A garota arretada do rock brasileiro está de volta e trouxe com ela “SETEVIDAS”, seu quarto disco de inéditas. Se você já ouviu as 10 faixas do álbum, saiba que a experiência garantiu um encontro com a alma de Pitty. Ela está lá, “bem lavadinha”, como a própria deixa claro nesta entrevista.
Pra ler ouvindo o disco no player abaixo:
Cinco anos separam “SETEVIDAS” do anterior, “Chiaroscuro”. Entre um disco e outro, a cantora rodou milhares de quilômetros com a tour do álbum e gravou o DVD ao vivo “A Trupe Delirante no Circo Voador”. Depois se jogou no Agridoce, projeto paralelo realizado ao lado de Martim Mendonça, seu guitarrista, que também garantiu uma intensa agenda de shows, incluindo os festivais Lollapalooza Brasil e SXSW, nos Estados Unidos, em 2013. A seguir, veio uma sequência de acontecimentos inesperados que seriam responsáveis por boa parte da intensidade do novo disco. Em resumo: perdeu o amigo de infância e ex-colega de banda Peu Souza, enfrentou o processo judicial aberto pelo baixista Joe ao sair da banda e, por fim, viu Preta, a gata de estimação, partir logo depois das fotos produzidas para o lançamento do disco.
“Só nos últimos cinco meses, eu já morri umas quatro vezes. Ainda me restam três vidas pra gastar.”
– Trecho de “Sete Vidas”
O trecho da faixa-título mostra como foi doído, mas Pitty chama isso tudo de vida. Tanto que não faz a menor questão de esquecer os fatos. Simplesmente canalizou tudo pra música e, agora, está pronta e “empolgadíssima” pra pegar a estrada novamente e comemorar o novo momento no palco, com os parceiros Martim, Duda (bateria) e Guilherme (ex-Pública), que assumiu a vaga aberta no baixo. A tour já começou, aliás, mas antes de dar uma sacada na agenda, leia a entrevista que fizemos com ela.
Fica muito claro que o último ano, basicamente, inspirou este novo álbum, mas antes de falar dele, quero voltar só um pouquinho. De que forma os quatro primeiros anos deste hiato foram importantes pra você, como artista, especialmente pelo fato de ter feito um trabalho diferenciado e mais intimista com o Agridoce?
Foram importantes no sentido de acumular experiências diferentes, de exercitar um lado como instrumentista e compositora que eu nem sabia que tinha. Foi um começo do zero, o desenvolvimento de uma outra persona. E foi bom descobrir que a gente é plural e que pode dar vazão à isso.
Vamos ao novo disco então. É perfeitamente perceptível que toda a sua obra é muito pessoal. Este novo álbum, porém, parece que veio pra lavar a sua alma. Estou certa?
Está. De fato, minha alma está ali, e bem lavadinha. É raro na vida, acho que a maioria de nós vive buscando coisas nas quais pode botar a alma, parece ser isso que nos dá sentido, propósito, plenitude. Cada um tem esse lugar, e é diferente para todos. Seguimos procurando. E desejo fazer discos nos quais, cada vez mais, eu consiga colocar alma. É libertador.
Foi um ano difícil pra você, com muitas perdas. No entanto, você conseguiu transformar isso tudo em algo positivo. O que te deu força pra seguir em frente?
A percepção de que não existe caminho a não ser para frente. A música, sem dúvida. A arte, elemento catalisador e instrumento de exorcismo do negativo. A leitura, o uso de arquétipos mitológicos e alquímicos como analogia. E as pessoas ao meu redor, tão amorosas e essenciais nesse processo de cura.
Vamos falar sobre o processo de produção de “SETEVIDAS”. Todas as letras são suas. Como houve a união entre letras e músicas, especialmente pelo fato de ter um novo integrante na banda?
Em alguns momentos, o processo foi ligeiramente diferente dos anteriores, porque dessa vez fiz mais letras para músicas que já estavam prontas do que o contrário. Mas foi muito fácil e prazeroso. Em duas semanas de ensaio, os meninos já estavam prontíssimos, com todas as bases na mão, e aí eu fui me dedicar a encaixar e escrever o que faltava. O fato de eu não ter um prazo específico e nenhum compromisso com data foi ótimo no sentido de saber que eu poderia fazer tudo ao seu tempo, com calma: escrevendo hoje, parando pra pensar na semana seguinte, lapidando numa outra ocasião. Preferimos não anunciar de antemão o disco por conta disso: a ideia era lançar quando sentíssemos que estava pronto.
Por que optar por gravar ao vivo, com a banda toda tocando junto? De que forma você acredita que isso faz diferença pro disco?
Eu acho uma delícia gravar desse jeito. Traz uma visceralidade, organicidade e cumplicidade pro som que considero um ótimo contraponto pra tempos tão digitais. É uma forma de trazer o humano de volta pra música, a respiração, a interpretação do momento, o instante capturado. Gosto desse equilíbrio. Apesar do disco ser gravado num programa de computador, sinto que esse formato ajuda a quebrar a frieza da máquina. Já havíamos gravado o “Chiaroscuro” assim, mas nesse houve modificações no sentido de ir mais fundo nessa experiência: zero de isolamento, os músicos gravando sem fones de ouvido, se ouvindo na sala, tudo vazando mesmo. E a cada gravação sinto que eles melhoram. Próxima experiência, quem sabe, penso em gravar em rolo, em fita.
Você contou com Tim Palmer, que já trabalhou com David Bowie, Ozzy Osbourne e Pearl Jam, neste disco. Como foi?
O Tim mixou, quem produziu foi o Rafa Ramos (Deck). A mixagem do Tim é tão essencial, e ele agregou elementos, interferiu em arranjo, que o considero um sexto elemento nesse disco. Foi uma aula vê-lo trabalhar. Muita experiência e domínio da linguagem desse tipo de som, ele fez o álbum chegar exatamente onde a gente queria. Um som de garagem, mas elegante. E é um querido, recebeu a gente superbem na casa dele.
Desde o lançamento do primeiro disco, sua vida foi muita intensa (fãs enlouquecidos, turnês, muita estrada). Aí, veio o hiato. Como se sentiu voltando pro palco e pra estrada, nesta nova turnê? Está empolgada?
Empolgadíssima. Sabe, dizem que o tempero da comida é a fome, né? Pois então, eu tava pensando aqui que o tempero da vida é saudade. Porque saudade é fome de alguma coisa. Então deu tempo de ter essa fome, de olhar de fora, de descansar de si mesmo e de uma rotina. Isso faz enxergar as coisas boas que às vezes a repetição rouba da gente. Vai ser muito melhor agora, voltar pra estrada, depois disso tudo.
E os fãs, como está sendo a volta em relação a eles? Você sente que eles amadureceram/cresceram junto com você? Há novos fãs? Ainda rola uma “histeria” em torno de você?
Vou perceber melhor quando cair na estrada de fato, mas daqui já vejo uma mudança. É engraçado como parte da mídia ainda associa a banda com molecada; mas aqui no dia a dia é tão diferente. A sensação que eu tenho quando dizem isso é que eles pararam no que foi “estabelecido” há dez anos atrás. Ainda tem uma parcela de muito jovens, o que acho ótimo, pois é frescor e renovação, mas a maioria hoje é adulta. Eles trabalham, fazem faculdade, mestrado, criam família. Penso que nesse momento, o público está misturado entre essas duas parcelas, e a questão da histeria parece estar mais ligada aos muito jovens, acho que faz parte. Sempre tentei desconstruir isso na medida do possível porque acho que idolatria alguma faz bem, e que autonomia é mais importante, mas nem tudo está nas minhas mãos, e procuro tentar compreender as pessoas ao redor.
Há alguns anos, perguntei à Rita Lee (leia entrevista aqui) quem seria a princesa do rock brasileiro, já que ela era a rainha. Ela falou Pitty sem nem titubear. Agora, te pergunto: você vê alguém no cenário atual que poderia herdar o seu legado?
Puxa! Fico tão honrada em saber disso. Mas sabe, não sei se simpatizo com o verbo “herdar”, me parece mais que todas vão somando e cada uma a seu tempo. Rita Lee sempre será Rita Lee e nunca haverá ninguém como ela. É uma pessoa tão única! E assim com cada uma. Tem muitas meninas fazendo som e sendo incríveis por aí.
Fotos: Divulgação, Daryan Dornelles (banda), Rogério Grassia (show)