Faixa a faixa | Luiz Gabriel Lopes passeia por cada canção de “MANA”

22/08/2017

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Revista NOIZE

Por: Revista NOIZE

Fotos: Chico do Céu

22/08/2017

O cantor e compositor mineiro Luiz Gabriel Lopes escolheu o caminho da naturalidade para trazer a MANA uma vibração otimista e delicada. Nessa realidade tão confusa em que vivemos, ser simples é um desafio que o baixo, a guitarra, a bateria e a flauta de MANA conseguiram alcançar com distinção em sonoridades e composições bem brasileiras.

Com as participações de Maurício Pereira, Luiza Lian e Ceumar, o terceiro álbum do músico é um convite ao repeat, e fica ainda mais interessante com ele próprio contando sobre a história de cada canção durante suas andanças pelo Brasil, confira:

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1986
É uma canção que eu escrevi em 2014, durante uma tour do Graveola na Europa. Estávamos em Berlim, fui dar um rolê sozinho num day-off. Há pouco tinha tido uma conversa muito massa com o Sebastian, um brother alemão, ele contando que nasceu na época da Alemanha Oriental, durante o regime socialista, falando sobre a infância dele, o tanto que o mundo que ele viveu durante aquela época parece absurdo pros dias de hoje. Comecei a viajar no meu próprio sentimento geracional: anos 80, interior do terceiro mundo, a volatilidade desse pertencimento. A sensação de integrar uma geração de andarilhos, atravessada por tantas transições, saltando do resto de uma era que já se foi e pegando carona no começo de algo que ainda está por vir. Nessa onda vieram os primeiros versos da música, esse questionamento. Junto, a epifania de um afeto de pertencimento global, acho que a música tem a ver com isso, esse sentimento. Reconhecer a singularidade que é ser brasileiro & Latino-Americano hoje, índio descalço capiau elétrico do cerrado abençoado pelo rio e pelo sol, como peça de uma comunidade, uma família cósmica na aldeia global. “O cantador é aquele que traz no peito o cheiro e a cor de sua terra, a marca de sangue de seus mortos e a certeza de luta de seus vivos.” Acho que tem a ver com isso a música, esse sentimento. Tem um videozinho roots dela gravada na beira do rio Sena, em Paris, pouco tempo depois de compôr ela, já no final da tal turnê do Graveola. Na gravação do disco tem um belo solo de flauta do Daniel Pantoja.

Apologia
Um ijexá que compus de aniversário pra uma amiga. Fomos muito próximos durante uma época da vida, depois nos distanciamos, rolou um stress, ela ficou triste, passou o tempo, eu sentia que precisava pedir desculpas. Era aniversário dela, eu tava meio sem jeito de colar, conversei com minha irmã sobre esse sentimento e ela disse “uai, faz uma música pra ela”, cheguei em casa e fiz de uma sentada só, fiquei feliz. Cheguei na festinha de aniversário e chamei minha amiga num canto, toquei a música, caiu uma lagriminha, nos abraçamos, a vida seguiu bem melhor depois disso. Tão importante poder pedir desculpas… Também tem um videozinho roots massa dessa música no meu canal do youtube, eu tocando ela no meio do mato lá em Milho Verde, paraíso astral das Minas Gerais. Na gravação do disco, menção honrosa para a abrilhantada presença do querido & maravilhoso Maurício Pereira dividindo os vocais comigo. Adoro ele, acho a voz dele um bálsamo, carrega um afeto muito especial, fiquei muito feliz dele ter participado.

Matança
Essa canção é a regravação de uma peça-chave do cancioneiro rural-mezo-folclórico dos brasis-de-dentro, composição do Augusto Jatobá cuja interpretação mais conhecida foi feita pelo Xangai. Me lembro de ouvir muito na infância, naquele antológico disco Cantoria 1, que é um encontro do Xangai com o Geraldo Azevedo, Elomar e Vital Farias. Tinha o vinil lá em casa, tenho até hoje… Um disco lindo gravado ao vivo numa turnê que eles fizeram juntos em 1984. Minha mãe tinha também numa fitinha k7 que rodava no carro, eu e meus irmãos viajávamos muito nessa música, ficávamos tentando decorar todos os nomes das árvores da última parte, mas nunca conseguíamos (risos). Daí, as sincronias da vida: Em 2016 fiz um show no festival “Vozes do Brasil”, em BH, e a curadoria sugeriu o Xangai como convidado do show, putz, achei massa demais… Uma honra imensa, sou mega fã do cara. Fiz com a banda o arranjo dessa canção, que é um clássico do repertório dele, e cantamos juntos, foi mega-emocionante. Tamanha a onda que a música deu, acabou entrando pro repertório dos meus shows. Daí quando fui escolher as canções pra gravar, percebi que ela se encaixava de um jeito interessante em meio aos assuntos e paisagens que eu estava desenhando pro universo do álbum, e sinto que era um resgate massa a ser feito, além de dar à canção uma outra leitura, com um fôlego mais elétrico. Virou uma espécie de bugaloo-jovem-guarda com rhythm’n’blues.

Música da Vila
É um devaneio-fábula de tom fortemente documental, baseado em vivências que tive numa comunidade onde morei em Belo Horizonte durante alguns anos, na rua Eurita, no bairro Santa Tereza. Nesse lugar vivia um grupo de artistas latino-americanos ligados à arte de rua, principalmente o circo, que se tornaram personagens da canção, bem como alguns outros moradores da Vila. Era um cotidiano muito comunitário, a galera muito massa, aprendi muito nesse período. Acho que a música vibra nessa energia, do trânsito dessas pessoas pela vida, na batalha da arte independente, resistindo e existindo de uma forma muito bonita. foi minha primeira composição com o Téo Nicácio, meu querido parceiro que além de um grande malabarista (o cara se apresentou na cerimônia de encerramento das Olimpíadas!) é um músico maravilhoso, parceiro de muitas estradas, e faz parte da banda que gravou o disco, tocando baixo e fazendo vocais. Daí tem esse sentimento de coletividade, galera fazendo rango junto, muito convívio, muita troca massa. Essa também tem uma versão no youtube com a gente tocando voz e violão, filmada com a câmera do computador na escadinha da vila, com a ilustre participação de vários dos personagens citados na canção. Quando fomos arranjar com a banda, a idéia do arranjo com o ska foi do Pedro Morais, um cantor e compositor mineiro muito massa, uma vez que a gente fez um show junto em Belo Horizonte. Na gravação, tem a participação da Luiza Lian nos vocais, além de um solo de trompete maravilhoso do meu querido mano Diogo Duque, um grande músico português, e um sampler de uma fala do Eduardo Galeano no finalzinho.

O Cangaço Lírico
É uma vinheta instrumental, de transição entre o que seria o “lado A” do disco (mais solar, mais expansivo) pro “lado B” (mais noturno, introspectivo). É um trecho de uma sessão de improvisação livre que a gente fez no estúdio, de uns 20 minutos, com várias ondas, várias paisagens sonoras. Fui ouvindo e tentando encontrar um trecho que trouxesse uma sensação andante, de caminhada, num ambiente aberto, como um deserto, ou mais precisamente, algumas paisagens do cerrado de Minas Gerais. Um capítulo breve e onírico, sugerindo um “lirismo da seca”: O vento soprando os gravetos, as árvores retorcidas… Uma síntese imagética possível pra algumas das escolhas que levaram à construção da sonoridade do disco: o power trio firme, enxuto, pontuado pelos vôos da flauta, como aves cruzando o céu de inverno, a poeira fazendo ecos ao longe. A faixa é como uma fotografia desse ambiente, e vira a página pra segunda parte do disco, quando cai a noite.

Quiléia
Canção em parceria com Paulo César Anjinho, misterioso e lendário habitante do cerrado, escrita numa temporada que passei em São Gonçalo do Rio das Pedras, um pequeno vilarejo perto de Diamantina, em Minas. É uma canção de amor, talvez a única do disco, um amor distante, perdido no tempo e no espaço. A transmutação da saudade, num diálogo com os seres do mundo natural. Comecei a escrever a canção numa caminhada que fiz no rumo da Cachoeira da Rapadura. Me sentei num penhasco de onde dava pra ver uma grande parte do vale, com suas árvores e ondulações, e trabalhei em cima de um riff de maracatu que eu guardava há algum tempo no violão. A composição aconteceu na mesma época que Maquinário, que foi gravada pelo Graveola, e não por acaso guarda com ela alguns ecos de investigação sobre a levada do maracatu. É uma espécie de devaneio naturista sobre a saudade e suas possíveis alegorias, a transformação imagética do lamento na ausência da pessoa amada. No Youtube tem uma versãozinha naquele naipe “site-specific” gravada no chafariz de Milho Verde, com o Anjinho tocando bandolim. No disco, a faixa conta com a luminosa participação da Ceumar, cuja voz sempre me soou como algo arquetípico da beleza e do equilíbrio. Fiquei muito feliz com a participação dela, foi uma bênção pra música.

381 Blues
Mais uma parceria com o Téo Nicácio, feita durante uma viagem de fim de ano que fizemos juntos. Fomos até o Ceasa, um centro de abastecimento em Belo Horizonte onde sempre param muitos caminhoneiros, e ficamos mangueando uma carona que subisse pra Bahia, até encontrar o seu Orlando, um simpático caminhoneiro banguela que há muitos anos fazia o trecho, indo e voltando uma vez por semana, levando cargas de mamão e ração pra pássaros. Seu Orlando era boa gente, torcia pro Bahia, gostava de ouvir música evangélica, mas era excessivamente autoconfiante: durante a viagem começamos a perceber que ele dava umas “pescadas” de sono, mas não aceitava a possibilidade de parar pra descansar um pouco, pois tinha horários a cumprir, gostava de viajar à noite, etc. No desespero de tentar mantê-lo acordado, começamos a puxar assunto, e a idéia de compôr a canção na boléia do caminhão veio nesse intento. Perguntávamos pra ele o que ele achava de um verso, íamos coletando material nos acontecimentos da estrada, tentávamos envolvê-lo de toda forma na conversa. Ele, um tanto monossilábico, não participou muito ativamente, mas felizmente chegamos vivos no destino final. Daí a canção teve a princípio esse lado “funcional”, de manter o cara acordado, mas acabou retratando um pouco do sentimento desse universo, das travessias rodoviárias Brasil adentro, a estrada à noite e seus infinitos espelhos e mistérios.

Caboclin
É uma composição do Gustavito e do Thiago Braz, músicos de Belo Horizonte, amigos de longa data e muitas jornadas. Desde a primeira vez que ouvi, me apaixonei pela música, pelo sentimento que ela me causava, e logo tive vontade de gravar. Tenho um carinho especial pela presença dela no disco, e acho significativo isso de me tornar intérprete de compositores que me são próximos e contemporâneos. É um gesto de me reportar ao cancioneiro da nossa época, que é escrito a muitas mãos, e propôr uma leitura pessoal, explicitando algumas das minhas referências. Como uma forma de trazer pra dentro da minha obra outras dicções e visões de mundo. A música é do Thiago, a letra é do Gustavito, e fala sobre o universo mágico da floresta e das medicinas ancestrais dos povos indígenas, como formas que possibilitam o despertar da intuição e viagens astrais.

Yoko
Mais uma canção inspirada no relacionamento com os seres da raça canina, como algumas que já povoaram o repertório do Graveola (“O Cão e a Ciência” e do “Passando Portas”, meu primeiro disco solo, O papa, O cão, A alfama, bem como tantos outros clássicos do cancioneiro universal. Foi inspirada em cenas do convívio com a Yoko, a cachorrinha do Téo que dividiu conosco uma temporada naquele mesmo barracão da Vila. O Téo veio com o riff inicial, já com a sensação de que seria uma canção pra ela, e juntos fomos escavando o terreno ao redor da idéia e do riff, os sentimentos e imagens do cotidiano com ela, na casa. Tenho um apreço especial por ela no disco. Sinto que ela vibra no meio do caminho entre “Diana“, do Toninho Horta, e o “Vida de Cachorro“, d’Os Mutantes. Realmente, adoro canções pra cães. E, curioso notar, não são raras as vezes em que toco ela nos shows, e subitamente aparece um cão e pára pra escutar, atentamente. Começo a me convencer que muitos de fato entendem a língua dos humanos. Há uma versão no youtube onde a Yoko, ela mesma, aparece.

Um Índio
Última canção do disco, escrita também em parceria com o Téo Nicácio, durante uma viagem de barco entre Macapá e Curralinho, uma pequena cidade na ilha de Marajó, onde íamos visitar um amigo. A sensação de navegar pela primeira vez naquela imensidão de água, no delta do rio Amazonas, durante a noite, com a floresta correndo pelas duas margens, foi algo muito forte. Um cenário cuja magia se amplificava ainda mais pela lua cheia que nos acompanhou nessa travessia: estando próximos da linha do Equador, sentíamos a sensação de quase poder tocá-la com as mãos. O magnetismo desse ambiente nos gerou algumas visões, que na canção se transformaram na imagem de um encontro entre o homem branco e o índio, numa daquelas paisagens da beira dos rios do norte do Brasil, e um possível e breve diálogo entre os dois. Numa época de tanta descrença, me parece pertinente fechar o disco com o refrão “o que é bom permanecerá”. É pra onde escolho direcionar meus afetos e desejos: A potência da vida e sua infinita capacidade de regeneração e transmutação, sempre.

Conheça a discografia e saiba mais sobre Luiz Gabriel Lopes aqui. 

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22/08/2017

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