Exclusivo | Cara a cara com o desconforto, LUMANZIN se ergue em “Quarentena”

02/08/2019

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Brenda Vidal

Por: Brenda Vidal

Fotos: Gabi Lits/Divulgação

02/08/2019

Mesmo que o sofrimento seja inerente à vida humana, buscamos, a todo o instante, fugir de sensações dolorosas. Abrandamos, sufocamos, remediamos, aliviamos. Mas, existe alguma rota de cura que não passe pela dor?

“O álbum trata de tudo, menos de amor”. É com essa consciência que Luísa Manzin dá vida ao seu projeto criativo sob o nome de LUMANZIN. Com a estreia de Quarentena – uma proposta multimidiática que inclui o disco, fotos, um falso doc e vários outros arquivos – a artista se reconstrói e se ergue por uma densa travessia pela culpa, pela dor, pela aridez, pelo desconforto, guiada por uma inquietude e um selvagem instinto de sobrevivência. 

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Pontos de partida e traumas se enroscam. Sob uma trilha experimental, que explora ritmos brasileiros, corais clássicos e timbres contemporâneos, LUMANZIN acessa outros lugares da consciência através da experiência de um aborto provocado, uma tosse incessante que levou a fratura de uma costela, uma viagem ao Canadá para fazer parte do centro criativo Banff Center e a decisão de lançar seu disco. Com produção de Magi Batalla, o álbum sai oficialmente no dia 5, próxima segunda, e tem seu show de lançamento no dia 6, terça-feira, no Mundo Pensante, em São Paulo. Mas, com exclusividade para NOIZE, a artista libera o trabalho, que você pode ouvir a seguir: 

Mergulhamos no complexo universo de Quarentena e convidamos você a fazer o mesmo: trazemos um bate-papo com LUMANZIN sobre performance, dor e desconforto como ferramentas criativas e, não é só isso – ela ainda destrincha cada som em um faixa a faixa exclusivo. Para ir em frente, só descer a barra de rolagem: 

De onde veio a vontade de investir em um projeto multimidiático? Que novas camadas de Quarentena são possíveis de serem explorar nesse formato? 
Desde muito pequena eu estive em contato muito forte com diferentes mídias. Era foto, diferentes tipos de shows e apresentações, vídeos (na escola fazia muitos), etc. Quando saí do colégio fui direto fazer um curso chamado Comunicação e Multimeios, na PUC-SP, e isso abriu ainda mais a portinha já meio aberta na minha cabeça. É possível explorar milhões de camadas do projeto. Agora, inicialmente, foco no áudio e no vídeo, mas não descarto de maneira alguma fazer uma exposição (de fotos, vídeos e textos), quem sabe lançar um livro com todos os textos e “poemas”, instalações áudio-visuais e interativas, etc. A grande chave da criação multimídia é focar nos signos, nas palavras, nos objetos que se repetem. Por exemplo, “maria” e “pausas/tempo” são assuntos muito recorrentes no projeto e cada um pode ser desmembrado de diversas maneiras, basta atenção e muito material pra pesquisar. O projeto tem duas divisões principais que são: a realidade e a arte. Elas não se separam no fim das contas, mas é diferente o tratamento dado pra cada uma.

As experiências que fundamentam o disco são dolorosas. Como foi esse processo de utilizar a dor como ferramenta criativa?

Na verdade, não vejo outra maneira. Pode ser o tanto de leão (drama) e câncer (emoção) no mapa [astral], mas nunca consegui escrever nem compor nada que não viesse do sentimento dolorido. Isso não significa que as coisas soem tristes, mas sempre vem desse mesmo lugar. O segredo dessa fase toda foi entender que eu tava mal e isso já automaticamente significava que eu tava bem de alguma maneira. Entender e reconhecer nossos estados aliviam o peso, por que, normalmente, a gente se sente culpada por estar triste, né?

As letras e sonoridades causam um certo desconforto. Que trocas você acredita que podemos estabelecer encarando esse desconforto proposto por Quarentena?
Tudo que significa mudança é desconfortável. Sair da cama num dia frio é desconfortável, mas passa logo. Enquanto as pessoas não se acostumarem a passar por situações desconfortáveis dentro delas, elas vão ou continuar sofrendo sem parar, ou fazer os outros sofrerem por não conseguirem lidar com elas mesmas. A gente sofre porque está triste, mas o sofrimento é absurdamente ampliado quando a gente fica lutando contra ele. Tentei no CD trazer esse sentimento de “nossa, ta difícil de ouvir, mas não consigo parar”, principalmente na faixa “gozo”. Lidar com o desconforto a primeira vez é insuportável, a segunda também, a terceira também, mas depois disso fica mais fácil. Temos que superar nossas barreiras sempre (:

Como “Quarentena” está sendo pensado para o palco, enquanto performance? Sua decisão de ocupar o palco sozinha faz parte disso? 

Sim, ocupar o palco sozinha é um ponto essencial pro projeto. Fala de isolamento, todas as vozes do disco são minhas e saíram da minha cabeça, foi tudo pensado e criado em um quarto onde eu me curei conversando comigo mesma. É um tanto “egocêntrico” de certa forma. Mas a cobertura e cereja do bolo é a equipe que vai trabalhar comigo no show. Projeções, desenho de luz, cenário, figurino, tem muita gente trabalhando pra fazer o “quarentena” acontecer. A ideia é que tudo interaja. As projeções e eu interagimos, cantamos juntas. As luzes criam toda a atmosfera, o som bem preenchido e o visual pensado a partir das referências visuais que a “quarentena” tem, que vem de todo o material documental guardado.

Pode compartilhar pra gente como foi a concepção, produção e realização da capa de Quarentena?

Sozinha em casa, sol batendo na janela… Não sabia o que fazer então fiquei pelada, subi na cama, coloquei o timer e voilá. Foi a única foto que tirei aquele dia. Ela crua era bem sem graça, mas quando eu fui arrumando as cores e as luzes eu pensei “ai que bom a capa ta pronta! Agora falta só… tudo (:”

Faixa a faixa, com LUMANZIN

Capa de Quarentena (Foto: LUMANZIN)


1. “Eu Vim de Lá”

A música começa com a frase “Eu vim de lá, eu quis sair. Não quis ficar, não vou voltar” e a repetição faz com que essa ideia, essa vontade, esse feito seja bem interiorizado, enraizado e principalmente jogado pros outros planos pra reafirmar. Eu acredito que a palavra falada, o som, traz as coisas pra realidade em que estamos e isso ajuda na concretização. Por isso sempre aconselho a rezar ou pedir as coisas em voz alta. O som tem ondas, é físico. Depois da primeira parte eu repito que “o tempo só cura se você sofre, o tempo só cura se você olha pra ele” porque esse é o único jeito de curar seja lá o que for que te assombra. Tem que olhar. Tem que sentir, tem que sofrer mesmo. Quem fica reprimindo o sofrimento ou acha que chorar uma vez, duas que seja, se isolar por 15 minutos já é suficiente, fica com aquele amargo guardado no peito pra sempre. A única maneira de se curar é entendendo o sentimento, conversando com ele e isso leva tempo. As pessoas tem muito medo de sentir, por isso existe tanta violência e falta de compreensão com o sentimento dos outros. A última parte eu me refiro à uma técnica que desenvolvi para dormir rapidamente. Durante a fase da quarentena tava insuportável viver por causa das dores. Eu tossi por mais de 100 dias, cheguei a quebrar uma costela por causa disso e fui no hospital algumas vezes tomar anti-inflamatório na veia pra aliviar as dores musculares. E foi em uma dessas idas ao hospital que eu tomei Tramal na veia e isso foi o ponto de virada. Quando o Tramal acabou de pingar eu comecei a sentir um desespero muito forte, queria sair dali logo pra chorar. Quando cheguei em casa, tive uns delírios super fortes e no fim da tarde comecei a passar muito mal. Era literalmente “tudo que eu havia guardado nesses últimos meses”. A faixa é realmente sobre o momento da transição entre o “estar mal” e o “estar mal demais, mas consciente de que é isso mesmo e simbora”.

2. “Grito Desesperado de Mulheres Abandonadas”

A música mais triste do disco com certeza. A mais forte e visceral. Ela está diretamente ligada ao aborto. O nome não é a toa. Eu só me sentia de duas maneiras durante minha recuperação: desesperada e sozinha. Abortar é muito, muito, muito solitário, mesmo tendo todo o apoio do mundo. Minha situação foi utópica, pois tinha toda minha família e amigos cientes e do meu lado, mas mesmo assim é tão interno, tão com você mesma que parece que nada no mundo ajuda. Pedi muito perdão pra vida que abortei. Passei dias, meses conversando com a Lua, sentindo essa vida do meu lado e pedindo desculpas. “Não foi falta de amor”, não é que eu não ia amar essa criança, mas qual era a chance de naquele momento ter um filho? Estar presa pra sempre a um cara que com certeza ia me travar, me desestimular como eu já tinha sentido durante nosso relacionamento? Principalmente em relação a carreira que é e sempre foi minha única prioridade. Eu acredito que ser mãe ia me atrapalhar nisso sim, eu ia ter que abrir mão de algumas coisas, mas eu continuaria produzindo e seguindo no meu ritmo, mas o maior problema era o parceiro mesmo. Uma curiosidade sobre essa músicas– e quase todas – é que foi tudo improvisado. Primeiro eu gravei as vozes que ficam no fundo e lembro de gravar chorando. Peguei meu pedal de harmonizer e só soltei tudo que tava sentindo. Quando comecei a ouvir o que tinha acabado de gravar, apertei o botão e fui cantando a letra em cima. Realmente existem outros planos, estamos conectadas com todas e todos que já passaram e a gente se comunica porque isso foi, de uma maneira ou outra, dado de presente pra mim.

3. “Idealização”

Essa fase toda começa depois de uma semana intensa emocionalmente que eu: descobri que tava grávida, abortei, terminei com meu namorado da época e dei de cara com uma pessoa que simbolizava tudo que eu já tinha idealizado. O problema dessa idealização é que foi tudo muito confuso. Eu tava muito sensível na época, todos os sentimentos bagunçados, não tava sentindo nada e quando conheci esse cara eu fiquei encantada. Naquele momento eu só precisava de carinho e nem eu percebia isso e ele apareceu de forma muito carinhosa, sincera e simples. Pronto, foi o suficiente. Conheci ele num show, flertamos, beijinhos, transamos e isso pesou na minha cabeça porque no sexo ninguém gozou. Ele não gozou e isso ficou me martelando, mas falarei mais sobre isso especificamente na faixa “gozo”.  Essa é como se fosse uma carta de desculpas, mas como eu digo na letra também “me desculpar, mas não pra você” porque quem precisava de perdão era eu! Por ter me cobrado demais por uma coisa que não tinha tanta importância, com alguém que eu não conheço, por ter ficado mal e obcecada (obcecada de verdade. Horrível), por ter ido atrás… E o pior é que eu demorei muito pra entender que ele representava tudo que eu queria pra MIM. Pra MINHA vida, pra MINHA carreira e não no homem que me acompanha.

4. “Doce”

“Doce” fala sobre ceticismo. Tenho um amigo muito cético e com quem tenho um histórico cheio de vais-e-voltas. Já nos amamos, já nos odiamos, brigamos muito e hoje em dia temos a plena certeza de que temos algo muito, muito especial entre nós e que nosso amor é maior que tudo. Um dia ele me mandou um áudio depois de ter tomado um doce e no áudio desabafava sobre a vida dele, os sentimentos dele, o que ele tava sentindo, mas sempre com uma pegada muito, muito racional e pessimista. Na época do áudio eu estava no auge do meu esoterismo e não conseguia entender o porque tanta falta de fé dele. Nada parecia fazer sentido, ter sentido ou qualquer significado. A frase “falsos, já que somos pó de estrela e elas não alteram em nada o nosso estado” foi feita por ele. Ele é o outro não afetado com vontades vazias.

5. “À calma”

Quando você passa por qualquer que seja o ritual e você volta pra si mesma, vem uma força muito maior e parece que te invade. Eu vivia falando em voz alta com a outrA que eu sentia. Parecia uma outra versão minha mesmo, uma parte minha que eu já conhecia, mas que agora tava voltando com muita força e eu falava “olha, vai com calma porque você é muito forte. Se você continuar assim você vai me matar e se eu morrer nenhuma de nós existe”. É muito difícil explicar o que eu tava sentindo nessa fase porque nada, nada mesmo, faz parte desse plano terreno, desse corpo. Não era palpável, não era comum, não era visível, nada. Eram apenas sensações que influenciavam no meu corpo. Essa música é uma homenagem, uma conversa com essa outrA, fala sobre ela. Foram as melhores palavras que achei para explicar o que tava acontecendo comigo naquela época.

6. “Gozo”

A falta do gozo cai como culpa. Foi o que disse na faixa “idealização”. Foi um sexo onde ninguém gozou, mas pior ainda, um sexo onde senti muita dor. Eu tinha abortado fazia mais ou menos 10 dias e eu tava com uma dor muito forte na bixiga. O procedimento foi super tranquilo, mas acho que somado com todos os sentimentos da época acabou me inflamando. Eu ainda admiro esse cara como profissional, mas no dia admirava como tudo e quando a gente começou a transar e eu senti dor, eu falei que tava doendo, virei pro lado e dormi. Isso ficou martelando na minha cabeça por muito tempo. A culpa que a gente sente na falta do gozo do homem é doentia e reflexo de uma série de crenças falsas, uma série de expectativas, de costumes. É fruto de um machismo horrível. Ele não me cobrou em nenhum momento, me respeitou na hora que disse que tava com dor, me tratou com carinho e tudo mais, mas eu presa naquele pensamento, nesse vício de comportamento, fiquei me culpando por causa disso por meses! E quando fui pensando sobre o porque eu me culpava tanto, escrevi essa letra me baseando também em relações sexuais do passado e com tudo que já ouvi de outras meninas sobre o assunto também.

7. “Das Pausas”

Um dia eu tava no meu quarto –do mesmo jeito que passei 3 longos meses –, liguei a câmera do celular e improvisei uma letra com uma percussão corporal. Fala dessa pausa mesmo, desse momento de reflexão e internalização. Das dores. Fala da minha vida que parou num geral pra que eu pudesse me curar. A cura veio violenta, mas como eu sempre peço “me bote na situação que for necessária pra eu aprender, mas que seja do tamanho que eu aguento”. Aí também percebi que eu aguento muito.

8. “Disse Maria”

Maria Olivia Aporia. Essa é a Maria em questão. Nos conhecemos na faculdade, no bar, usando o mesmo vestido e a partir daí nos gostamos. Durante minha fase de reclusão, ela passava pela mesma coisa. Tiveram meses que nossos emocionais estavam totalmente sincronizados. Nossos medos, nossas vontades, fome, sono, tudo. Dividíamos esse contato com o outro lado da existência, dividíamos nossas angústias, falávamos muito sobre tudo e éramos complementares. Ela me inspira há muito tempo e percebemos que nossas energias são complementares. Vezes opostas, vezes não, mas sempre complementares. Por isso tudo que eu disse maria não disse e o que ela disse eu fiquei por dizer. Os textos dela, os meus textos, tudo se conversava. Nós temos reflexos artísticos muito, muito parecidos e usamos basicamente as mesmas plataformas, as mesmas mídias. Ela é grande, forte, linda, sincera, amorosa. Sensata, inteligentíssima, acadêmica, compreensiva, entendedora. Ela entrou nessa fase antes de mim e há um tempo vejo ela saindo. São muitas transformações e nós duas entramos em tal estado por causa do desgaste emocional pesado pelo qual passamos, cada qual no seu tempo, cada qual pelos seus motivos. Te amo Oli.


02/08/2019

Brenda Vidal

Brenda Vidal