Natural de Ilhabela, litoral norte de São Paulo, Acauã lança hoje nas plataformas digitais seu primeiro disco. Em Canoeiro, o cantor e compositor acerta-se em seu “não-lugar” e começa aceitar pra si a condução do trabalho. Por não-lugar, entenda o fato de mesmo que o disco traga seu nome, Acauã é resistente e taxativo ao apresentar o trabalho:“Trata-se de uma construção coletiva com uma parte importante de cada um em complemento a minha” diz. No disco, exceto “Chuva de Olorum”, de Michel de Moura, todas as letras são de Acauã.
O conheci pessoalmente há exato um mês, na casa do Michel, em São Paulo. Nesse dia, fizemos a audição do disco e ele, acompanhado do Yuri Braga, do Fernando Fidura e do Michel, comentou o processo de construção de Canoeiro. Acauã que tem forte influência de rap e funk, chega com uma banda de sete músicos experientes e que, por acreditarem, o reverenciam com a entrega de suas criações. Assim, ele contraria a lógica do mc que surge sozinho a partir das bases de um produtor muitas vezes. Além de Michel (guitarra e voz), Yuri (percussão) e Fidura (guitarra e voz), o acompanham neste trabalho Fernando Santive (cavaco e bandolim), Rodrigo Dário (mpc e programações), Thiago Babalu (bateria) e Thiago MLK (baixo).
Após o EP de estréia Salve Paim (2017), em que trouxe muito a pesquisa de palavras em uma temática folclórica com resgate da mitologia nacional, Canoeiro está baseado em uma poesia marginal e política. O jogo com as palavras ainda aparece, como no caso de “Aurélio” e “Fubá”. “Enquanto Salve Paim estava relacionado a um saci urbano, da periferia, o disco [Canoeiro] bate em outras coisas, refletindo um pouco sobre a dificuldade de viver nos tempos de hoje”, explica Acauã.
Além da sua relação com o mar e de morador da ilha, a inspiração de Canoeiro parte do retrato do indivíduo – canoeiro – assim como ele é: um navegante. “É difícil navegar o mar de canoa, assim como são difíceis de navegar os mares sociais contemporâneos hoje em dia”, diz. Gravado no Estúdio Sunrise, em Araraquara, o disco é fruto de uma imersão de quatro dias pelo grupo em um processo contínuo. Definido por Michel, o trabalho foi intenso, tranquilo e produtivo. “Chegamos ao ponto de enquanto um dormia, outro seguia a gravação, fruto da boa relação entre todos” conta Michel.
Ouça Canoeiro em primeira mão e entre na Canoa com Acauã, Yuri, Michel e Fidura lendo o papo que batemos com eles:
Como você conseguiu chegar com uma formação grande, orgânica, de músicos experientes e que, sabemos, bem ocupados?
Acauã: Fidura e eu somos amigos desde criança. Crescemos juntos na ilha. Mais tarde, já na adolescência, ele veio pra São Paulo e eu fui pra Santos, onde morei por três anos. Depois, já em São Paulo, nos reencontramos e passamos a morar juntos em uma mesma pensão só com o pessoal da ilha. Foi nessa época que eu mostrei minhas primeiras letras para o Fidura. Era algo bem amador, com beats que eu pegava da internet.
Fidura: Sim. Foi o nosso primeiro contato, de querer fazer algo juntos. O Acauã sabia que eu tocava violão, canção e bossa, então ele falou que tinha uma ideia para fazer algumas releituras do Dorival Caymmi, que seria desfragmentar as letras do Dorival e cantar em rap, fazer uma mix orgânica, misturar uma música em outra colocando uma coisa autoral ali. Nessa época, conheci o Michel durante uma apresentação minha com a Fernanda Broggi na USP. Foi aí que ele convidou a Fernanda para participar da NÃ. Ficamos amigos e logo apresentei o Acauã para o pessoal. Então, depois do processo do lançamento do disco da NÃ, começamos de fato a trabalhar nas músicas do Acauã, já com um approach dos demais músicos da banda. [Além de Michel, Thiago Mlk e Thiago Babalu integram a a banda NÃ que prepare se para lançar novo disco em breve; Fernando Fidura, junto com a Fernanda integram a Alquifonia – que lançou disco recentemente].
E como foi o processo de feição a partir de daí?
Acauã: O primeiro foi o Michel. Quando rolou de a gente se encontrar, eu achava um pouco estranho ainda. Eu fui aprendendo a fazer com eles. Com o Michel e o Fidura, nós permanecemos por um tempo compondo o que viriam a ser as bases dos Eps. A gente se encontrava e tentava fazer umas coisas que eu achava estranhas. Foi um negócio que eu aprendi a ouvir. Não tem muito silêncio, tem bastante barulho, diferente de uma base, principalmente essas bases, relacionando ao vaporwave, que normalmente são mais simples.
Legal. Bom você falar disso, pois ao chegar com uma banda, existe espaço e vontade em fazer algo com menos músicos, talvez com um produtor?
Acauã: O trabalho com beats me chama atenção. É outra coisa. Não é mais nem menos, só é diferente. Eu sempre acompanhei os beatmakers, é o caminho natural de um mc. Eu acho isso bonito também, e desejo trabalhar em algum momento com menos gente, até por conta da necessidade.
Michel: Ele sabe fazer sozinho e na hora necessária assim vai ser. Uma banda com sete pessoas é uma guerra pra acertar as agendas. Sempre digo para ele não perder show por causa de um ou outro não poder. Agende e na hora faça com quem estiver disponível. Como foi no Vento Festival do ano passado, onde tocamos Acauã, Fidura e eu. Por isso também que a gente não considerou botar um nome como “um projeto”. A gente é banda de apoio, a criação é coletiva, mas o trabalho é dele. Todos se mobilizaram por ele.
Eu sinto uma certa resistência da sua parte em assumir este trabalho pra si, não?
Acauã: Seria prepotência falar que o trabalho é meu. Apesar de gostar da minha parte, que são as letras, as bases são lindas. É muito difícil você encontrar alguma coisa assim. Por causa da musicalidade de todo mundo. Todos têm parte no disco. Algumas músicas partiram de mim, mas a maioria não. Viajando nas galáxias da vida, por exemplo, era um funk americano, meio James Brown. Olha o que virou. Isso não partiu de mim, partiu do Michel, do Fidura, do Yuri, do Babalu, que viram a possibilidade naquele funk de ir pra outro lado. A partir do momento em que eu entrego a letra lá e como ela é pra mim, não tem o que eu possa fazer com eles. É a escuta de cada um em cima daquilo. A ideia de todos é o que vai dar forma às músicas. É como no Ep Salve Paim, que no começo eu achava estranho. Foi quase como um destrave, quando eu aprendi a ouvir. ‘Oh, a música não é só isso’. Os caras me ensinaram muito a ouvir música. E eu sou grato por isso. Eu não acho que música é só isso, nem acho que o que eu escutei até ali seja descartado a partir desse momento, pelo contrário. Com este disco alcançamos realmente uma construção muito coletiva.
No disco, a sonoridade explora campos que o tiram da posição de um mc. Assim como no Ep, você explora a construção texto para além da ideia a ser passada. Algo como rap com canção.
Acauã: Essa identificação da estética do texto foi algo que me foi apontado pelo Michel, pois pra mim era apenas um resgate, de várias palavras que a gente não usa e que vão se perdendo com o tempo.
Michel: Resulta na mesma coisa, que é a busca pelo vocabulário. Mas diferente de um rapper, a linguagem não está ligada a uma região ou a ideia da quebrada. Ele não pode se apropriar dessa linguagem que não é a dele, isso também pela trajetória de vida. Com o texto ele se afasta desta condição. É uma construção que caracteriza uma migração muito recente, como foi feita pela família dele. Acho interessante pois, a partir da influência de rap, ele constrói com outras referências. Isso tem a ver até com o nome “Canoeiro”, em que mais do que uma identidade, aponta para um processo de passagem, de transformação. Quem ouvir talvez pode identificar a linguagem, a prosódia próxima da fala, uma coisa de quem canta muito próximo da fala. Isso é o que caracteriza a ideia de rap, alguém que canta com uma melodia muito próxima da fala. Mas é canção.
Comentando duas músicas que me saltam nessa primeira audição, em “O Time”, talvez minha preferida desta primeira audição, você traz o coletivo.
Acauã: Poxa, que bom que você gostou. Ela é uma auto afirmação, um aviso que a gente tá na vigília, de olho no que está acontecendo.
Yuri: Nós estamos juntos, na rua, fazendo coisas por aí.
E tem “Chuva de Olorum”, única letra que não é sua, e que é cantada pelo Michel.
Acauã: Sim, essa música é um presente.
Michel: Foi uma música que fiz para o disco e que construímos os arranjos coletivamente. É sobre a importância do movimento e da impermanência da vida que tem a ver com a própria trajetória do Acauã. O verso de fechamento “almas não evaporam, não vai haver chuva de Olorum” é na linha de que nossa história continua sob nossos pés, soterrada, longe do céu cristão.
Para ficar por dentro do trampo do Acauã, acompanhe a página oficial dele no Facebook.
Canoeiro (2018)
01. Chama a nave
02. Viajando nas galáxias da vida
03. Menores bolados
04. Aurélio
05. O time
06. Dia dos namorados
07. Canoeiro
08. Rediscutindo a psicodelia
09. Pras Marias e Arlinda
10. Fubá
11. Matriz
12. Brasil Colônia
13. Chuva de olorum
14. Inflação dos sonhos