Exclusivo | Um papo com o diretor do doc sobre o lendário Festival de Águas Claras

25/02/2019

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Brenda Vidal

Por: Brenda Vidal

Fotos: Divulgação/Acervo Pessoal

25/02/2019

Foi o ímpeto de dois jovens – separados por um lapso geracional de 30 anos – que deram o start para dois grandes sonhos que tomaram formas concretas: um como um dos fenômenos mais revolucionários da cultura e da música brasileira; o outro, resgatando a memória do primeiro e apresentando-a às novas gerações.

O “Woodstock brasileiro”, como ficou conhecido o Festival de Águas Claras, iniciou lá em 1975, com o desejo quase inocente de Leivinha, jovem com 22 anos na época, que abriu as portas da fazenda da família para realizar o que seria um dos maiores e mais contraculturais festivais de música no Brasil. Em 2007, Thiago Mattar ouviu as histórias do pai sobre o festival e fez da vontade de contar essa história um projeto pessoal. Deu certo, e agora ele reconta esse fenômeno em detalhes no documentário “O Barato de Iacanga”, em parceria com a produtora bigBonsai e o Canal Curta.

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O Festival de Águas Claras teve edições nos anos de 1975, 1981, 1983 e 1984, na propriedade rural da família de Leivinha em Iacanga, no interior do estado de São Paulo. Em cada evento, pessoas de todos os cantos do país passavam três dias vivendo em comunidade, baseadas nas leis do “paz e amor” do movimento hippie ao som de uma programação histórica com apresentações de Raul Seixas, João Gilberto, Walter Franco, Jorge Mautner, Gilberto Gil, entre outros. Estima-se que, na primeira edição, o público superou 15 mil. Um sopro de vanguarda e liberdade de expressão em plena Ditadura Militar.

Recuperando, recontando e resgatando os fragmentos desse ato histórico: foi assim que o diretor Thiago Mattar passou os últimos dez anos. O documentário foi lançado mundialmente em uma exibição no festival de cinema Seeyousound, em Turim, na Itália, em 28 de janeiro, e deve ser exibido no Brasil no segundo semestre.

Tão instigante quanto a história do Festival de Águas Claras são as histórias que deram forma ao documentário. Na sequência, você confere o papo exclusivo que batemos com Thiago Mattar e fotos raras das edições.

Palco do festival em 1983. Foto: Calil Neto.

Como nasceu a vontade de fazer um documentário sobre o Festival Águas Claras? Quando esse desejo passou a tomar forma de um projeto?

A ideia veio logo cedo, ainda na adolescência, mais de dez anos atrás, por volta de 2007, quando meu pai- que nasceu em Iacanga- me contou sobre o festival. Morava com meus pais no interior de São Paulo e estava assistindo ao DVD do filme do Woodstock. Lá pelo meio do filme, meu pai passa na sala e diz um troço assim de longe “Uhm, eu fui no Woodstock brasileiro” e saiu. Bom, sempre achei meu pai meio louco. Só que daquela vez eu fiquei realmente intrigado com aquilo que ele falou. “Ele tá falando sério?”, pensei. Passou um tempo e eu fiquei com aquilo na cabeça. Fui pesquisar sobre o assunto. Não achei nada na internet. Nada. Quer dizer, tinha só um blog, de um senhora chamada “Sétima Lua”, que reunia fotos e relatos de pessoas que tinham ido aos festivais. A partir dele que eu comecei a ver que aquilo era real. Talvez na mais longa conversa que tínhamos tido até então, meu pai me contou tudo que sabia sobre os festivais: os artistas que tocaram, as dificuldades e as lendas que envolviam a história do festival. Mas a maior surpresa pra mim, e que me ajudaria muito no desenvolvimento do filme, foi saber que ele era primo distante do cara que tinha organizado, o Antonio Checchin Júnior, que por ser barbudo, cabeludo e parecido com o jogador do Palmeiras, todo mundo chamava de Leivinha. Meu pai marcou e um dia o Leivinha saiu do Mato Grosso, onde ele já morava e mora até hoje, pra visitar a gente. Quando ele chegou, foi muito louco. Ele me confiou todo o material que tinha, olhou pra mim e disse: “Cara, eu tinha 22 anos quando fiz o primeiro festival. E ninguém acreditava que eu ia conseguir. Você tá com 20, né? Eu acredito que você vai fazer esse filme”. Porra, aquilo pra mim foi muito forte! Entrei na faculdade de jornalismo determinado a sair de lá com um documentário. Eu pegava equipamento emprestado de todo mundo, saía gravando com todos que falavam que tinham ido ao festival, de artistas a pessoas da cidade; viajei a região, falei com gente que trabalhou na produção, etc. Nem sabia, mas o que eu estava fazendo era uma pesquisa filmada que me ajudaria lá na frente. Acabei a faculdade e aquilo ainda era só um projeto. Não rolou. Eu tinha reunido tantos recortes, documentos, fotos, fitas do festival, mas o filme ainda era um sonho na minha cabeça. Eu me sentia perdido, um fracasso. Aí que entra um cara que, sem ele, esse filme poderia muito bem nunca ter saído da gaveta, o Marcelo Machado, diretor do documentário Tropicália. Um ídolo meu que nunca pensei que fosse conhecer e ainda mais trabalhar junto. Cheguei nele num momento muito foda da minha vida, de muita incerteza e ele foi muito generoso; comprou a briga comigo, foi meu consultor e me apresentou pra galera da produtora bigBonsai que abraçou o filme comigo. Tive muita sorte de encontrar essas pessoas.

Apresentação de Walter Franco no Festival de Águas Claras em 1983. Foto: Calil Neto.

João Gilberto tocando no Festival de Águas Claras em 1983. Foto: Calil Neto.

Egberto Gismonti em 1983. Foto: Calil Neto.

Como foi o processo de produção do doc? Quais foram os principais desafios?

Os desafios foram muitos, muitos mesmo. Imagina um diretor estreante fazendo um filme de arquivo com alguns dos maiores nomes da nossa música. Complicado, desde o começo, sempre foi um projeto ambicioso, diria até megalomaníaco. Um dos primeiros desafios foi a grana também pra comprar imagens, pagar direitos. A gente tinha um orçamento curto. Outro, a dificuldade para organizar aquela porrada de material em um filme de uma hora e meia. Na verdade, esquece o resto: esse foi meu maior sofrimento, sem dúvida. Muita coisa boa ficou de fora em benefício da história. Quem sabe um dia a gente não consegue espalhar mais desse material por aí de uma outra maneira? Seria incrível. Um dos materiais é o show completo do João Gilberto em 1983, dirigido pelo Beto Ruschel, que é uma das coisas mais lindas já filmadas no país e a [TV] Band, que detém as imagens e exibiu isso na TV apenas na época do festival, está comendo bola de não lançar isso no mercado.

Sandra de Sá, 1983. Foto: Calil Neto.

Público na edição realizada em 1983. Foto: Calil Neto.

Qual a importância do Festival nas décadas de 70 e 80, quando ele surgiu, e nos dias de hoje?

É uma pena que a minha geração se lembre apenas do Rock in Rio, que rolou só dez anos depois do primeiro Iacanga. Ali já era uma coisa tão comercial que o fato de ter sido o sucesso que foi não surpreende. Agora, é certeza que nenhum festival impactou mais no contexto da época do que aqueles realizados em Iacanga. Claro, rolaram outras tentativas de um Woodstock à brasileira antes de Iacanga, mas todos foram ainda mais underground, com ainda menos público. Em Iacanga, aquilo finalmente dá certo. Rola uma libertação total nunca antes vista. A gente tem que pensar que aquele era o pior período para se tentar reunir gente no meio do nada pra curtir um som. Primeiro, havia a ditadura. Segundo, cabeludo era marginalizado, muitas vezes preso. Ninguém podia ser realmente o que queria ser. Toda expressão jovem era muito cerceada e tolhida. Não é por acaso que a coisa hippie chega aqui com atraso. Então, vamos lá, 1975 e esse cara de 22 anos resolve mobilizar a família e os produtores amigos de SP na tentativa de realizar um festival daquele tamanho. Não foi brincadeira. Era pra não ter rolado mesmo. Iacanga foi palco de luta e resistência só pelo fato de ter acontecido.

Público em 1975. Foto: Acervo Pessoal.

Liminha, 1975. Foto: Acervo Pessoal.

Chegada do público na primeira edição, em 1975. Foto: Acervo Pessoal.

Como o Festival foi se desenvolvendo e se profissionalizando ao longo das edições? Que problemas surgiram e como eles foram contornados?

Em 1975, o festival foi inteiramente dedicado ao rock. Imagina, naquela época as coisas não chegavam na velocidade que chegam hoje. Tô falando desde discos estrangeiros a equipamentos profissionais. Então, tudo nesse primeiro festival foi improvisado: palco de madeira, iluminação precária, muitos problemas logísticos, bandas escaladas na última hora. Muita gente anunciada no cartaz não tocou no primeiro festival, como Os Mutantes (já sem Rita Lee), que mesmo tendo Dinho Leme envolvido na produção e a presença do Arnaldo Baptista – que passou a maior parte do tempo viajando –, não tocaram. O Liminha tocou com o Som Nosso de Cada Dia em um dos shows mais lendários, mas Os Mutantes mesmo não tocaram. Jorge Mautner e Walter Franco também não foram nesse primeiro, tocando apenas nos de 1981 e 1983. As verdadeiras estrelas desse primeiro festival foram bandas do underground que não tinham espaço no mainstream e que fizeram ali seus grandes shows: Apokalypsis, A Chave Universal, Rock da Mortalha, Mitra, Tibet, Orquestra Azul, Jazzco, Terreno Baldio, Grupo Capote, O Terço (que, junto ao Som Nosso e o Moto Perpétuo, tinha uma projeção maior nessa época em relação aos outros conjuntos). Mais do que o som que rolou, o primeiro festival foi foda porque, mesmo com todos os problemas, reuniu mais de 15 mil pessoas. O que era impensável. Ali, gente de todos os cantos do Brasil acampou, usou tudo que queria usar, transou com quem queria transar. Foi a primeira grande reunião desse espírito hippie tardio no Brasil. Com os anos, o festival passa a se profissionalizar e o dinheiro que nem era tão importante assim começa a ser. Claro, a conta chega para os organizadores. O festival começa a ser abocanhado pelo sistema a partir de 1981, mas ali também começam a entrar todos os gêneros musicais. O que deixa o evento ainda mais interessante. Esses festivais uniram todo mundo numa tribo só. E a atraíram muito mais gente; 60, 70, 90 mil pessoas. A galera acordava ouvindo música instrumental, passava a tarde caçando cogumelos curtindo música regional e só dormia depois do último show de rock. Isso se você conseguisse dormir. Não tinha esse protocolo todo de um artista subir, tocar 10 músicas e sair. A música não parava nunca. Esse jeito alternativo, meio irresponsável de fazer o festival seguiu até o fim. Eles estavam aprendendo a fazer e fazendo tudo do jeito que queriam. Não teve nada igual aquilo.

Antonio Checchin Júnior, mais conhecido como Leivinha, idealizador do Festival de Águas Claras, em 1981. Foto: Irmo Celso.

Você levou dez anos para reunir todo o material. Quais foram as descobertas sobre a história do festival? Como elas aconteceram?

Nos primeiros anos foi um processo lento de pesquisa filmada aliada a uma compulsão doida de catar tudo que eu ia encontrando de material de arquivo. O que eu descobri, pra ser sincero, é que a gente não dá muito valor a memória aqui no Brasil. Fiquei muito triste com a quantidade de material deteriorado, coisa que não dava nem pra recuperar. Espero que um dia a gente consiga reverter essa mentalidade. Já nos últimos anos, quando a produção começou de verdade, meu papel foi um pouco esse de recolher os caquinhos e entender que história eu queria contar. Pra mim, era mais interessante mostrar a coisa pelo ponto de vista da produção e da família do Leivinha. Quando não estamos com os artistas no palco ou com o público, estamos com eles. O material com o qual eu pude trabalhar é muito rico. Shows históricos, muita coisa de bastidores também. Outras coisas apareceram nos últimos minutos do segundo tempo. Um material da Globo, outro da TV Cultura. O material mais inesperado veio do Pena Schmidt, produtor musical e o cara responsável pelo som nos festivais de 1975 e 1981, que achou as fitas da mesa da primeira edição. Essa foi uma grande surpresa e uma parte disso está no filme. Espero que o público possa ter a mesma sensação que eu tive quando descobri essas coisas. Para mim, os maiores segredos foram revelados em papel. Os documentos do período militar me assustaram pelo nível de paranoia, refletem a ignorância e o medo que eles tinham daquela juventude setentista.

Raul Seixas e banda na histórica apresentação em 1981. Foto: Irmo Celso.

Como devemos encarar o Festival Águas Claras hoje? Como você percebe o seu legado?

No que se refere a produção cultural, o legado dos festivais realizados em Iacanga é evidente. Hoje, são dezenas de eventos alternativos que ainda rolam, com camping e sucesso de público, em vários cantos do país. Diferente dessa coisa urbana fast-food, em que você assiste um ou dois shows e vai embora, esses festivais pensam na experiência como um todo. Ainda guardam esse espírito de respeito pela vida comunitária e do faça você mesmo. Além de contarem com uma curadoria antenada que é herdeira direta do Festival de Águas Claras, reunindo a novíssima cena e grandes nomes da música brasileira. Agora, se você pensar na força ativista do festival, aí a reflexão é mais profunda, porque ele conseguiu conquistar um território de liberdade de forma pioneira. Esses festivais foram vitoriosos contra a caretice e outras forças negativas que rolavam no país entre 70 e 80. Um respiro, uma fuga e também uma maneira daquela galera se comunicar, se organizar. Foi em Iacanga que pudemos celebrar a diversidade, as liberdades individuais e a nossa música como um todo. Olhar para trás e lembrar desse festival é muito importante hoje. Nesse momento, quando a gente começa a ver uma mentalidade conservadora dominando até os mais jovens, e vê novamente os artistas sendo demonizados, não podemos esquecer do poder revolucionário que tem a nossa música. Dentro e fora dos palcos. Foi com a música que o Brasil mudou o mundo. E essa geração que resiste já sacou que precisamos dela de novo pra mudar as coisas por aqui.

Visão aérea do camping em 1981. Foto: Irmo Celso.

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25/02/2019

Brenda Vidal

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