Exclusivo | Mona e Outros Mares deleta os limites dos gêneros no EP “Entre Espelhos”

11/07/2016

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Andressa Crossetti/Divulgação

11/07/2016

Que imagens se formam entre dois espelhos quando seus vidros se encostam?

A pergunta nos convida a nadar em um oceano de questionamentos e possibilidades assim como o EP de estreia da Mona e Outros Mares. Chamado Entre Espelhos, o material com quatro faixas está sendo lançado hoje pela NOIZE em parceria com a Lezma Records.

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Entre Espelhos já está disponível no Spotify e para download gratuito no site da Lezma. Ouça abaixo:

Entre Espelhos foi produzido ao longo de oito meses no home-estúdio de Gustavo Coutinho, que, além de ter feito a mixagem e masterização, dividiu com Mona e Outros Mares a composição das duas primeiras faixas, “Contato” e “Amor”. “Logo no primeiro dia em que nos juntamos, surgiu a base de ‘Contato’. De algum modo, ela representa a potência criadora desse nosso encontro”, diz Mona na entrevista que você lê na íntegra abaixo. “Compomos não só as músicas, mas também esse estar junto criativo, essa relação ótima de sala de estar”, lembra.

O resultado do encontro foi um EP que provoca o ouvinte a refletir sobre a imaterialidade das fronteiras que se erguem na construção dos gêneros. “Um dos esforços mais importantes no momento de compor a letra é o de não colocar nenhum marcador de gênero no eu-lírico. O que nos interessa é explorar novas possibilidades estéticas e existenciais, descobrir maneiras de se elaborar e se (des)construir sem ser passando pelas categorias naturalizadas de ‘homem’ e ‘mulher'”, explica Mona.

Nesse sentido, as bases “transeletrônicas” do EP, como a banda descreve, se tornam uma plataforma instrumental reforça os questionamentos da Mona, conforme ela diz: “Há dificuldade em definir um gênero musical para o nosso trabalho, sobretudo, queremos sempre ter como horizonte certo ecletismo. ‘Trans’ vem desse trânsito constante e desse transbordamento dos gêneros. Por exemplo, em Entre Espelhos a gente pode encontrar sonoridades que vão do dubstep à valsa.

“Tudo isso só foi possível pela grande plasticidade que a música eletrônica nos dá”, segue Mona, que defende abertamente a concepção de um mundo onde já não faz mais sentido querer evitar o relacionamento íntimo com as máquinas. “Já somos todos ciborgues: celulares se tornaram extensões de nossos corpos, fazemos cirurgias plásticas, modificamos nossa percepção com ácidos sintéticos, utilizamos das mais diversas próteses e até mesmo transamos com máquinas (de dildos a máquinas de lavar roupa). Acredito que a palavra ‘ciborgue’ nos remete muito mais a um diagnóstico do nosso tempo do que a uma utopia (ou distopia?) futura”.

Leia abaixo a entrevista completa.

Como foi o processo de produção do EP Entre Espelhos? Quanto tempo durou? Onde foi gravado?
O EP foi produzido no home-estúdio de Gustavo Coutinho. O processo todo de produção durou entre sete e oito meses, com encontros nos finais de semana. A mixagem e a masterização foram feitas por Gustavo durante um mês, mais ou menos. Conhecemo-nos através de Camilla Merlot e Leonardo Fazio, amigos em comum, que também têm uma banda e que trabalharam com Gustavo anteriormente na produção de seus materiais. Eu e Gustavo sentamos um dia para conversar em sua casa e lhe contei sobre o que eu tinha em mente para o EP. Inicialmente, o projeto era compor uma trilha que seria tocada em playback para que eu pudesse estar completamente concentrada na performance corporal e vocal nas apresentações. Tendo esse eixo performático como disparador do processo de criação das músicas, as letras e melodias foram surgindo, sobretudo, para elaborar minhas vivências em relação às questões de gênero, passando por um imaginário alienígena, monstruoso, onírico e em constante diálogo com o mundo pop.

Logo no primeiro dia em que nos juntamos para conversar, surgiu a base de “Contato”. De algum modo, ela representa também a potência criadora desse nosso encontro. Eu trazia ideias e conceitos a serem abordados, algumas influências ou uma base composta no violão, então sentava-me com Gustavo e compunhamos toda a parte instrumental com os sintetizadores. Explorávamos, experimentávamos e viajávamos, descobrindo muitas vezes por acaso as sonoridades que queríamos. Compomos não só as músicas, mas também esse estar junto criativo, essa relação ótima de sala de estar. Em algumas faixas (“Amor” e “Lounge”), contamos também com a ajuda de Camilla e Leonardo com arranjos de baixo e guitarra.Queríamos explorar uma sonoridade que transitasse entre o orgânico e o sintético.

Depois de concluída a parte instrumental, escrevi as letras e elaborei os vocais, pensando não só na música enquanto unidade, mas também enquanto componente de um conjunto que era “Entre Espelhos”, tendo sempre em mente o que ia ser trabalhado e explorado performaticamente nas apresentações. Atualmente, estamos entrando em uma nova fase, construindo uma formação em banda para que a performance seja expandida também para a execução da música ao vivo. Mona encontra outros mares: Leonardo Fazio e Camilla Merlot. A ideia é começar a explorar os instrumentos enquanto próteses de corpos ciborgues se construindo e se explorando pela performance e pela música.

Você descreve sua música como “transeletrônica”. Poderia explicar o que é esse conceito?
Há dificuldade em definir um gênero musical para o nosso trabalho e, sobretudo, queremos sempre ter como horizonte certo ecletismo, uma possibilidade de transitar entre estilos e gêneros livremente. Não ser uma coisa só, fechada numa definição, numa categoria. Trans vem daí, desse trânsito constante e desse transbordamento dos gêneros. Por exemplo, em Entre Espelhos a gente pode encontrar sonoridades que vão do dubstep à valsa.

É importante reconhecer que tudo isso só foi possível pela grande plasticidade que a música eletrônica nos dá. Poder samplear qualquer som, transformar literalmente qualquer coisa em música, junto da infinidade de possibilidades que temos com os sintetizadores (não só em si mesmos mas também em sua potencialidade de transformar um som orgânico)… Tudo isso nos encanta e faz parte do que entendemos por música. Não achamos que fazer música se trate somente de dominar um instrumento ou um estilo, mas de se relacionar com o som – qualquer que seja – enquanto matéria-prima, enquanto possibilidade de elaboração estética e poética do mundo.

Ora, até mesmo o corpo pode virar um instrumento musical.

Entre Espelhos, pelo sintético, visa alcançar o orgânico da performance enquanto dar-se corpo errante, em improviso, indo de encontro com quem assiste. Ou seja, transeletrônica vem no sentido, também, de reiterar essa mistura entre o sintético e o orgânico, de ir diluindo cada vez mais a separação entre uma coisa e outra, e de repensar até mesmo a divisão epistemológica entre Natureza e Tecnologia. Isso nos é muito caro. Reconhecer, por exemplo, que o discurso que naturaliza os sexos não passa de artifício (como todos os outros discursos – e que, por isso, a única coisa que podemos chamar de natureza humana é sua articialidade) é um dos movimentos filosóficos que aponta pra esse conceito. A tecnologia também produz a natureza.

Como o debate sobre gêneros aparece na sua obra? Na sua visão, como esse debate tem evoluído no cenário da música brasileira?
Mesmo que as questões de gênero sejam tema central no processo de criação das músicas, elas não falam de gênero de maneira direta, óbvia e explícita. Inclusive, um dos esforços mais importantes no momento de compor a letra de uma música é o de não colocar nenhum marcador de gênero no eu-lírico. O que nos interessa é explorar novas possibilidades estéticas e existenciais, descobrir maneiras de se elaborar e se (des)construir sem ser passando pelas categorias naturalizadas de “homem” e “mulher”. Pensar (e sobretudo viver) o(s) gênero(s) pelo corpo em relação, questionando também a noção de um “eu” fechado, isolado, concluído, individualista. Queremos a singularidade para além da lógica identitária que só afirma verdades prontas sobre si, em sua possibilidade de (re)existência e de dar as mãos para viajar junto: queremos um corpo prostético e ciborgue, no sentido de diluir o limiar na relação “eu” e “outro” a uma processualidade de eterna transformação e de expansão da noção do que é ser humano para além da lógica binária da existência. Por isso nos interessa tanto o imaginário alienígena, o creepy, o não-humano, o pós-humano, o mostruoso, o bizarro, o surreal e o onírico. Queremos mostrar, sobretudo, que esse “monstro” (lugar em que as pessoas trans, queer e intersex são compulsoriamente colocadas ao questionarem a naturalidade do ser homem e do ser mulher) também tem direito à humanidade.

Não sou mônada, nem só monstra, sou mona sempre em busca de outros mares… Não só onde possa se viver em eterna transformação e relação com a alteridade, mas onde se possa minimamente ter condição de existir.

É nesse sentido que eu vejo esse debate evoluindo no cenário da música brasileira: atualmente temos mais mulheres, mais bichas, mais travestis, mais pessoas trans, não-binárias e queer fazendo música, e isso tem muito a ver com a democratização do acesso aos meios de comunicação. Temos não só mais condições de existir por conta de avanços nas políticas públicas, mas temos também mais direito à voz e à fala de modo criativo, estético e político como a arte e a música nos permitem. Na cena atual temos tantos nomes como As Bahias e a Cozinha Mineira, Jaloo, Liniker, Johnny Hooker, Banda Uó, Rico Dalasam, Lay, MC Linn da Quebrada, Juprincess do Bairro… E vários desses nomes vêm da cena independente, e isso tem a ver com ser cada vez mais fácil fazer música e fazer as pessoas ouvirem nossa música. Enfim, somos muites, e seremos cada vez mais. Existindo, resistindo e construindo novos jeitos de ser gente.

Não podemos nos deixar abater e imobilizar pela onda reacionária que está despontando em nosso país. Como o próprio nome já diz, eles só ganham força enquanto reação. A revolução e a subversão já está sendo feita, já está dando suas caras e já está balançando as estruturas e instituições heterocisnormativas, sexistas e machistas vigentes. Precisamos mais do que nunca unir forças e resistirmos juntes. Se Dzi Croquettes conseguiram em plena ditadura purpurinar o Brasil, hoje nós podemos muito mais. Fora Temer!

A interferência do mundo digital nas relações humanas inspira suas composições?
Certamente. O advento da computação em nuvem e outros meios de comunicação como o YouTube permite a troca entre muitas culturas diferentes. Estamos sempre conectados a quantidades infinitas de informação e dados do mundo todo. Apesar de todas as problematizações pertinentes a seleção e filtragem da informação a que somos expostos, estamos nos relacionando em rede. Não é mais possível pensar num eu isolado do mundo. E essa relação com a alteridade é o que constitui a maior parte do nosso ponto de vista sobre a arte.

Além disso, o estabelecimento de relações baseadas em perfis virtuais e contato indireto permite a invenção criativa e construção de uma auto-imagem e de uma personalidade mais livre, que é fundamental para o nosso desenvolvimento artístico. Ora, já fomos fakes escritores no Orkut, já nos inventamos diversos nomes e perfis para além daquilo que está naturalizado em nossa certidão de nascimento. Estamos constantemente nos (re)inventando em rede. E isso com certeza faz parte da filosofia da nossa arte.

Será que, no futuro, seremos todos ciborgues sem diferenciação de gênero?
Já somos todos ciborgues: celulares se tornaram extensões de nossos corpos, fazemos cirurgias plásticas, modificamos nossa percepção com ácidos sintéticos, utilizamos das mais diversas próteses e até mesmo transamos com máquinas (de dildos a máquinas de lavar roupa). Acredito que a palavra ciborgue nos remete muito mais a um diagnóstico do nosso tempo do que a uma utopia (ou distopia?) futura. Acho que pra dar conta dessa reflexão é bom ler O Manifesto Ciborgue, da Donna Haraway, uma feminista muito importante e que tem influenciado muito nosso pensamento e obra.

E por falar em utopias e feminismo, acredito e luto, sim, pela igualdade de direitos entre homens e mulheres (cis ou trans) e pra todo mundo que de algum jeito não se encaixa nessas categorias. Não quero uma gramática de gênero de apenas dois termos implicando em relações hierárquicas, mas também não acredito nem luto por um mundo sem diferenciação de gênero. Ao contrário, se tenho uma utopia, ela tem mais a ver com um mundo onde a diferenciação de gênero seja uma gramática que possa de fato abarcar todas as singularidades ao invés de apagá-las num discurso onde “somos todos iguais”.

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11/07/2016

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

Ariel Fagundes