Exclusivo | Prepare-se para mergulhar na essência interior de Júpiter Maçã

24/11/2016

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Rodrigo Laux

Por: Rodrigo Laux

Fotos: Reprodução

24/11/2016

Reportagem: Ariel Fagundes

Em dezembro de 2015, a música e a arte brasileira perderam um de seus personagens mais peculiares, criativos, ambíguos e talentosos dos últimos tempos. Com uma carreira musical iniciada ainda na pré-adolescência, o gaúcho Flávio Basso (ou Júpiter Maçã, Jupiter Apple, Woody Apple…) passou por inúmeras fases, desde a formação de algumas das bandas mais influentes do rock gaúcho até uma carreira solo que, o que teve de irregular comercialmente, teve de rica, inovadora e surpreendente.

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Flávio partiu cedo, mas a sua extensa obra e vida ainda trazem mistérios, nuances e lendas nunca antes reveladas. Após o lançamento de A odisseia: Memórias e devaneios de Jupiter Apple, onde Juli Manzi publicou algumas conversas que teve com o músico, quem assume a missão de esmiuçar sua trajetória são os escritores Cristiano Bastos e Pedro Brandt na obra Essência Interior – A Efervescente Vida & Obra de Júpiter Maçã. Cristiano é co-autor do livro Gauleses Irredutíveis (2001), autor de Júlio Reny – Histórias de Amor & Morte (2015) e diretor do documentário Nas Paredes da Pedra Encantada (2011), sobre o mítico álbum Paêbirú (1975), de Lula Côrtes & Zé Ramalho. Pedro é jornalista brasiliense, editor do site de quadrinhos Raio Laser e produtor do músico Plato Divorak.

Com previsão para ser lançado no segundo semestre de 2017 pela editora Artes & Ofícios, o livro já está em fase de produção e deverá explorar com uma profundidade sem precedentes o legado do ídolo cult psicodélico. Desde a formação do TNT e dos Cascavelletes nos anos 80, passando pela transição folk até a aclamada carreira solo, o livro trará à tona histórias que deverão surpreender até os fãs mais conhecedores do músico.

Para enriquecer e trazer credibilidade à história, Cristiano e Pedro estão contando com o apoio da família e de boa parte dos amigos e parceiros musicais de Flávio, que cederam desde documentos e fotos inéditas, até depoimentos reveladores sobre a sua vida. “Temos o apoio tanto da mãe (Iara Süessenbach) quanto do pai de Flávio (Délcio Basso), os quais foram muito atenciosos e prestativos”, conta Cristiano. “Estamos construindo uma verdadeira teia de informações que partem do personagem principal e passam por diversos outros que, aparentemente, não têm ligação com ele, deixando a condução da narrativa muito mais interessante e rica em conteúdo”, explica Pedro.

Flávio e sua mãe (Acervo Iara Suessenbach)

Flávio e sua mãe (Acervo Iara Suessenbach)

“O projeto gráfico do livro está sendo feito para contemplar a amplitude ‘tecnicolor’ de Flávio Basso. E o formato narrativo é da pesquisa bibliográfica, ou seja, em terceira pessoa, acolchoada por intensa e minuciosa pesquisa histórica e apuração junto a centenas de fontes. Já avisamos: muitos tesouros serão revelados”, avisa Cristiano. “Talvez os leitores se surpreendam com a afirmação, vinda de vários entrevistados, de que o Flávio era um cara um tanto quanto tímido. Ele também era paranoico e tinha mania de perseguição, acreditava que os outros, mesmo amigos próximos, estavam sempre tentando sabotá-lo. Além disso, elencamos uma série de músicas inéditas, algumas gravadas, outras apenas executadas em shows e ensaios”, revela Pedro.

Os autores não escondem a expectativa causada pela experiência de imersão na vida do artista. “Encaramos o Flávio como uma das maiores figuras do rock brasileiro, não apenas por sua obra – criativa, plural e repleta de grandes canções, muitas delas possuidoras de um tremendo poder de comunicação –, mas por todas as histórias que o circundam. Como personagem, ele é um prato cheio: ambíguo, mercurial, contraditório, enfim, uma epítome do rock”, afirma Pedro Brandt. “Eu diria que o mito Flávio Basso apenas está começando. É até difícil dimensionar, na verdade, o tamanho que essa mitologia alcançará no futuro. Isso porque muitas das obras que ele lançou têm como característica a atemporalidade estética, e isto é para poucos”, comenta Cristiano.

Pra você já sentir um gostinho do que está por vir, Pedro e Cristiano cederam com exclusividade à NOIZE as fotos inéditas que você vê aqui e um trecho do livro, referente à época em que Júpiter (Apple no caso) lançou o seu 2º álbum solo Plastic Soda (1999). O disco marcou um dos inúmeros momentos em que os fãs foram surpreendidos pela inquietude artística de Flávio, que revelou uma sonoridade totalmente diferente do seu aclamado álbum de estreia A Sétima Efervescência (1997). Confira abaixo o trecho do livro, cedido gentilmente pelos autores.

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Soda Plástica
Por Cristiano Bastos e Pedro Brandt

Joãozinho contava com 24 anos em 1955. Com poucas amizades, sem patrão ou residência fixa, o baiano andava triste e sem dinheiro pelas ruas do Rio de Janeiro. Se faltava grana, sobrava-lhe, porém, um grande talento para o violão e um jeito de cantar que, mesmo semelhante ao de Orlando Silva, soava singular. O jovem músico foi convencido pelo amigo Luís Telles, do conjunto Quintandinha Serenaders, a passar uma temporada em Porto Alegre. Ele, que reconhecia os dotes musicais de Joãozinho, acreditava que uns tempos na capital gaúcha levantariam a moral do cantor e violonista.

Telles instalou o amigo num quarto com banheiro no melhor hotel da cidade, o Majestic, onde hoje funciona a Casa de Cultura Mario Quintana. No local, o músico passava horas e mais horas praticando seu instrumento. Ensaiava mais do que canções, mas uma revolução particular que reverberaria pelo mundo em acordes dissonantes. Além de uma palinha aqui e uma canja ali em bares e festas, Joãozinho também deixou na memória dos porto-alegrenses uma apresentação no auditório da Rádio Gaúcha, na qual, para espanto e admiração de quem lhe viu e ouvi, antecipava uma novidade que em breve ganharia o nome de bossa nova.

O período sabático de João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira em Porto Alegre durou apenas alguns meses, do verão ao inverno daquele ano. Em 1962, ele retornou à cidade, já consagrado. Mas seus fãs tiveram de esperar mais de três décadas para voltar a vê-lo num palco da capital sulista.

O jejum terminou em 18 de outubro de 1996, em uma apresentação lotada no auditório Araújo Vianna. Outrora um espaço cultural a céu aberto, o local havia passado há pouco tempo por uma reforma que o deixou mais amplo e arejado, coberto por uma lona branca. Inaugurado no dia 4 daquele mês, o auditório testemunharia naquela noite seu primeiro grande show. João, um mito da música conhecido pela excelência e pela exigência irredutível com detalhes e, especialmente, com a acústica de onde se apresenta, duvidou que o novo Araújo fosse o local adequado para sua performance. Perguntou aos produtores se um teatro não seria mais aconselhável, mas acabou persuadido pela produção da viabilidade do local.

Diante de 3.200 pessoas, João, inicialmente acanhado, começou a sentir-se mais e mais confortável diante daquele público solene e respeitoso (que aguardou um atraso de uma hora e cinco minutos até soar do primeiro acorde de violão) para quem ele mostrava “pérolas de subversão, brasilidade, relaxamento, contemplação”, segundo palavras de Marcelo Ferla em texto de cobertura da apresentação, como “Brasil pandeiro”, “Estate”, “Desafinado”, “Wave”, “Eu sei que vou te amar”, “Chega de saudade”, “Pra que discutir com madame”…

Constariam do programa 20 músicas. Convencido pelos aplausos efusivos, João voltou ao banquinho e mostrou mais 11 canções, chegando a duas horas em cima do palco. Nada planejado, mas ali, numa troca carinhosa com a plateia, o cantor compensava os 34 anos distante da cidade que, no passado, o recebeu quando ele quase nada tinha a não ser a amizade dos amigos.

Também não tinha sido planejado. Mas diante de um dos gigantes da música brasileira, Flávio Basso passou por mais uma epifania. Até então, a bossa nova e a MBP eram ouvidas por ele apenas tangencialmente. A suavidade agressiva de João Gilberto lhe atingiu com um impacto imprevisível e fulminante. O baiano de Juazeiro passou a figurar em seu hall de ídolos da música.

Nos dias seguintes ao show, Flávio dedicou-se a aprender acordes de bossa. Mais do que aplicar-se na audição dos principais discos do estilo, foi acompanhado apenas de violão e intuição que Flávio forjou sua própria versão de bossa nova. Tal qual um João Gilberto intergaláctico, ele, mais uma vez, metamorfoseava-se. Sua psicodelia agora tinha um tempero bem brasileiro. Ainda que, contrariando outra vez as expectativas, fosse apresentada em outro idioma. Samba para inglês ver? Não. Surgia, enfim, Jupiter Apple.

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Júlio Cascaes lembra a cena: “Eu estava na Lancheria do Parque e ele chegou do show com a [ex-namorada de Basso] Fabi. ‘Bah, cara, acabei de ver o João Gilberto e me emocionei várias vezes. Aquela coisa do cara tocando meio desafinado, com a voz baixinha. Fiquei chocado’, ele me disse”. Marcelo Gross acredita que o episódio transformou o amigo. “De uma hora para a outra, o Flávio apareceu com aqueles acordes de João Gilberto que eu não sei de onde ele tirou. Ele virou outra coisa depois do show: virou o Jupiter Apple”, atesta o baterista.

Melhor dizendo, virou o Jupiter Apple do Plastic Soda, ou seja, mais uma personalidade sonora e estética e, tal qual suas transformações anteriores, de caráter não-definitivo, mas temporário, um retrato das inspirações daquele momento. A súbita obsessão de Flávio pelo bossa-novista casaria com alguns outros interesses musicais que ele logo descobriria na temporada em São Paulo, caso do jazz e das cantoras de voz suave, como Nina Simone e Françoise Hardy.

Mas essa nova persona – cantando macio, em inglês, algo bossa nova – foi, pouco a pouco, tomando conta até a metamorfose completa que pode ser conferida em parte do segundo álbum do artista. Entretanto, a mudança não foi imediata. Afinal, do show do cantor baiano no Araújo Viana até o fim das gravações de Plastic Soda passaram-se quase três anos. E, nesse meio tempo, surgiu todo um repertório (em português) mais alinhado às referências sessentistas comumente associadas a Júpiter Maçã – as canções criadas entre 1997 e 1998, posteriormente engavetadas em favor de suas primas voz-e-violão.

Veja abaixo Júpiter Maçã no programa Musikaos da TV Cultura em 2001, ano em que morreu seu filho Glenn:

Mas o disco que viria a ser Plastic Soda não estava conceitualmente pronto quando, em algum momento do segundo semestre de 1998, Flávio, Gross e Cascaes adentraram o estúdio Dreher (ainda em seu endereço antigo) para dar inícios às gravações. Ele surgiu aos poucos. Thomas Dreher, que havia participado das sessões d’A Sétima Efervescência, acredita que foi convocado para a engenharia de som dessa nova empreitada por conta do disco Campo e Lavoura, a estreia da banda chapecoense Repolho, dos irmãos Roberto e Demétrio Panarotto, gravado em 1997, da qual Flávio participou tocando teclado em algumas faixas. O clima de liberdade e experimentação vivenciado ali – no primeiro álbum que Thomas assina como produtor – era exatamente o que ele procurava.

Marcelo Birck, anos depois da exitosa parceria em “Eu e minha ex”, foi convidado para participar do novo projeto. “Ele queria uma coprodução, alguém de fora para dizer: ‘Olha, aqui eu acho que tu poderia fazer assim, fazer assado’. Porque eu acabei participando do Sétima também assim, informalmente, como um consultor”. Birck teria um papel importante tanto na edição de algumas faixas (“As letras eram maiores que as músicas, eu sugeri para ele cortar estrofes e deixar apenas o melhor”) como no aconselhamento quanto à performance vocal (“Cara, tu canta bem pra caralho, por que tu fica colocando tanta afetação? Foi uma das coisas que eu consegui fazer ele mudar nas faixas que eu produzi”).

Flavio entre amigos (Foto Ray Zimmer)

Nas primeiras sessões do novo disco foram registradas músicas recentes do repertório do trio: “Collectors inside colletion”, “The true love of the spider”, “Head-head”, “24 hours nude”, “Pendulum”, “Espectro limbo som” e uma versão para “Mathilda Mother”, música de Syd Barrett presente em The Piper at the Gate’s of Dawn, o primeiro LP do Pink Floyd – as três últimas nunca foram lançadas e permanecem inéditas. Dessas, “Collectors inside colletion” é a que melhor exemplifica o direcionamento bossa nova que Flávio queria para seu novo alter ego.

Pouco tempo depois do começo das gravações, a banda viajou para São Paulo para apresentar-se no Museu de Arte Moderna (MAM). Naquele 18 de dezembro de 1998 foi realizado o último show do trio formado por Júpiter Maçã acompanhado de Júlio Cascaes no baixo e Marcelo Gross na bateria. Na volta para Porto Alegre, sem dar grandes explicações, alegando apenas a vontade de fazer outro tipo de som, com outras pessoas, Flávio dispensou os dois músicos.

Júpiter Maçã (guitarra), Julio Cascaes (baixo) e Marcelo Gross (bateria)

“Fiquei com uma mágoa muito grande”, admite Marcelo Gross. “Eu e o Júlio tínhamos nos dedicado bastante para fazer acontecer. Eu larguei meu emprego para me focar na banda. Se tivéssemos continuado como trio e gravado aquelas músicas (em português) teríamos um disco melhor que o A Sétima Efervescência. O Flávio, conscientemente, abortou isso – assim como ele abortou o TNT e os Cascavelletes, ele abortou o Júpiter Maçã, pois queria se tornar o Jupiter Apple”.

Continua…

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24/11/2016

Rodrigo Laux

Rodrigo Laux