Entrevista | O Ouro Negro de Terra Preta

20/05/2022

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Bruno Barros

Por: Bruno Barros

Fotos: Leonardo Almeida/Divulgação

20/05/2022

Nascido no bairro do Jabaquara, em São Paulo e, residente do Grajaú desde a infância, Arithon Felipe a.k.a. Terra Preta entrega hoje seu mais novo registro, o EP Ouro Negro. Vindo na esteira de colaborações entre o artista e o rapper Cabal, em Ouro Negro Terra Preta versa sobre a vida e suas questões psíquicas, no exercício de fuga das imagens de violência do cotidiano de um homem negro. Vivendo o que considera sua melhor fase, o artista celebra a parceria com o rapper que teve grande sucesso com a música “Senhorita” na primeira década dos 2000. “A gente vem pro estúdio todo dia. Estamos abrindo a mão do ego, trabalhando em parceria. Isso tem aberto vários frutos. Contatos pra fazer músicas”, conta Terra Preta. Ouça Ouro Negro abaixo.

Com produção dos beatmarkers e produtores Ty Fig e MΔΔBEATZ | DJMAA, além de Cabal, Terra Preta contou com apoio de peso de Rodriguinho e Gaab em “Me Chamou”. A música registrada pelo ícone do pagode e seu filho ganhou também um videoclipe com direito a reunião de família e amigos, que contou com a presença ilustre do grande DBS Gordão Chefe.

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Com uma lírica afinada e potente, e trânsito fluido entre o rap e o R&B Terra Preta vem ao longo de sua carreira também prestando suporte para outros artistas. Escolhido por Don L, além de participar nos registros do rapper cearense Terra Preta acompanha Don nos shows de sua trilogia desde o volume 3. Recentemente o artista falou com a NOIZE para a edição da revista que acompanha o lançamento de Roteiro Pra Aïnouz vol. 2 pelo NOIZE Record Club. Para celebrar o lançamento do dia de hoje, recuperamos um corte mais amplo desta conversa. Leia abaixo: 

NOIZE: Sobre sua carreira, você acabou de lançar Irmãos de Alma, ao lado do rapper Cabal. Poderia comentar um pouco sobre esse trabalho?

Então, nós temos uma missão de lançar um EP por mês durante todo esse ano. 

(Foto: Leonardo Almeida/Divulgação)

NOIZE: Me fala um pouco da tua relação e parceria com o Cabal.

Começou há um ou dois anos atrás. Eu sempre fui admirador do esforço que ele tinha para com o Hip Hop. Porque o Cabal foi um cara muito polêmico por trazer uma visão comercial pro rap. De organizar e fazer as coisas acontecerem. Só que a figura e o lugar dele era de um branco de olho azul. E na época que ele fez isso, simplesmente era impossível. Não passava. E ele fazia porque ele tinha ido pros EUA e convivido com pretos americanos. E o preto americano passa por cima de todo mundo. Ele não tá nem aí. Ele fala, ‘eu sou o dono. Eu faço. Eu pego. esse é o meu dinheiro’. Ele não é igual o latino-americano, que baixa a cabeça, pede perdão. Então, as referências dele eram dos pretos americanos, que tem swag e tem marra. E quando ele traz isso pra realidade brasileira, deu choque. Porque o nosso Hip Hop sempre foi o da humildade católica. O preto americano é protestante. Ele quer comprar as terras, quer fazer. O católico não. É mais fácil um camelo passar pela agulha que um rico ir pro céu. Então, é um negócio muito mais de não mostrar, da humildade. Tinha uma famosa frase no rap brasileiro nos anos 90 de quando o cara subia no palco que é, ‘deixa eu subir aqui no palco na humildade’, e o americano não quer subir na humildade. Ele fala: “O microfone é meu”. E quando ele trouxe essa visão eu entendi, só que os caras não entendiam, a maioria. E aí ele começou a ser xingado.  Só que ele quis retrucar, e aí que foi o problema dele. Isso causou e ele começou a arrumar briga, intriga e começou a ser uma persona non grata. Só que eu sempre observei que ele tava trazendo algo diferente. Que ele se preocupava em profissionalizar o Hip Hop, que fosse uma coisa a longo prazo, que não fosse só aquela coisa do momento. Ele sempre trouxe essa visão. 

Eu sempre me identifiquei com esse esforço que ele fez. Essa parada de lançar muita música, só os rappers americanos faziam. Tinha um cenário da música americana que era alimentar os fãs, então os caras estavam sempre soltando música. E o Cabal foi o primeiro rapper brasileiro a soltar uma música por semana. E isso eu achava de um esforço fenomenal. Pra época, com a tecnologia que tinha, a velocidade da internet, o jeito que as pessoas recebiam música, era um esforço absurdo. E eu coloquei na cabeça que aquilo era bom. E usei esse estilo de comportamento pra fazer as minhas paradas também. Então, eu sempre tava disponibilizando música e alimentando o meu público. E aí esbarrava com aquelas questões de ou você não poder lançar muita música, ou você não poder cantar uma música diferente. Pras pessoas da cena, tinha que ser sempre o mesmo estilo de música. E eu soltava uma faixa R&B essa semana e, na outra, eu já soltava um outro estilo de batida que até então nem era consumido pela cena. Então, quando você cantava numa batida diferente, as pessoas nem entendiam aquilo que você estava fazendo. Ou não entendiam por que você cantava rap e de repente estava cantando melódico. E aí ele saiu da cena, e agora recentemente a gente se reconectou e eu falei: “Oh mano, eu sou grato pelo que você fez. Eu sei que você causou muitos problemas”. Ele assume que foi errado em muitas coisas, mas ao que ele fez de bom eu sou grato. Então, decidimos fazer algumas coisas juntos. Hoje, a gente tá muito ligado, lançando muita coisa junto e estamos trabalhando como sempre quisemos trabalhar, que é, independente do que aconteça, nós estamos lançando o som. Não é pelo hype. Primeiro lugar, realização pessoal. Então, por mínimo que seja, se a gente soltar um clipe e ele bater mil visualizações tá ok, mas a gente quer alimentar nossa base, que aí faz você se sentir vivo. Ah, “você almeja estar num lugar foda da música, ser considerado?”. Mano, é uma das coisas que eu mais quero na vida, mas se não for possível, eu estou realizado musicalmente. 

Hoje, eu tô nessa fase, realizado musicalmente. Trabalhando 12, 13, 14 horas por dia, lançando um EP por mês, ou meu ou em colaboração, ou ajudando a compor o EP de outra pessoa, o que pra mim é incrível, porque 100% das minhas músicas a vida inteira, eu fiz 100% delas sozinho. Hoje, eu tenho um parceiro de composição. Então, hoje eu enxergo coisas que eu não enxergaria em composição. Ele tem uma habilidade lírica muito boa de juntar palavras complexas e fazer rima muito bem, eu já tenho uma habilidade vocal e o cara tá trazendo isso pra minha música, fazendo ela ficar mais rica em rimas, e eu tô fazendo a música dele ficar mais melódica. Então, a gente tá se complementando assim, essa parceria tem sido muito boa. 

Capa do EP Ouro Negro. (Foto: Leonardo Almeida/Divulgação)

NOIZE: Você apontou o fato dele ter sido relegado um pouco pelo lugar social dele. E queria ouvir um pouco mais sobre como isso atravessa a relação de vocês.

Às vezes, eu tô no rolê com o Cabal, e a gente tem uma brincadeira que a gente fala do “nigga pass”, que é utilizado nos EUA, que é quando um branco cola tanto com os pretos, estuda no colégio dos pretos, e tem o “nigga pass”, ele pode falar a palavra “nigga” com os negros. E aí, o Cabal falou [que] ele tem o “white pass”, porque [se] tem um lugar que a gente quer conseguir alguma coisa, eu falo: “Vai lá, Cabal”, tá ligado? O Cabal fala e o cara entende. Então, a gente utiliza essas coisas pra nós, do mesmo jeito que, se nós estivermos na quebrada, eu tenho autoridade.  Em determinados tipos de situação, numa situação de violência, por exemplo, eu sei lidar muito melhor, porque eu já passei por isso. Ele não vai saber lidar com a situação, eu já vou tirar de letra. Então, mesmo sabendo de toda a tensão racial, eu me permito fazer esse tipo de brincadeira pra deixar o ambiente o mais saudável possível. 

Eu sou preto, retinto, mas religiosamente fui criado num ambiente branco, cristão, que é a Assembleia de Deus, que fala que Candomblé é coisa do diabo. Isso não é racismo? Eu aprendi desde criança que era errado a macumba. O Cabal, um branco de olho azul, me ensinou a tocar atabaque, cantar ponto de umbanda e me levou para uma das experiências mais lindas da minha vida, que foi chorar pra caramba num terreiro de umbanda. E aí você vai falar o que pra mim? Aí tá um grande nó que deu na minha mente.

Então, assim, eu sei da luta, mas isso não me impossibilita de trabalhar com pessoas que sejam brancas. De estar harmoniosamente no mesmo ambiente que elas sem o sentimento de revanchismo. Porque ele, como um cara branco, sabe de todas as regalias que ele tem por ser branco, ele é um cara que se identifica muito e às vezes sofre mais do que eu. Às vezes, eu vejo uma questão racial acontecendo e já tiro de letra, você fica revoltado, mas já não é tão revoltante porque você já sabe lidar com a situação. Então, o cara sofre mais do que você sobre aquela situação. Eu falo: “Calma, isso aí eu já senti na pele e tô cascudo em relação a essa situação”. Você sente a empatia que a pessoa tem em relação a sua causa e você tá num ambiente saudável com a pessoa, sem que essas questões impeçam que você progrida junto com ela.

Porque em primeiro lugar, como rapper, eu admiro ele. Eu fui pela arte, e o cara é foda. Depois, eu descobri ele como uma pessoa que teve vários traumas também e por incrível que pareça, ele sendo branco, teve vários traumas psicológicos parecidos com os meus. Porque aí leva a um outro lugar, que é o lugar do ser humano. Nós como seres humanos temos os nossos traumas psicológicos, somos relegados. Ele foi relegado de certa forma dentro da cultura. Apanhou por ser esse cara branco que vinha falar essas coisas e tomava uns tabefe na cara. E eu fui renegado por ser esse cara preto que falava certas coisas que fugiam do padrão também. E esse pensamento uma hora se converge. E a gente entende muito a dor do outro. Você vê que bagulho louco, ele branco de olho azul e a gente converge na dor. 

NOIZE: É a experiência da racialização. Quando a gente fala de lugar de fala e de estar, assim como tem o lugar do negro, tem o lugar do branco. E o bom é se relacionar com pessoas que sabem o que são, pretas ou brancas, racializadas. Porque eu também posso usar do branco pra quebrar algumas barreiras que, para mim, seriam mais difíceis, por exemplo. Pode ser muito estratégico pensar isso desse modo, porque a sociedade é essa. 

Sim. Igual quando o Dr. Dre lançou o Eminem, um rapper branco, que é muito talentoso, ninguém tem como falar que o Eminem é ruim. Impossível, ele é um dos melhores rappers da história. O Dr. Dre é preto. Ele poderia pensar: “Ah, eu sou um negro que já alcançou e não vou investir no Eminem”. Mas não. E o Eminem fez o rap preto chegar em outros lugares, através do Eminem os brancos conheceram o rap. Os brancos que não ouviam pelos pretos, ouviram pelo branco. Aí chegaram no Dr. Dre, no Snopp Dogg e no 50 Cent. Então, desde que haja respeito e as pessoas entendam a dor uma da outra, pô, vamos longe. Eu acredito nisso. Me despi de todo esse conceito da questão racial pra ter uma empatia com uma pessoa que é branco filho de polonês com judeu, e fazer um bagulho daora. 

NOIZE: Gostaria que você falasse um pouco como vê a importância de um discurso como o de Don L num momento como este, socialmente falando, mas também dentro do rap em específico.

Por si só é um discurso que é necessário, mas que não pode ser um padrão. Alguns artistas que têm características melhor qualificadas tem que abordar sim. O Don, por exemplo, é um cara muito inteligente. Então, eu acho que, pro perfil de artista dele, é excelente. Não seria excelente pra mim, porque eu não tenho esse tipo de desenvoltura intelectual na minha música. Eu abordo muito questões psicológicas. Então, alguém teria que fazer bem feito, porque falar de um tema tão sensível geralmente te leva a fazer uma merda. É muito complexo, muita nuance. O cara pode se preocupar mais com o discurso e se esquecer da música.

E ele conseguiu fazer o bagulho com uma música foda. Com uma estética foda artisticamente, contemplativa. Que você ouve o disco e entra no personagem e, mesmo que seja contra a ideia dele, na hora em que ouvir, vai imaginar o senhor de engenho sendo enforcado e vai dar aquela dorzinha no coração dele, porque ele se colocou no lugar. Já era, você tomou a mente dele. Exatamente com um dom de contar histórias. Isso é um dom shakespeariano, de fazer você entrar dentro da história e ficar preso a ela. Igual quando o Racionais cantava “Diário de um Detento”, independente de quem você for, na hora que você ouve, você se imagina lá na cadeia. Você imagina o cheiro da cadeia. Você imagina o barulho das grades, os inimigos te olhando tentando te matar, e o Don te trouxe pra dentro desse bagulho. Se isso não for algo pra se aplaudir em 2022 eu não sei o que vamos aplaudir. Eu gosto muito disso, antes do discurso [vem] a música, e aí vem discurso e eu bato palma. 

Eu sou um amante da arte em primeiro lugar, então, se você quer falar sua realidade, se você acredita, faça bem feito. Faça a pessoa dançar com isso, quando ela menos perceber. Ele foi maquiavélico com a arte dele. A música dele quebrou barreiras com um discurso forte. Quem é que consegue isso? Só gênios. Ele tá nesse patamar pra mim. Hoje, pra mim, ele é um dos maiores artistas da música brasileira. Pela preocupação dele em terminar algo muito bem feito, embora seja caro. É muito caro fazer o que ele fez, e ele conseguiu fazer. Ele é um cara chato no sentido de ser extremamente crítico com aquilo que está fazendo. Então, esse senso crítico dele, querendo ou não, não permite que ele vá fazer uma coisa de qualquer jeito. O cara fez da arte o primeiro lugar.

Tu continua morando no Grajaú?

Sim, moro lá no Grajaú. 

Tu nasceu lá?

Não, nasci no Jabaquara, que é um bairro periférico, mas com acesso a coisas de classe média. Mais fácil acesso ao centro…

NOIZE: Tu foi pro Grajaú com que idade?

Com 12 anos cheguei no Grajaú. Na verdade, primeiro eu fui pro lado do Grajaú, que é o Orion, e naquela época a gente passava de dois a três anos construindo a casa que a gente ia morar. Então, de 1997 a 2000, eu estava no Grajaú construindo a casa que eu ia morar, ajudando meu pai, levantando bloco, cavando buraco, dormindo na casa mal acabada antes de terminar ela nos fins de semana, porque durante a semana tinha escola, e os pais trabalhando e sábado e domingo construindo a casa. O Grajaú era um sítio antigamente, de várias propriedades, de várias famílias. Nesse lugar onde eu moro, era de uma família alemã. E é isso, construímos a nossa casa, e fomos lá, vivendo essa realidade da periferia, que era super violenta naquela época.

O Grajaú era isso, um foco de violência absurda nos anos 2000, onde existiam matadores, de 15, 16 anos de idade, era a média do crime. E não tinha essa nova estrutura de organização da periferia que tem hoje, que é baseada nos mandamentos do PCC, de organização, de não zoar a quebrada, não existia. Era uma lei da selva, de cada um por si nessa época. Você acordava e tinha um cara morto na frente da sua casa. Toda semana, morria alguém na minha rua. Era muito normal ver alguém baleado, morrer. E aí, quando o rap chegou, era essa perspectiva de a gente se agarrar a criar música e fazer arte.

Só que o rap também estava poluído por isso. Tinha muito um lado criminal nas letras de rap. Só que tinha um outro lado que estava surgindo do rap. Porque começaram a surgir rappers que falavam coisas diferentes, como Kamau, Slim Rimografia, Quinto Andar, aí na época falavam que era rap de boy. Porque era um rap alternativo, que não queria falar de crime. Kamau, um skatista, você nunca ia imaginar o Kamau fazendo rimas falando de crime, um cara que fez faculdade, que já tinha uma intelectualidade diferente, que falava inglês. É preto, mas em outra perspectiva.

E a gente começou a se agarrar nisso. Eu e minha galera começamos a nos agarrar nisso, num rap mais alternativo. Porque aquele rap pesado, a gente sentia que era mal pra gente, porque os caras que eram matadores na quebrada, ouviam esses raps. Então, a gente viu que não era bem por aí. “Se tá agradando esses caras que gostam de matar todo mundo, então tem alguma coisa errada”.

A gente ia pra balada rap e a música negra era muito presente na periferia. O rap era a música mais tocada e tinha o Black, que era o R&B, o rap americano era chamado de Black. Então, a gente ia pras festas Black, que era basicamente pra você paquerar, se divertir, não tinha muita droga naquela época, era um ambiente mais saudável do ponto de vista de você estar seguro. Eu tinha 12 anos e ia pra balada, que era a quermesse que tinha, que todo mundo ia pra ouvir R&B, rap e pra dançar. Então, era um ambiente bem tranquilo. Tinham mortes, mas sei lá, tinham cinco quermesses, morria alguém nessa quermesse, descia todo mundo pra quermesse da rua de baixo. “Ah, acabou a lá de cima porque mataram o cara lá”, todo mundo descia pra curtir. De repente, alguns malandros iam lá fazer de contra, e gente descia pra próxima pra curtir. A gente queria só curtir. Então, no meu ambiente de rap, eu fui muito ligado numa parte ideológica das ideias da luta, mas também eu gostava da parte da diversão. De descontrair .

NOIZE: Certo mano, superar essas imagens, né? Ser forçado a essas imagens, de você abrir a porta e ver uma pessoa morta, ter contato com a criminalidade, talvez isso fale muito sobre a potência da tua criação, que é da arte como dispositivo de fuga dessa realidade que tá posta, né? Daquela realidade que estava posta lá, que tu poderia simplesmente descambar a pegar arma e jogar o que tava se discutindo ali, até porque eu imagino que socialmente eram esses que tinham mais poder e destaque. Esse pensamento de pegar a via da arte era um pensamento desertor, na verdade, né? 

Exatamente. Sim, e a gente observava também que esses caras tavam morrendo, né? Tipo: “Pô, esses caras não tão durando, mano. Eu não quero fazer essas coisas que esses caras fazem. Eles tem poder, mas é muito pouco tempo. Vale mais a pena você ficar num ambiente que não seja de hostilidade, imparcial, e deixar os caras na deles. Não vou bater de frente, mas eu sei que vai azedar pra eles”. Eles tão matando as pessoas, mas vão morrer também. 

NOIZE: Algumas referências tuas são Kamau, Slim Rimografia…

Do rap brasileiro, e que me fez ter uma visão diferente do rap, sim. Kamau, Slim, Criolo com quem eu cantei por cinco anos e que também me trouxe essa perspectiva. Essas são a base, porque os outros são meus contemporâneos. Esses já vieram um pouco antes e deram a base pra gente. O Apocalipse 16 que era um grupo de rap gospel da nossa época, que fez muito sucesso. Eles traziam uma nova perspectiva também. Outro ponto de vista, de não violência. Do amor ao próximo. Tudo meio que baseado no cristianismo, mas já dava uma aliviada na tensão. Eu sou grato a esses caras. Muito grato a eles por terem trazido essa nova perspectiva. Por mais que fossem vistos na época como rap de universitários, ou rap de boy, pra mim, que estava naquela realidade dura e tensa, eles trouxeram isso me fizeram ter essa possibilidade.

NOIZE: Me fala um pouco do Criolo.

Em meados de 2000 ou 2002, rolava as músicas dele em fita K7 na área e o nome do cara que a gente ouvia as músicas era Criolo Doido. E a gente não sabia quem era o Criolo Doido. Ficamos ouvindo as músicas dele durante um ou dois anos e a gente não sabia quem era o Criolo Doido. E ele era da rua de cima da minha casa, só que eu não sabia que ele morava lá. Porque, na época, ele estudava e fazia faculdade de artes cênicas, então ele dava aula como professor substituto e projetos, essas coisas. E aí ele não ficava muito ali. Só que ele fazia parte de um grupo chamado Pacto Latino e, depois, a gente conheceu os caras do Pacto Latino, que era o Celinho, falecido recentemente. Ele falou uma vez: “O Criolo vai colar aí”, e a gente foi lá pra ver ele, conhecer esse cara que tinha umas músicas foda.

Em primeiro lugar, o cara tem um flow diferente, canta diferente, e não tá falando o que os outros falam. E ele já cantava, não só rimava, numa coisa que era já um pouco diferente. Aí chegou em determinado momento em que eu entrei em contato com o Criolo e conheci ele de uma forma muito diferente. Porque ele tava de perna cruzada, eu vou te dar o contexto. Era 2000, o rap era machista, e ele tava de perna cruzada, muito leve. E na hora que eu cheguei, o cara falou: “Esse aí é o Criolo Doido”. Eu falei: “Esse é o Criolo Doido?”, eu achava que o Criolo Doido era um negão, machão, e ele totalmente leve, aquela figura que ele é até hoje. Ele sempre teve esse jeito leve, que era o bagulho do teatro. Conheci ele e ficamos amigos e, pô, “o cara é da rua de cima”, e começamos a fazer as paradas juntos. Mas ele também era um cara que já tinha essa visão diferente. Ele sabia do poder das palavras. 

NOIZE: Na possibilidade de criação de outras imagens.

Sim. Quando você vê o álbum Ainda há Tempo, é exatamente isso: ainda há tempo, vou tentar! Não é meu destino fracassar, ficar na sarjeta como preto. E ele é um dos grandes que trouxe essa possibilidade pra gente de fazer um rap diferente, com musicalidade cantando. E eu acompanhei ele durante cinco anos. Surgiu a Rinha dos Mc’s como principal foco, que revelou Emicida, Flora [Matos], Rashid, Projota, vários mc’s começaram a fazer batalha porque ele começou a organizar festas de rinha de mc’s, que já era diferente. Mc’s combatendo liricamente. Desde essa época, o Criolo sempre prezou por regras como não poder falar da mãe, da esposa, da namorada, de questão sexual homofóbica, que era muito comum na época. Já tinha esse cuidado, porque a mentalidade dele já era diferente. Ele não tinha um lugar de fala no rap, porque como ele era diferente do rap gangsta, machista que predominava, mas aí ele já trouxe esse frescor.

NOIZE: A sutileza de tentar alterar a ética do ambiente.

E tanto é que a primeira vez que eu vi dois homens se beijando, que foi muito estranho pra mim, foi no show do Criolo. E na época eu não tinha consciência, era estranho pra mim. Pra mim era ir num show de rap, com um monte de macho lá, não tinha mulher, muitas vezes, em show de rap. Tem um monte de macho lá batendo cabeça e afirmando a masculinidade excessiva, tirar a camisa, sair e quebrar tudo. Então, a primeira vez que eu vi dois homens se pegando eu pensei: “Nossa, mano, que bagulho louco”, quebrou totalmente o preconceito. Aí eu entendi que ele tava conseguindo se comunicar com outros públicos.

Quando ele fez o Nó na Orelha, eu percebi: “Nossa mano, mudou a parada”. Porque até então eu nunca tinha visto isso num show de rap, dois homens se pegando. Porque os ambientes [seguros] de homens se beijarem, sei lá, vai na Aclimação, vai na Augusta, onde a galera se encontra no Centro, não na quebrada. Os gays da quebrada, os meus amigos gays que cresceram na quebrada, eles não ficaram na quebrada, eles tiveram que vir pra esses ambientes. Morar na Augusta, na Aclimação, que são ambientes permissivos pra isso.

Porque a quebrada é conservadora. Tem diminuído bastante, mas os caras ainda falam, “oh o viadinho, não sei o quê”. É muito assim. E quando eu vi, não era o rap, era o Criolo que tava quebrando isso. Hoje, tem outras possibilidades exatamente por conta dessa nova ética que foi criada. O Criolo pegou novas éticas de outros rappers que vieram nos anos 2000, e aí, na personalidade dele, já se transformou quando ele trouxe “Não Existe Amor em SP”, que já foi um outro momento pro rap. Então, é um cara muito importante pra nossa cena. Na questão da diversidade, de mostrar que há espaço às pessoas, com certeza ele deve ter inspirado caras como o Rico Dalasam. Ou sei lá, de mostrar um lado mais feminino. Que não era permitido no rap, que eu sempre tive. A ideia do negrão, machão, eu sempre tive isso até o momento que eu vi: “Não mano, não vou ficar preso a isso”, mas não tem a ver com a questão da minha sexualidade, que eu continuo sendo hétero, mas eu quero ser leve. E hoje eu me sinto muito leve por causa dessa história e desse contexto que foi construído. E aí eu quebro muito e nos últimos eu tenho desconstruído muito mais todos os meus conceitos sexuais e de gênero. Como eu enxergava o LGBT e enxergo agora. Tem a ver com esses raps aí. De trazer mais inclusão, de construir essa imagem mais livre, artística. 

Terra Preta (Foto: Leonardo Almeida/Divulgação)

NOIZE: O que mais tu consumia?

Eu agradeço muito ao Hip Hop, porque no início, sempre teve a cultura do vinil, então na minha época, pra você aprender sobre o Hip Hop ou o rap, não tinha Wikipédia. Então, você tinha que aprender porque alguém te falava o que era foda e o que não era. Tinha o YO MTV, programas desse tipo pra assistir, mas no geral, tinha que ter um cara mais velho que ia falar: “Olha, isso é bom e isso não é”. Aí, eu comecei a comprar vinil no sebo, ou no bazar do Exército da Salvação, que tem muito vinil que as pessoas deixavam, e comecei a ouvir Chico, Milton Nascimento, Caetano, comecei a consumir musica que eu considero música boa, música antiga. Ao mesmo tempo, eu ouvia Bonde do Tigrão, que isso era 2000. Então, eu tava ouvindo “Construção”, do Chico Buarque, no vinil, 50 Cent, algum rap underground, outro rap pesadão, e daqui a pouco eu tava na festa curtindo “Dança do Motinha”.

Isso me deu um jeito de ouvir música que foi muito versátil. Então, o rap era muito tribal nessa época. Geralmente, o rap era dividido em classes, tinha os bate cabeças, que eram os caras que iam pra pular e se bater na festa, que era um negócio muito de homem mesmo. Tinha os gangsta, que eram os mais ligados ao crime, tinha os underground, tinha os caras que só iam pra dançar e cada um no seu bonde. Eu ouvi tudo. Eu bebia de todas as fontes. Eu ouvia todos. E isso me deu essa visão de poder fazer R&B e rap ao mesmo tempo, que os caras não entendiam. “Como assim, quer cantar e rimar?”. E é porque eu ouvia musica do Tupac, e aí tinha o Tupac rimando verso e um cara fazendo o refrão, e eu pensava: “Por que eu não posso cantar e eu mesmo fazer o refrão?”. Porque tinha essa separação do machismo, que era o seguinte: o cara que fazia o refrão, ele era doce, fazia melodia, então a imagem dele não era do hetero, já era uma imagem mais leve. O cara que rimava dizia: “Traz o cara da melodia aí pra fazer o refrão pra mim que eu tenho que ser o cara duro do gueto, que vai cantar a realidade”. E eu não, eu vou fazer o cara que vai rimar a realidade dura e vai fazer o refrão.

Então, a minha personalidade ficou muito louca porque eu tenho essas facetas, de poder ser duro em determinados momentos e de repente ficar mó leve, feminino. Por isso que eu fiz vozes femininas no disco do Don, porque eu ouvia Gal Costa, e imitava a voz dela. Ouvia a Alcione e imitava a voz dela. Me imaginava como uma diva cantando, e entrava no personagem da mulher, sem nenhum problema. Isso deu essa versatilidade minha como artista, mas me causou problema. “Você não pode ser versátil”.  Hoje, o mundo tá mais aberto, porque você tem o Drake, por exemplo, que é um artista que você pega o álbum dele, por exemplo, tem rap pesado e música pop também, ou um rap de clubber pra dançar. Hoje, tem artistas mundiais que deram certo e que fazem um pouco de tudo. E isso me possibilita, hoje, fazer sem ter tanta resistência.

NOIZE: Para o futuro, o que você acredita e espera de um Brasil possível? Pode cair na utopia, num lugar do Terra mesmo.

É, quando se fala de Brasil, cê não tá falando só do preto. Tá falando do nordestino, do cara do Sul. Talvez a melhor alternativa pro Brasil seja a gente não tentar inventar a roda. Já tem muitas coisas que foram feitas no mundo que deram certo. Tem países que estão caminhando, vivendo suas vidas e estão muito melhor que a gente. Por que a gente não começa a ser uma esponja e pegar o melhor de cada lugar? Na cultura, na educação, na arte. Por que a gente não começa a pegar o melhor do que ficar tentando inventar? E adaptar a nossa realidade. Igual o chinês, que não tá preocupado em inventar a roda, ele tá copiando e adequando à realidade dele. Ele já tem uma Apple dentro da China, que é a Apple deles, eles não precisaram inventar uma outra Apple, eles copiaram os componentes e “Ah, agora vamos fazer no nosso país”.

Ao invés de a gente ficar tentando se basear numa identidade nacional que, na verdade, não existe, porque o nosso processo de criação foi colonizado, e depois de colonizado ele foi manipulado, seja pelo EUA ou não, a gente sofreu interferências internacionais que moldaram a nossa cultura. Nossa cultura de 100 anos pra cá é outra, baseada nos EUA. Já que a gente não tem uma cultura muito bem definida, não tem valores muito bem definidos, por que a gente não começa a ser uma esponja do mundo? Pegar um pouco do que estão fazendo nas escolas da Dinamarca e do que os japoneses estão fazendo. Vamos montar nossa indústria também, vamos um pouquinho de cada coisa do mundo, porque tentar criar as coisas do zero nos dias de hoje, eu acho que o tempo que você leva pra criar essa coisa faz com que você se atrase no processo todo.

NOIZE: Eu acho que isso fala muito de uma imagem que eu traço de você, que é um lugar da complementaridade,  da coletividade, da versatilidade e da completude, no sentido que quando a gente consegue conjugar o melhor do que nós alcançamos e despidos do ego, ou do egoísmo, eu acho que a gente tem alguma coisa aí. Aí a gente consegue somar as partes faltantes, pra de fato ser completo. Não é sobre um absolutismo, eu sei tudo, eu faço tudo, pensando enquanto corpo social …

Tem várias questões que estão na minha mente. A esquerda e a direita tão discutindo se armar as pessoas é bom ou ruim. Eles estão lá brigando o tempo inteiro. Não é mais fácil a gente ir lá e fazer um estudo no mundo inteiro e ver os lugares que têm armas e os lugares que não têm armas. Vamos ver o que tá acontecendo com esses lugares, e vamos descobrir baseados em fatos, e com as realidades mais parecidas com a nossa, se é bom ou não. Porque já fizeram merda com isso. Eu não preciso ficar aqui discutindo com você se é bom ou não. Vamos ver qual é o melhor sistema prisional? Nos EUA, a gente sabe que não é. Mas deve ter sistema no mundo que é menos pior. Eu sei que, na Arábia Saudita, não é. Onde é que tem um menos pior? Vamos dar olhada na segurança, de como a polícia age e qual a melhor polícia do mundo? E vamos trazer e adaptar a nossa realidade. Qual o lugar onde a polícia menos mata? Melhor do que a gente ficar tentando discutir quem é certo ou errado.

No final das contas, as pessoas querem acordar, comer, se vestir, cuidar das suas famílias, e tá tudo ok. No fundo, no fundo, a base é a sobrevivência humana. Depois, a gente vai olhar outras questões. Então, se o país estiver caminhando bem nessas questões, todo mundo fica tranquilo. Claro, tem a política, a burguesia, o interesse financeiro. O sistema prisional, por exemplo, é um jeito de ganhar dinheiro. Mas eu acho que o meu mundo, se eu fosse montar o Brasil do Terra Preta agora, estaria baseado no estudo, na pesquisa e na implantação das melhores experiências. Não adianta a gente ficar na ideia da tese, antítese, e de que a minha é melhor que a sua e eu sou foda, e aí tá lá o socialista e o capitalista, ou sei lá, o anarquista. Vamos lá pegar o melhor exemplo de cada um na prática.

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20/05/2022

Bruno Barros é produtor de conteúdo independente. s.brunobarros@gmail.com | @labexp
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