Exclusivo | Felipe Antunes relê cada faixa do seu disco-livro: “Lâmina”

26/09/2016

Powered by WP Bannerize

Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Ana Claudia Silva/Divulgação

26/09/2016

Fortes acontecimentos têm marcados os últimos dias de Felipe Antunes. À frente da Vitrola Sintética, ele acabou de ser indicado ao Grammy Latino pela segunda vez com o single “Deus” (no ano passado, a banda foi indicada nas categorias Melhor Artista Novo e Melhor Engenharia de Som). Ao mesmo tempo, Felipe está promovendo o lançamento do seu primeiro disco solo, “Lâmina”, com show amanhã no Sesc Pompeia, em São Paulo (mais informações aqui).

O álbum foi prensado em CD e chega ao público dentro de um livro da editora Urutau que traz fotos, letras das músicas e outros poemas do autor. Produzido por Felipe Antunes, Luca Fasano e Wem Mason, Lâmina foi gravado entre agosto de 2014 e fevereiro de 2016 no estúdio Submarino Fantástico e conta com as participações de Helio Flanders, Juliana Perdigão e Ná Ozzetti. Como escreve Maurício Pereira, autor do prefácido do encarte/livro, esse é um disco de poeta: “O texto livre desamarra a melodia, (des)orienta a métrica, libera os sentidos: e a canção se abre pra a poesia divagar”.

*

As memórias e aspirações de Felipe Antunes se fundem ao longo da sonoridade particular de Lâmina. O disco abre homenageando as raízes do músico no canto ancestral de sua avó e encerra com “Nunca Talvez”, uma parceria com Otavio Carvalho, colega do Vitrola Sintética. “Ele sabia que seria melhor acabar com uma possibilidade, uma dúvida, um talvez”, explica Felipe no faixa-a-faixa do disco-livro que você lê abaixo.

Lâmina (2016)

Canção de abertura

Minha avó Natália, já com mais de 80 anos, sempre se lembra de uma canção aprendida na escola. Ela nasceu em Portugal, mas veio ainda pequena para o Brasil. Acho muito interessante a memória intacta em relação a essa canção que ela carrega. Ela não se lembra do contexto, ela não se lembra quem compôs, ela não sabe se foi a própria professora quem escreveu. Mas ela sabe, cristalizadas, melodia e letra. Pra minha sorte o disco abre assim: à capela, com sua voz pura. Ela cantou sem saber que, posteriormente, essa gravação faria parte de um disco. Eu gravei sem e também não sabia. Pelo menos achava que não.

Telepatizar

Essa palavra inventada foi fruto de uma real (possível) pesquisa que na época eu realizaria. Não realizei, o projeto até nem andou mais. A figura que liderava a ideia fez uma reunião comigo e mais algumas pessoas na universidade. A ideia era pesquisar mais a fundo a glândula pineal. A figura me passava algo difuso. Talvez a minha pineal estivesse ressabiada com a dele. Ele me parecia um pouco gênio, um pouco charlatão. E gosto dessa gente – apesar dos riscos. O fato é que me abriu caminho pra conhecer algo extremamente obscuro, apesar de dependente da luz. Telepatizar vêm dessa viagem. Na verdade, o impulso veio dessa viagem, e a partir de então comecei a refletir sobre conexões entre pessoas e com a natureza; nas frequências de comunicação, nas nossas permissões, nos bloqueios, etc. Musicalmente, pra mim, ela era uma das mais claras em referências: queria uma coisa meio Johnny Cash nos arranjos das suas últimas gravações; queria a rabeca que meu avô fez quando ele tinha uns 15 anos; queria essa sonoridade rústica, meio medieval e campestre; e queria também abrir vozes flertando com o sertanejo. Chamei um cara que conecta profundamente comigo, em presença e telepatia: Helio Flanders. Ele cantou e tocou violão na faixa. Foi uma noite incrível no Submarino Fantástico. Também tive a sorte de Arthur Mattos estar em São Paulo na época da gravação; ele é um dos melhores que já vi tocando folk no violão, sou fã do cara, e ele foi de uma delicadeza incrível.

Vai por mim

Primeira música do disco a ser gravada no Submarino Fantástico, o estúdio acolhedor de várias das pirações paulistanas recentes. Me lembro de ter sido um noite muito bonita, de energia forte, emocionante; todos ali se entregando num plano superior, uma espécie de transcendência alimentada de vinho e da visita da minha amiga querida Paula Possani. aquela voz gravada – e que a gente chama de guia – ficou, não regravei, a energia estava ali. Pro arranjo, não queríamos nada muito marcado no final, e o Leonardo Mendes trouxe a linda referência “Aos pés da Santa Cruz”, na versão do mestre Gilberto Gil, pra pensarmos na parte percussiva que entraria. Me lembro também de que, no dia em que compus essa canção, os parceiros do Porcas Borboletas estavam em casa, fazendo uma reunião na cozinha com Enzo Banzo (na época Banzo, Tatá Aeroplano e eu morávamos juntos). Eu só posso agradecer pela energia que atravessou até o meu quarto!

Pretensão

Escrevendo sobre as canções do disco, fui me dando conta de como meus amigos – parte da banda Porcas Borboletas (da qual sou muito fã) – foram importantes no processo. Já citei na “Vai por mim”, e agora – e por enquanto -, cito também em “Pretensão”. Um dia depois de tê-la composto, encontrei com o Moisés Moita Matos, guitarrista da banda, e lhe mostrei a canção. Ele reparou que as frases longas que constroem o refrão (se é que se pode chamar de refrão) eram quase todas dodecassílabas. Uma outra coisa interessante é que os “refrãos” – compostos de 24 frases -, são divididos (também) em 12 e 12. O Moita notou que 22 dessas frases eram dodecassílabas, as outras duas tinham 11 sílabas. Eu voltei para casa e reorganizei essas duas frases para que também tivessem 12. E na mesma semana a gravei, no meu quarto, no aparelho de cassete que ganhei das amigas Aura Rosa e Jana Rosa, minhas vizinhas na época! Essa faixa teve um trabalho técnico interessante, porque o Luca Fasano e o Otavio Carvalho (responsáveis pela captação e mixagem do álbum) extraíram o áudio do cassete e montaram um esquema para que eu pudesse gravar um piano, também em cassete, sobre o violão e voz feitos em casa. Depois disso, o Ota ainda gravou um bonito órgão nela. Dentro de uma longínqua viagem de experimento poético poderíamos sugerir que ela é “pretensamente” composta por versos “alexandrinos modernos”. Porém, como não há trabalho de entonação, fico despretensiosamente nos dodecassílabos!

Essa moça
Seguindo o passeio pelos amigos do Porcas Borboletas, chego na primeira composição assinada junto ao querido Enzo Banzo. Entreguei a ele um poema, na expectativa que o musicasse, mas confesso que depois, relendo frio, pensava ser difícil enquadrar os versos melódica e harmonicamente. A minha sorte é que o Banzo tem essa característica. Tem uma capacidade incrível de polir frases e encaixar melodias. O seu livro “Poesia Colírica” mostra como ele busca máximo conteúdo em mínimas palavras. Ele lapidou e musicou o poema, então chamado “Pó de Vidro”. Me lembro muito da gravação, de como foi leve, cantamos juntos de frente um pro outro, no melhor esquema “ao vivo”, com biritas e polimentos finais na letra, como a (feliz) insistência dele pra que mantivéssemos sempre “seu” e não “teu”, pra fortalecer a sonoridade dos “s” e preservar a menor formalidade do português. Ao final da gravação, e ele sabendo da minha vontade de ter um trombone na faixa, me sugeriu chamar o Bocato. Mas eu disse: será que ele toparia? Eu pensava ser uma possibilidade muito distante, sempre fui fã dele, vê-lo tocar é uma experiência muito transcendental. Ele acabou por gravar, e deixo aqui, pra terminar, a frase que tive a sorte de ouvi-lo dizer: “Na mixagem dessa faixa, não adianta o técnico ser só técnico, tem que ser um colorista. Ela é uma pintura”. (E que bom que eu tive esses coloristas)

Bastava

O apartamento que vivo hoje com Tatá Aeroplano, Gui Calzavara (do duo Dente Trigre de Sabre) e Marcelo Segreto (da Filarmônica de Pasárgada) tem muito história. Já passaram por aqui muitos moradores. Em uma dessas fases estivemos Tata, Meno Del Picchia e eu. Meno e eu temos, fruto desse tempo, duas canções compostas juntos, “Bastava” é a primeira delas. “Minha garota” veio depois, mas saiu primeiro, no álbum “Sintético” do Vitrola Sintética. Ele me entregou a melodia e a harmonia com a vontade que se repetissem palavras – como “bastava” – ao longo das chamadas partes “A” da letra. Optamos por essa brincadeira de que, na interpretação, a letra fosse quase que sendo separada silabicamente pela voz, como que se em boa parte dela esclarecêssemos as divisões. Sempre que a canto me lembro da importância que o preparo físico tem nas nossas vidas!

Descansar

As vezes o sol não se põe. A luz não cessa. É sempre dia.
Como se descansa?
De volta a glândula pineal!
Como faz para avisar ao corpo que já é hora de descansar?
A luz permanece. É frio e tem sol.
É necessário estar sem roupa. Só um corpo não aquece.
Precisamos fundir a natureza e os sentidos para, enfim, descansar.

Esse moço

Sentei no piano e comecei a brincar com acordes densos, que caminhavam para uma introspecção, mas em pouco tempo notei que a canção se abria, que sua estrutura pedia diálogo, e que a intenção teatral iria reger. Foi uma brincadeira quase que homenagem a canções com jogos de vozes, como “Tereza da praia” e “O meu amor”. Mas também queria, como homem, me afastar e ter duas cantoras a frente. Chamei primeiro a minha amiga querida Juliana Perdigão, e foi lindo. Depois, conversando com Helio Flanders num bar, expressei minha vontade de ter também a Ná Ozzetti na faixa, mas me parecia distante, ela é das minhas cantoras favoritas. Na verdade, no fim, não foi nada distante, foi muito natural, ele nos apresentou e ela foi das pessoas mais generosas desse trabalho. Me orgulho muito dessa faixa. E me orgulho muito de ter essas duas mulheres tão fortes e carinhosas no disco. No mesmo dia da conversa com o Helio, horas antes, eu tinha encontrado o primeiro vinil da Ná em um sebo, ali próximo do bar. Energias que não se explicam, mas que fazem todo sentido.

Veio do tempo

A faixa-poema. A mais longa do álbum. Nasceu em um retiro espiritual de silêncio, ali entendi muita coisa e exercitei outras mais. No templo, no silêncio das vozes, eu escutava a voz poética de Antonio Abujamra. Ele me declamava aquilo que eu escrevia. O que ele fez em sua vida e obra pela arte me ajudou. Quem já não quis ser provocado por ele? Ele me provocou, mesmo sem tê-lo conhecido. Suas interpretações fizeram esse poema fluir. E já que o poema é longo, tratando do silêncio, vou silenciar, pra que tratem do poema.

Cru

Uma noite – não tão fácil de fazer acontecer: sozinho, escutando música, assistindo entrevistas, lendo, bebendo, escrevendo, etc. Assim escrevi “Cru”. Ela surgiu expandida. Logo percebi que suas frases poderiam se recombinar verticalmente, de maneira ascendente ou descendente. Também notei sua tendência ao poema concreto. E notei sua vocação a ser, também, poema sem canção. Ela foi um dos motivadores para o álbum ser também livro. Ela foi parar, aliás, sozinha – e antes -, num livro. Foi publicada como poema na revista literária “Euonça”. E assim como seu nome foi gravada crua, no meu quarto em cassete, e sem mais camadas.

Acomodar

Por volta dos 8 anos de idade, fiz 6 meses de aula de piano. Foi meu primeiro contato com o palco, tocando na Casa de Cultura de Bragança Paulista no recital de final de ano da escola de piano. Depois disso,não tive mais contato com o instrumento, mas sempre foi dos que mais me trazem emoção. Voltei a tocar por volta de 2013, e “Acomodar” foi a primeira música que fiz ao piano. E, dessas coisas que acontecem pelo caminho, acho o piano um elemento importantíssimo no arranjo que fizemos, mas não o essencial. Tanto que quando faço shows de voz, violão e piano, escolho tocá-la com o violão. O disco tem muito mergulho na memória. O show também. E nessa linha (enquanto aqui escrevo, por coincidência ou sincronicidade, chega uma mensagem dele) tenho o prazer da participação de Gui Calzavara, meu amigo mais antigo lá das terras bragantinas, tocando trompete. Essa frase de trompete ele criou quando estávamos, em um final de semana, indo pra Bragança. Mostrei trechos da gravação e ele começou a cantar a frase junto por cima! Decidimos que ela tinha que ser gravada, ele salvou a ideia no celular e tempos depois gravou. No último dia da gravação das vozes recebo no estúdio a visita do mestre Raphael Zarella e do Kezo Nogueira, e os dois mais o Ota gravaram os coros comigo. Visitas de acaso? Todo o disco foi assim, acasos, coincidências, sincronicidades, qualquer uma das palavras que desejemos usar servirão, umas mais outras menos, mas servirão. Kezo Nogueira, Leonardo Mendes, Meno Del Picchia, Chicão, Thomas Rohrer, Otavio Carvalho, Luca Fasano, Wem Mason, Arthur Matos, Raphael Zarella, Bocato, Helio Flanders, Ná Ozzetti, Enzo Banzo, Juliana Perdigão, Felipe Tichauer, Tiago Fabris Rendelli, Wladimir Vaz, Guilherme Calzavara, Eduardo Lemos, minha Avó Natália Alzira e Chema Madoz, aproveito aqui pra acomodar a sorte dos nossos encontros.

Nunca talvez

Essa canção é pra nos “desafirmarmos”, pra compreendermos as reais conexões do ser humano: que os prazeres independerão da formalidade da pele, mas que dependerão do toque dela, e que o quem somos pode ser nocivo, se considerarmos nos superiorizarmos enquanto seres. Ela é parceria com Otavio Carvalho, meu amigo-irmão querido do Vitrola Sintética, sempre junto e dividindo tudo, seja pra qual lado estejamos indo. Ele sabia que essa música tinha que fechar o álbum, ele sabia que seria melhor acabar com uma possibilidade, uma dúvida, um talvez.

Tags:, , , , , , , , , ,

26/09/2016

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

Ariel Fagundes