorja, Ezra Collective e Nubya Garcia) pra gravar comigo… É algo bem diferente do que eu fiz antes, mas é um caminho natural pra mim e serve como um projeto paralelo para que eu me mantenha estimulada criativamente, entende? 

É interessante como essa questão da arte vem antes porque é algo natural e você só dá vazão pra esse sentimento. No momento em que eu estiver pensando na música dessa forma talvez seja hora de parar… Eu gosto da ideia de se expressar, sabe? Não acho que o problema seja categorizar, acredito que isso até facilita pra mostrar uma referência na hora de passar um som pra alguém, mas é tudo uma questão de expressão no fim do dia.

Em 2017, eu conheci o Adam Moses e Justin McKenzie, responsáveis pelo selo Jazz re:freshed, e eles comentaram sobre as oportunidades de intercâmbio que eles estavam conduzindo com os músicos. Em 2017, levaram o Yussef Dayes para a Bahia, pra tocar com os percussionistas locais e com isso em mente eu queria saber qual é a importância desse tipo de trabalho para a cena loca.

Sim, ela acabou de voltar! Esse tipo de ação é muito importante, pois dá a oportunidade do músico explorar algo diferente. Não só isso, mas até em termos de networking e isso é algo importante, pois eu mesmo estou sempre pesquisando e descobrindo coisas novas.

Esse trabalho de aprender sobre som é muito importante e fazer isso me fez entender e aprender muita coisa. Essa parte de pesquisa é muito interessante e é um pilar muito importante no nosso trabalho. Essas experiências que a gente tem, viajando e conhecendo lugares novos são essenciais pra podermos criar e nesse sentido é algo inestimável.

E eu percebi que o brasileiro gosta muito de música.

Sim, principalmente aqui no SESC. O pessoal da curadoria é muito atento e promove uma fusão muito interessante, dá até pra ver pelas atrações do festival.

Sim, eu reparei no line up, achei muito interessante. 

Essa sensibilidade é muito importante para que a gente tenha músicos como vocês aqui, sabe? 

Eu entendo e é importante valorizar essas ações, sei que o clima político aqui não é dos melhores, mas esse tipo de trabalho não pode acabar.

Yazmin, pra fechar, queria falar com você sobre a série de compilações que me fez conhecer não só o seu som, mas boa parte do que está rolando em Londres.  A série do Gilles Peterson, a Brownswood Bubblers. Qual é a importância de ações como essa numa cena em efervescência como a de vocês?

O Gilles Peterson tem um programa de rádio que eu escuto há anos. Ele é colecionador, entende muito sobre música brasileira inclusive e faz um trabalho belíssimo na Brownswood. Um amigo meu que me indicou e antes da compilação, era só um programa de rádio.

O que eu acho interessante é que essas compilações reúnem bandas com sons tão antagônicos, sabe? Eles me encorajam de um jeito que eu jamais vou esquecer… Eles me deram liberdade pra eu fazer o que eu queria, sabe? Isso é o principal.

Eu acho que essa mentalidade é importante. Eles não chegavam em mim e falavam: você vai fazer isso, tocar com ele e gravar assim, sabe? Eles deixam você livre pra criar e dessa forma você acaba desenvolvendo uma autogestão que é importante para a sua carreira, entende?

Se você não acha um selo hoje em dia, é muito comum ir para o caminho independente, você não tem essa dependência, sabe? Hoje o cenário está mais descentralizado e o artista pode seguir a sua linha de Do It Yourself.

Sim, hoje você tem o Vulfpeck lotando o Madison Square Garden sem um selo.

Exatamente, essa é a mentalidade que a gente precisa. Não é algo necessariamente ruim trabalhar sem um selo. Eu trabalho com a First World Records e a Brownswood, mas antes disso não estava no cast e mesmo assim tive condição de começar a desenvolver um trabalho. Isso é que é importante, ter condição e espaço.

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21/10/2019

Entusiasta do groove, eis aqui um meliante que orbita do jazz ao hip-hop, desde que tenha groove. Sem ele, a vida seria um erro.
Guilherme Espir

Guilherme Espir