Exclusivo | Novo single de Bonifrate une psicodelia ao cancioneiro do séc. XVI

19/11/2019

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Thalita Silva/Divulgação

19/11/2019

Depois de muitos anos em cima deste projeto, finalmente chegou a hora de Bonifrate começar a soltar os primeiros registros de Mundo Encoberto. Seu novo disco sai no Bandcamp no dia 29 de novembro e a pré-venda digital já está aberta ali. Veja abaixo o vídeo de lançamento de seu primeiro single, “Mundo Encoberto (Parte I)”:

O álbum que está chegando é uma peça que reúne em si vários espaços temporais diferentes. Ele começou a nascer na cabeça do músico entre 2006 e 2007, época em que tocava com o grupo Supercordas (2003-2016). Mas, na verdade, as letras desse disco foram escritas muito antes, mais precisamente no início do século XVI.

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Bonifrate construiu esse álbum inteiro musicando versos escritos pelo cronista e poeta português Garcia de Resende (1470-1536). O gatilho para o disco veio dos comentários de Resende sobre uma profecia apocalíptica que alguns astrólogos espalharam pela Europa. A tese era de que, devido a uma conjunção de sete planetas no signo de Peixes em fevereiro de 1524, haveria um segundo Dilúvio de proporções bíblicas assolando o planeta.

Capa de “Mundo Encoberto”

Felizmente, a profecia não se cumpriu, mas foi justamente esse episódio que desencadeou o processo criativo de Mundo Encoberto. Como ele mesmo explica na conversa abaixo, Bonifrate começou a gravar esse disco em 2011 e o projeto demorou tanto para se desenrolar porque havia a ideia de apresentá-lo como um grande concerto orquestral acompanhado de um teatro de bonecos encenando a narrativa. Quem sabe um dia?

Por enquanto, leia nosso papo abaixo e entenda melhor esse disco que une o passado, o presente e o futuro.

Comenta um pouco mais sobre o começo do projeto, vc disse que começou com sua pesquisa acadêmica, né? O que você estava pesquisando e como percebeu que esses textos do Garcia de Resende poderiam ser musicados?
Eu pesquisava os escritos de um frade chamado Antonio de Beja, e um deles de 1523 tratava dessa controvérsia sobre uma conjunção astrológica que rolaria em 1524. A astrologia era um lance bem na moda nessa época, nobres e dirigentes se cercavam de astrólogos que davam conselhos sobre todos os seus passos e estratégias, muitas vezes de forma oportunista e eram muito criticados nesse sentido. Daí que quando começaram a pregar por toda a Europa que haveria um segundo dilúvio de proporções bíblicas quando se consumasse essa conjunção, muitas pessoas se desesperaram, construíam barcos e buscavam as montanhas mais altas pra escapar da catástrofe. Por outro lado, muitas obras foram escritas pra tranquilizar os ânimos e dizer que esse a influência dos astros era algo que inclinava os acontecimentos, mas não os determinava. Foi pesquisando sobre essa conjunção e tudo o que se escreveu sobre a profecia que eu topei com com uma epígrafe que citava os versos que abrem o disco, que falavam exatamente desse episódio, e de como acabou não caindo nem uma garoa em fevereiro de 1524. Fui atrás dessa obra do Garcia de Resende e fiquei imediatamente enfeitiçado por algumas das estrofes, que logo me soaram como música, e daí começou esse longo processo de pensar um álbum, provavelmente em 2006 ou 2007.

Garcia de Resende foi muitas coisas em sua vida, incluindo o cargo de secretario real de D. João II, e talvez sua maior contribuição histórica tenha sido o Cancioneiro Geral, que é a compilação pela qual a gente conhece todas aquelas cantigas de amor e cantigas de amigo medievais portuguesas que às vezes se ensina em literatura na escola. Mas também era um trovador da corte da Rainha D. Leonor, assim como Gil Vicente e Sá de Miranda, que ficaram um bocado mais conhecidos que ele. Depois que ele morreu, publicaram uma nova versão da sua Crônica Del Rei D. João II, que trazia como apêndice essa Miscelânea, toda escrita em redondilhas, que narrava acontecimentos que ele viu ou ouviu durante sua vida. A obra é bem extensa, e eu tirei dela apenas alguns fragmentos, que fui juntando de forma a criar uma outra narrativa, descontextualizada da original e selecionando as partes mais surreais e impactantes.

Você vê alguma relação entre o período descrito nos textos musicados e os tempos atuais?
Algumas obras dessa época, que talvez se possa dizer que era pré-barroca, trazem já alguns elementos do barroco que a meu ver são sempre atuais. O papo do desconcerto do mundo, de como está tudo de cabeça pra baixo em termos de valores e das relações de poder. Há anos que eu gostaria de já ter lançado esse disco, mas agora em 2019 ouço versos como “vimos os bons descaídos e os maus muy levantados, virtuosos desvalidos, os sem virtudes cabidos por meios falsificados” e agradeço ao cosmos pelo atraso, porque é um momento em que esses versos soam como algo que descreve nossa atual realidade política de uma forma impressionante. A história que eu gostaria de escrever é uma história comprometida com o presente, que busca elementos do passado pra iluminar de alguma forma os fundamentos do que acontece hoje. Acho que o álbum traz muito disso, ainda que de forma fragmentada e numa leitura basicamente poética e musical.

Comente por favor o processo de produção do disco e vídeo. Como foi?
Depois de fermentar um bocado a ideia inicial e compor algumas partes, eu comecei a gravar em 2011, logo depois de ter terminado [o disco] Um Futuro Inteiro. A ideia inicial era fazer um disco bem prog rock, com uma ou duas faixas apenas, que trariam os segmentos todos emendados como o Thick As A Brick (1972), do Jethro Tull, que é um disco que eu curtia bastante na adolescência. Apesar de depois acabar decidindo separar as partes em faixas, aquele espírito prog continuou ditando a estrutura do disco. Talvez nem tanto seu estilo, que está mais pra um misto de folk, kraut-rock, indie-rock, noise, esse lance que eu sempre tenho feito, mas a fluência direta entre uma canção e outra, as texturas longas, temas que se repetem ao longo do álbum, nisso tudo ele é bem progressivo. A gravação foi exatamente como qualquer outra dos meus álbuns, tudo feito em casa, com pouco recurso e muita coisa passada na fita cassete.

Um dos motivos pelos quais eu acabei não terminando e lançando nesses últimos anos é que sempre imaginei um formato mais espetacular pro lançamento. Algo como ter um teatro de bonecos encenando a narrativa num grande concerto orquestral num teatro antigo (risos), mas claro que acabou não rolando nada próximo disso. Então eu parti pra essa ideia de editar um vídeo que cobriria toda a primeira parte, caseiro e lo-fi como tudo que eu faço, só com a câmera na mão ou no tripé, um figurino esquisito, minha companheira Thalita dando uma força, e o sítio onde moramos como cenário. Juntei imagens antigas às filmagens, e alguns desenhos originais do Davi Cananéia, que é um artista de Paraty que admiro há tempos. Bati bastante cabeça com a edição, já que não sou profissional disso, e acabou sendo um grande aprendizado. E assim finalmente consegui fechar Mundo Encoberto, que alguns amigos já zoavam sobre ser o “Disco Encoberto”. É um álbum bem fora da curva na minha discografia, que demorou bastante pra ser feito, e agora estou livre pra continuar escrevendo e gravando canções todas minhas mesmo.

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19/11/2019

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

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