Entrevista | O retrato estilhaçado de GIO

09/09/2021

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Brenda Vidal

Por: Brenda Vidal

Fotos: Alex Olivera/Divulgação.

09/09/2021

Crescemos em uma sociedade que enxerga e nos ensina a enxergar o progresso como um processo de ordem linear. Decidir conduzir os próprios trajetos da forma que se deseja, entender o ímpetos circulares de sua jornada e, até mesmo, valorizar a ruptura e o fragmento como forma de emancipação e evolução são desafios e tanto. O cantor e compositor GIO abraçou tudo isso – inclusive uma mudança de nome artístico – e, como ele mesmo define, “jogou seu corpo na fogueira” na hora de produzir o dilatado e híbrido projeto Nebulosa Baby. Formado por álbum musical, álbum visual e websérie, o material teve seu lançamento derradeiro no dia 22 de julho, mas se atualiza e se renova a cada nova escuta.

É ele também quem encara o disco como um espelho estilhaçado. Por cada caco, é possível enxergar os reflexos de sua identidade, num fluxo ancestral e futurista, um mergulho na memória, nas origens, na vanguarda e na renúncia a rótulos e estereótipos. Uma trajetória que parte do periférico bairro de Valéria, em Salvador, e alcança um novo olhar do artista para o valor social de sua própria arte. Ao se reconhecer, GIO se percebe múltiplo; não há outra saída senão quebrar o espelho para se espalhar.

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Com assinatura do selo RISCO, o disco é fruto da parceria entre GIO e Benke Ferraz (Boogarins). Entre vinhetas e canções, participam da obra nomes como Dinho (Boogarins), Josyara, Luê, Jadsa, Maglore, Ava Rocha, Obirin Trio, Alice Caymmi, Vandal e mais. GIO está à frente da direção do álbum visual ao lado de Edvaldo Raw, enquanto também lidera a direção geral, concepção e roteiro da websérie. A série conta com a direção de Safira Moreira e roteiro original de Caelí da Silva Gobbato e Gāthā. Envolvidos por essa viagem, decidimos entender o mapa de Nebulosa Baby através de um papo com o próprio GIO, e convidamos você a vir junto. Ponha o álbum para tocar e leia na sequência.

Oi, GIO! Muito obrigada por ter topado conversar com a NOIZE. Pra começar: que tipo de música se ouvia na casa em que você cresceu?

Eu nasci em Salvador, mas cresci no interior da Bahia, em Castro Alves, dos meus dois aos 11 anos. Lá, morávamos eu, meu pai, minha mãe e meu irmão em uma fazenda longe de tudo, e a tradição do São João, da Festa Junina, é muito forte, foi aí que eu tive minhas primeiras experiências com música. Eu não sei se ainda se faz isso, mas na época, você basicamente comia, bebia e ia pela vizinhança de casa em casa, todos comendo, bebendo e dançando. Meu pai era caseiro em uma casa enorme, a gente fazia uns forrós lá, tinha um pé de serra. Lembro uma vez em que vi um trio e fiquei apaixonado pelo acordeão, e comecei a chorar muito. A minha mãe ficou perguntando ‘menino, por que você chora?’, mas eu não sabia explicar. Mas a emoção era da música, ela mexia comigo… Luiz Gonzaga, sabe? Eu sentia o poder daquela música. Em casa, minha mãe e meu pai ouviam basicamente rádio. Minha mãe ouvia tudo que tocava, e, como era nos anos 90, era muito Zezé de Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo. Eu comecei a cantar imitando essas duplas. Agora, uma coisa engraçada, é que foi um choque de realidade voltar pra Salvador, vir de uma fazenda para morar na periferia da cidade. Era muito chato pra mim, não me adaptava e sempre fugia para Santo Amaro da Purificação, que é a família do meu pai mora. Meu pai é um cara que não ouve nada além de Raul Seixas [risos]. Toda a noite ele pegava uma fitinha cassete do Raul pra gente ouvir. E a minha vó, porque eu fui meio criado por ela, sempre foi fã de Roberto Carlos, como muitas avós [risos], e ela me envenenou porque Roberto Carlos é uma das coisas que eu sempre ouço, que nunca sai da vitrola até hoje. Foi isso o que eu mais ouvi durante a infância e a adolescência, até eu começar a realmente procurar descobrir outras coisas. Esse dos anos 60, 70, ainda é algo muito enraizado em mim, ficou marcado até no meu jeito de compor. Ainda na adolescência eu ganhei uma vitrola de presente de um amigo, consertei ela, e comecei a colecionar discos; andava com uma pilha de vinis de Milton Nascimento e Roberto debaixo do braço em uma época que meus amigos ouviam Linkin Park, Limp Bizkit, Los Hermanos, ninguém entendia nada. Além de Michael Jackson, eu não ouvia música internacional, eu fiquei com uma dificuldade em ouvir coisas contemporâneas.

Uau, entendi! GIO, gostaria de saber o que antecede o momento em que uma nova fase se avizinha? Quando é que você saca e acolhe o desejo pela mudança de um nome artístico e sente que tem uma obra vindo aí? 
Quando você tá num buraco. Pra mim, geralmente, é quando estou em um abismo. Todas as vezes que aconteceu comigo, foi assim. Em Japoneese Food, por exemplo, foi um ano de várias dificuldades, um momento em que eu estava com 20 e poucos anos, já gostava de música, já tocava, mas via os amigos se matando, gente morrendo, sem grana… eu já tava no fundo. Parece que, do fundo, eu tiro a força pra criar uma coisa que ninguém esperaria, uma coisa fora da minha realidade. Acho que a mesma coisa acontece com Nebulosa Baby. Antes de fazer essas músicas, por exemplo, eu fiquei um período sem escrever nada e pensei: ‘cabô pra mim’. Eu acredito muito que a música é só uma fase da sua vida, eu realmente não sei o que eu vou estar fazendo daqui a cinco anos, não sei… falando de viver disso, não acho que seja uma coisa que eu tenha muita força, de ter uma carreira. Vou fazer a minha música pela vida inteira, mas lidar com isso enquanto uma carreira, com bons números, com os tapinhas nas costas, com coisas que eu não concordo muito, eu não sei. Mas enfim, nesse período sem escrever, eu achava que a fonte tinha secado. Inclusive, foi quando um museu em Pernambuco me convidou pra fazer uma aula de composição, num momento em que eu mais estava pensando ‘não sei mais fazer música’. Mas foi muito importante porque aí que percebi meus métodos e entendi que quando eu não tinha uma ideia, ou esperava uma coisa nova acontecer pra não me repetir, eu começava a consumir outro tipo de coisa, sabe? Eu lembro que esse disco [Nebulosa] surgiu quando eu estava conversando com a minha mãe, pessoalmente, depois de ter ficado dois anos sem vê-la. Estávamos conversando sobre as minhas dificuldades gerais, já era 2018, época desse endurecimento conservador, de Bolsonaro chegando, de agressões em São Paulo, essa loucura toda. Aí, minha mãe falou pra mim algo que eu nunca esqueço: que família é o lugar onde você pode ser aquilo que você é, onde você vai ser respeitado por isso. Observando algumas famílias de classe média alta de amigos e amigas minhas, vi que eles tinham muitas dificuldades familiares nesse sentido, e a minha mãe achou curioso o fato de que pessoas que tinham tanta informação, estudos e diplomas não lidavam bem com aquelas coisas. E foi ela mesmo quem me respondeu que, na verdade, esse era o tipo de coisa que a gente aprendia dentro de casa. Apesar da minha família não ter nenhum músico, artista ou atriz, o ambiente ali era muito libertário. Acho que o que antecede as coisas é sempre a sua observação sobre você mesmo; pra mim, continua sendo o diário, o tudo ou nada, o botar o corpo na fogueira. Quando eu tô mais aberto, acho que é isso.

Nebulosa Baby é um projeto que se expande por diversas linguagens. Como foi o fluxo criativo: acontecendo por etapas ou tudo ao mesmo tempo?
Esse disco já tá meio antigo, na verdade. Ele ficou antigo, depois eu revivi ele, e ele ressurgiu. Eu comecei gravá-lo há três anos, em São Paulo. A primeira parte foi na extinta Red Bull Station, onde gravamos basicamente todas as músicas, tudo ao vivo. Nesse momento, eu morava na Casa Vulva, em São Paulo, e é até por isso que o disco tem tantas participações, e de tantas minas, porque era uma coisa de show e de encontros, cada um com seu violãozinho, e ali eu comecei a ser influenciado pelas pessoas. Lembro até que, quando fui fazer uma linha vocal de “Nebulosa”, [ele canta] “Todo dia é novo, eu incorporo outra verdade”, eu cantei assim, desse jeito, pensando nas Obirin Trio, porque elas cantavam assim. Esse tipo de coisa acontecia na casa e, basicamente, o que eu fiz foi levar tudo o que acontecia no quintal de casa pro estúdio. Nesse momento, não tinha nenhuma possibilidade, nenhum pensamento sobre produzir qualquer coisa audiovisual, na verdade. Apenas clipes. Quando a gente acabou de gravar, eu vim pra Salvador, e aí veio toda essa coisa de pandemia, e aí surgiu a lei Aldir Blanc. Interessante que ela tenha rolado no meio dessa doideira toda, o Brasil é muito doido. Enfim, mas quem, nesse momento, observou a possibilidade de uma websérie, com uma divisão por episódios, cada um deles se relacionando com uma música, foram Caelí Na verdade, não fui eu quem observei, por exemplo, primeiro a Web-série. Essa divisão de episódios, cada episódio relacionado com uma música, de cada música você destrinchar um tema, na verdade quem fez isso foram Caelí e Gāthā, coordenadoras e produtoras desse projeto, que, por serem muito próximas de mim, entenderam e concatenaram coisas que eu sempre dizia e que tinham muita relação com a minha música. Às vezes, quem faz não consegue ter o distanciamento enquanto está fazendo, ainda mais quando envolvem coisas com a sua família, energias que até são difíceis de você manipular. Quando elas trouxeram isso, eu fiquei em dúvida: será que ia pra Santo Amaro conversar com a minha avó? Ou em Valéria para conversar sobre isso? É uma coisa meio difícil, sabe? Talvez eu não estivesse com coragem pra peitar isso, pra ter essa ideia e escrever, colocar no mesmo papel. Mas aí eu decidi, ‘vamo fazer essa parada’, e já comecei a criar esse roteiro. O que acontece é que, quando a gente começou a produzir isso, na prática, já estávamos em pandemia ‘total’. Apesar do edital abrir essa possibilidade de você fazer um documentário, isso exige ir na casa das pessoas, sentar e conversar. A gente não teve essa oportunidade, então, o que fiz foi usar essa dificuldade, essa falta de material, e, como tudo que fiz na minha vida, transformei isso em uma linguagem. Usei meus arquivos de vídeo, fotografias da minha família, de meus amigos, reuniões via Zoom para produzimos a websérie. O filme também foi muito intenso, muito doido, por conta dessas mudanças de cronograma, de como fazer esse negócio no meio dessa loucura toda. No final, deu tudo certo. Mas as ideias do filme e da websérie documental não vieram, exatamente, de mim, porque era coisas que fugiam ao meu entendimento e, talvez, até à minha segurança. Nunca pensei em fazer um filme, dirigir um filme, que doideira era essa? Até porque eu nunca tive recursos pra fazer isso, até então.

Mas você se apropriou muito dessas linguagens porque, no final das contas, você assinou várias funções do projeto.
Uma vez que eu soube dessa possibilidade de fazer, a gente [percebe que] tem muita coisa pra falar, muita história pra contar; muita gente pra mostrar, gente que foi silenciada a vida toda. Esse senso de responsabilidade foi o que me deu força pra fazer isso, escrever o roteiro… as pessoas comentaram sobre o trecho [do filme] do pedreiro com o balé; eu pensava sobre esse tipo de coisa a vida toda. Quando eu escrevi a música “Sangue Negro”, eu tava em São Paulo, me sentindo muito deslocado às vezes. Algumas pessoas me encontravam, diziam que a minha música era genial, mas quando descobriam onde eu morava, falavam ‘Você mora nesse lugar? Como é que pode? Como é que sua música é tão boa?’. Eu fiquei pensando em meu pai, que é pedreiro, e é uma das pessoas mais bonitas e artísticas que eu conheço. É ele lá no filme. Eu quis mesmo colocar esse pensamento que eu tinha, materializar ele, na prática. Juntar esses corpos, essas coisas que não estão distantes. Se as pessoas acham que eu faço algo especial, imagina se elas conhecessem a minha avó, que fez uma série de coisas cantando e rezando pela gente, sendo bruxa, artista. 

Cativante mesmo ver como vocês conseguiram captar a beleza do bater o cimento. 
Algumas pessoas realmente não veem nenhuma beleza nisso. Vandal, por exemplo, participou do disco, e quando ele viu esse trecho, me ligou e disse ‘Velho, eu sempre pensei nisso. Eu sempre vi muita beleza nisso’. Existe um ritmo nesse trabalho, entendeu? Mas só quem tá perto e que conhece essas pessoas pra reconhecer. 

Nem todas as faixas do álbum estão no álbum visual ou aparecem enquanto títulos da websérie. Como essas canções-destaque organizam os pilares narrativos dentro da tracklist? 
“Sangue Negro”, “Joias”, “Nebulosa”, acho que essas músicas que usamos para além do disco são as minha preferidas, as que eu achei que, no que diz respeito à produção musical, estão em um formato mais fresco pra mim, mais relacionado ao que eu estava fazendo, e que traziam uma características sonora maior, sabe? Elas definiam o disco melhor do que todas as outras. Essas a gente escolheu assim. Ao mesmo tempo, são duas produções bem diferentes. A websérie partiu mais da história, sabe? Em uma ordem cronológica até chegar em “Oceano”. Já o filme, não, fui eu escolhendo as músicas que eu achava que mais definiam esse momento novo, no sentido textual e no sonoro. Escolhi “Sangue Negro” ali porque achava que essa música definia bastante o disco. “Nebulosa” também, por outro lado, ela definia um aprimoramento das coisas que eu já tinha experimentado com Benke e com Mahal [Pita]. 

E como foram levantadas as bases estéticas, visuais e sonoras do álbum? Quais foram elas? 
Bom, essa história é massa. Quando eu fui pra São Paulo, eu não consumia muita música contemporânea. O encontro com o Benke foi muito importante para abrir minha cabeça. Foi ele quem falou ‘Ouve Kanye West, ouve uma música de Drake‘, e eu não gostava de nada. E eu não só comecei a gostar, como até fiquei enjoado [risos]. E fui achando legal, Benke foi me mostrando um jeito de produzir que era muito mais descolado, acho que pelo fato de eu estar lançando músicas mais antigas, tipo MPB clássico, eu era uma pessoa do violão que ficava com aquele pensamento de que eu deveria ir pra um estúdio gravar as músicas. Ele veio com o celular na mão, dizendo ‘Vamo gravar tudo aqui’, a gente ia no quintal, chovendo, e gravava voz, ia ouvir a voz que tinha acabado de gravar no tecladinho, sabe? Isso me ajudou a abrir possibilidades infinitas, de gravar em casa mesmo. E aí eu consegui comprar um sampler 404, analógico, e basicamente o trabalho foi muito duro, muito lo-fi mesmo, de chamar pessoas pra minha casa. Por exemplo: chamei Luê, pedi pra ela tocar um pouquinho e gravava. Já sampleava ela, misturava as vozes dela com a de Josy [Josyara], depois começava a samplear minha própria voz, como no caso de “Joias”. e fui fazendo isso em casa, fui gravando a Mix$tape (2019) com o Benke, e fui continuando isso também no estúdio. O que a gente fez foi gravar isso ao vivo, a gente não usou muito computador, usamos o meu sampler, e os caras tocando bateria e eu ouvindo lá; com a voz de Luê aqui [no sampler], eu disprava violino, disparava as coisas, fazendo meio ao vivão mesmo. Até eu vir pra Salvador, já na parte da mixagem porque parei com esse disco um pouco. Nesse momento, eu estava muito preocupada em falar pro Benke que eu não achava que o que a gente tinha produzido tava legal. A essa altura, a gente já estava com o disco pronto, indo lançar a Mix$tape. Foi aí que ele disse pra mim: ‘o registro não encerra a obra’. Isso aí me deu um start na cabeça. Eu falei ‘caramba, vamo apagar todas as músicas do Spotify?’, mas a gente não pôde fazer isso porque eu não sou o Kanye West [risos]. Eu queria bagunçar a cabeça da galera, até pensei em não cantar nesse disco. Foi então que surgiu um conceito que Gāthā trouxe pra mim, que adorei muito, do fractal – que é um objeto geométrico, encontrado na natureza ou não, que pode ser dividido em partes semelhantes ao objeto original. Foi quando eu decidi inventar que esse negócio, o disco até então, era um espelho e que eu ia jogá-lo no chão, que ele quebraria e viraria um bucado de coisas. Vou usar um caco naquela [música] com a Josy, esse aqui na outra, esse em outro em outra… vou quebrar e deixar esse espelho solto pra todo mundo. Quando você menos esperar, vou convidar você pra juntar esses cacos comigo; Nebulosa Baby também é isso. Coisas que já estavam na Mix$tape e que reaparecem agora em sua versão original. A Gāthā é uma pessoa muito importante, então vou repetir várias vezes mais o nome dela, e me trouxe o trabalho do fotógrafo Alex Oliveira, dizendo que ele era um cara que tinha um pensamento parecido comigo sobre a Bahia, sobre como as pessoas têm uma visão pequena e caricata sobre o nosso lugar. Muitas vezes, até mesmo em festivais em que eu ia tocar, as pessoas duvidavam que eu era mesmo de Salvador, muito pela minha música não estar relacionada à festa, ou ter uma sonoridade de pagodão, entende? O que não tem nada a ver porque a gente é muito além, a gente é passado e futuro, tudo misturado. Quando eu vi o trabalho do Alex, eu acabei fazendo a mesma coisa! Pensei ‘Isso aqui é no Brasil? Isso aqui é outro planeta!’. E era Jequié, na Bahia, um lugar que eu sempre soube que existia, mas que não dava muita importância, sabe? Me identifiquei com aquela parada, comecei a pirar nesse negócio de pensar na gente, na construção do nosso bairro, da nossa cidade, da Bahia. E também tem essa coisa da gente nunca se enxergar, né? Queria esse futurismo, esse afrofuturismo, para que os meninos tivessem essa coisa, essa referência que eu não tive.

Você pode me situar o bairro de Valéria em Salvador? Como ele interage com o resto da cidade?
Quando as pessoas de São Paulo me diziam que iam para Salvador, eu sempre brincava dizendo que Valéria era o lugar onde você nunca vai quando visita a cidade. Você não vai passar por Valério! É o último bairro da cidade, fica na BR, não é perto de praia, não é perto do centro. Inclusive, eu sinto que sempre existiu um estranhamento envolvendo uma parte da cena musical em relação a mim, talvez por isso, por eu não estar inserido em nenhum grupinho, entendeu? Não conhecia muita gente. Eu era o cara que atravessava a cidade inteira, que vinha de Valéria pra tocar no Rio Vermelho, de olho no relógio porque, se desse 23h, como é que eu ia pegar o Estação Pirajá, e pegar outro ônibus pra ir pra Valéria? A minha relação sempre foi de chegar, tocar, arrumar minhas coisinhas e vazar. As pessoas conhecem Valéria pela violência, a fama que se tem de lá é de um bairro violento.

Entendi. GIO, sua poética em Nebulosa Baby segue escancarada, enquanto as sonoridades se organizam sob uma espécie de minimalismo polifônico que parece nos tirar da zona de conforto. O que você buscou ao nos apresentar essa combinação? 
Inicialmente, eu queria fazer uma coisa muito, muito, muito fria, porque achava que devia fazer isso depois de imprimir uma coisa muito solar e cool em Japaneese Food. Eu tenho essa coisa, que as pessoas dizem que é uma dificuldade em mim, de não conseguir me manter fazendo o mesmo. Às vezes você tem que se manter fazendo algo que deu minimamente certo pra você conseguir uma grana e fincar seu espaço, sua bandeira. Quando lancei meu primeiro disco, as pessoas disseram que eu era o cara do violão, e a partir daí eu nunca mais quis ser o cara do violão. Agora eu uso sampler, e aí se as pessoas ficarem dizendo que eu sou o cara do sampler, eu não vou querer mais, sabe? É uma agonia que eu sinto, pode ser coisa de gente chata mesmo. As pessoas falam que a minha música é experimental, minha música não é experimental, ela é tradicional, porque a tradição do Brasil já é bem experimental; pra mim não vale só tocar a mesma coisa. O interessante é quando você aprende uma nova língua, come uma coisa nova, sente um novo sabor, é isso que eu tô sempre buscando. E no início de Nebulosa Baby, eu pensava que ia fazer um negócio muito frio, tipo como “Nebulosa”, dela pra baixo. Mas o que aconteceu? A vida, né? As coisas vão mudando. Eu vim pra Salvador, revi minha família e amigos, me identifiquei com a bagunça que a cidade tem, e tudo isso foi muito importante. E a partir desse momento, depois de tanta história vivida, quando eu peguei esse disco de novo, eu já não estava mais querendo ser frio, eu só tava querendo ser o que eu devia ser. Eu comecei a prestar mais atenção a qualquer tipo de coisa que parecesse uma intuição pra mim, sabe? Foi o meu reencontro com esse disco que fez com o som dele mudasse. Se ele tivesse sido lançado há dois anos, um ano, quando a gente não tinha estrutura pra lançar ele, seria diferente, porque eu tava em SP, muito ligado ao som e à estética. As coisas que aconteceram em nossas vidas fizeram com que eu repensasse a minha própria vida, a minha família, a minha ancestralidade, e isso modificou a sonoridade mesmo, sabe? Tiveram momentos da mixagem como na faixa “Caminho do Mar”, que eu não ia colocar no disco. Porém, sonhei com um amigo meu, já falecido, pra quem eu tinha feito essa música. No mesmo dia, Benke disse que tinha encontrado um registro meu muito bonito, muito emocionado, que achou que deveria estar no disco. Quando ele me enviou, era justamente um registro de “Caminho do Mar”. Esse tipo de coisa que realmente foi construindo o disco. A própria voz de Vandal foi um acidente, sabe? Benke falou comigo que estava com algumas vozes de Vandal soltas, que ele ia me mandar só pra eu ouvir, mas eu já fui escutando e sampleando em “Oceano”. A voz de Jup do Bairro também foi algo que aconteceu durante a mixagem. Ao perceber que eu tinha um disco, pensei que queria a voz de Jup. Deixei isso quieto, nunca tinha falado com ela, só via o trabalho dela no Instagram e gostava. Quando estávamos nos últimos momentos da mixagem, quando ninguém aguentava mais essa mixagem eterna, Benke lembrou: ‘rapaz, você me disse que queria algo com Jup, né? Já tá tudo certo?’. E não estava, sendo que eu falava pra todo mundo que teria a voz de Jup… acho que fiquei afirmando para ver se virava realidade. Aí ele me falou que estava com uma entrevista dela, eu pedi pra ele me enviar e quando comecei a ouvir, fiquei embasbacado, porque Jup falava a mesma coisa que minha mãe, naquela que conversa que comentei, lembra? Eu fiquei besta com aquele negócio, peguei uma música instrumental que a gente havia gravado e inseri a voz dela ali.

Foto: Alex Oliveira/Divulgação.

Como foram as reações e as relações da sua família e dos seus amigos de Valéria ao álbum, sua versão visual e a websérie?
Cara, essa foi a coisa mais bonita desse disco. Depois do lançamento, eu fiquei muito preocupado, a princípio, se ele realmente teria o alcance que ele deveria ter, porque ele tem tanta gente boa e, você sabe, eu observo que tem pessoas que realmente fazem as coisas por facilidade, vamos ser sinceros. Ela tem um piano, um microfone, decide gravar e vira uma loucura. Ey fico um pouco invejoso disso porque fiquei preocupado se esse disco ia chegar, se as pessoas iam gostar, se ia sair nos lugares. Até o dia que eu comecei a receber as mensagens e os áudios dos meninos que participaram das filmagens em Jequié e em Valéria. Eles falaram basicamente as mesmas coisas, do tipo ‘pô, eu quero que você volte aqui’, ‘quero que você traga o violão’, ‘eu quero ser artista, Gio! Eu acho que sou igual a você’, ‘eu acho que vejo as coisas como você, vi o filme e chorei!’. Amigos e até pessoas que não via há anos também se identificando. Eu pensei ‘caralho, acho que entendi!’. O que a gente precisa é mostrar pra essa galera que existem outras coisas na vida, que existe outra realidade, que a vida não é só o que se apresenta: crescer, ter filho, ir à igreja. Existem outras coisas maravilhosas. Eu durmo tão bem depois de receber essas mensagens porque, pra mim, não faz mais sentido fazer nada com ninguém que não tenha esse compromisso. Acho que eu tô mais comprometido e só me interesso por pessoas comprometidas em mudar as coisas. Eu espero que o primeiro show presencial de Nebulosa Baby em Jequié ou em Valéria. Se não for, eu quero trazer essas pessoas pra estarem lá assistindo. Acho que esse disco modificou um pouco o meu jeito de pensar as coisas.

Foto: Alex Oliveira/Divulgação.

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09/09/2021

Brenda Vidal

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