Julico (The Baggios) revela faixa a faixa seu disco solo “Ikê Maré”

27/11/2020

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Victor Balde/Divulgação

27/11/2020

Após 16 anos à frente do The Baggios, o músico sergipano Júlio Andrade, o Julico, apresenta agora uma nova face criativa. De forma paralela à banda, que segue firme, ele lança a sua estreia solo com o álbum Ikê Maré.

O álbum está disponível nas principais plataformas de streaming e a sua versão em vinil já está em pré-venda. Prensado em vinil azul translúcido de 180g, o LP traz um material gráfico de peso, confira mais informações aqui: Limaia Discos.

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Trazendo convidados como Curumin e a também sergipana Sandyalê, o novo disco passeia por sonoridades que Julico ainda não havia explorado de forma tão intensa nos trabalhos anteriores. A guitarra, seu instrumento principal, permanece tendo um protagonismo, no entanto ela serve aqui como uma ponte para acessar as sonoridades das raízes da música nordestina ao mesmo tempo em que reflete o chamado “desert blues” dos músicos do Saara. A influência do rock psicodélico persiste no DNA de Julico, mas há no álbum uma abertura enorme para o groove do funk, do soul e também do baião. Pra quem curte a psicodelia nordestina dos anos 70, é um prato cheio.

Ikê Maré, conforme o próprio artista explica, foi feito com calma, reunindo um material que estava se acumulando ao longo dos últimos anos. Nas composições, Julico trilhou uma senda arriscada e, justamente por isso, potente, que é expor a sua intimidade. Pra isso, revisitou sua infância em São Cristóvão, na região metropolitana de Aracaju, quando pungava trem com os amigos e tomava banho de rio, roubava fruta e fugia de bicho. Homenageou sua mãe. Falou de amor. Falou de política. Arriscou-se nas teclas, mesmo que não tenha um estudo formal de piano.

O resultado desse processo é um mergulho franco dentro de si mesmo. Um ritual de batismo, em que nasce um novo artista, que é o mesmo de antes, mas também é outro. O paradoxo é que é justo no âmago da experiência individual que os artistas tornam-se capazes de criar obras de relevância universal.

Iké Maré é um desses casos, um disco que vale ser compreendido faixa por faixa. Abaixo, Julico conta as histórias por trás de cada música do álbum, é só ir descendo a rolagem e dando play.

IKÊ MARÉ

Era outubro de 2018, no fim de semana que a The Baggios lançava Vulcão. Tirei folga e fui passar uns dias em Itaparica (BA), não me cansei de encantar pelo mar da Bahia. Naquela época estava ouvindo muito Paulo Diniz, Jorge Ben, Tim Maia, então, naturalmente, quando pegava a viola já logo armava uma nota com sétima menor, que tem um pouco de tristeza se tocada lenta, mas traz uma alegria danada se tocada no suinguera. Não deu outra, foi sem dúvida a música que mais me tocou naquele período, e a que sintetiza mais o álbum como um todo: pela estética e mistura dos ritmos que mais venho pirando na música brasileira.

A viagem me ajudou na criação por trazer sensação de estar em novos ares, numa terra sagrada. No dia que cheguei, já fiz de cara o rascunho e não tirei ela mais da cabeça durante o fim de semana. Trato isso como um bom sinal. A cada ida à praia, voltava com mais uma parte da música pronta, e assim nasceu a canção-embrião do disco. Faz todo sentido tudo isso lembrando disso agora, eu queria me conectar com um novo ambiente, fazer dos ciclos rotineiros das águas uma resposta para onde seguir e por onde renascer.

Vejo nessa letra uma conversa comigo mesmo, alguns toques da vida corriqueira, algumas lembranças ou traumas que vez ou outra reacende. Sou eu, grato comigo mesmo por segurar uma barra pesada há pouco tempo, e mais uma vez voltar seguindo o sonho; é um agradecimento em forma de canção para as forças que me regem e a bendita música que encarnou em mim desde quando tinha treze anos – nunca mais saiu.

NUVENS NEGRAS

O Brasil entrou num processo de desmoronamento há alguns anos, mas nos últimos dois fizeram questão de acelerar o processo. Estava com a estrutura da música e melodia quase pronta, me lembro que estava aprendendo a tocar umas músicas do Hyldon e Cassiano no dia, quando fui para a varanda escrever algo, e já me veio frases com certo tom de raiva. A imbecilidade que tomou o poder do país vinha me consumindo há um tempo e precisava escrever algo. Naquela semana, a Amazônia estava em chamas, pra mim não foi nenhuma surpresa já que o presidente e o ministro do Meio Ambiente falavam abertamente sobre as facilitações para a agroindústria, sobre o quanto não se importavam com os indígenas, e por aí vai… algumas capitais anoiteceram mais cedo devido às nuvens escuras e densas que vinham das queimadas, e aquela cena me marcou bastante. Muito triste tudo isso, poderia fazer uma lista quilométrica das barbaridades desse momento atual do país, resumidas nessa música.

AONDE VIEMOS PARAR

Com o tempo fui descobrindo que música é muito mais que riff de guitarra. Apesar de nunca largar o osso, comecei a me abrir mais na hora de compor, e com isso fui gerando canções com mais dinâmica, mais espaços para novos elementos. Ouvir soul e funk me ensinaram muito disso, e nessa música busquei colocar em prática o aprendizado. Nessa letra me coloquei num cenário desértico, onde a tecnologia deixou um vazio na vida social, e foi intensificando mais o contato com “desinformação” em massa, gerando um novo mundo mais ansioso e deprimido. Isso me colocou numa situação de fuga da cidade para buscar paz próximo aos manguezais que beiram o rio Vaza-Barris, na minha cidade nata. Nessa faixa, conto com a participação de Winnie Souza nos backing vocals, conterrânea que já havia trabalhado comigo no álbum Brutown da The Baggios.

TODO SANTO DIA

Essa é da pasta “rascunhos 2017” (risos). Tinha escrito durante uma turnê, era um rock suingado, na linha Rita Lee com o Tutti Frutti, mas com o tempo fui experimentando outros grooves até chegar nesse resultado que bebe mais da fonte do samba rock, com uns solos guitarra mais nervosos ali pelo meio. Lembro-me sempre do Pepeu Gomes, Novos Baianos quando a escuto. Nessa tenho a honra de dividir vocais com o Curumim, figura que admiro muito, e é uma das referências desse meu trabalho. Nos conhecemos no show que ele fez em Aracaju, em 2017. Trocamos discos e ali descobri que ele já sacava e curtia a Baggios, o que me deixou contente e me fez pensar que era possível uma futura parceria, e tá aí, aconteceu!

EU SÃO / CURTIS SAYS

Nessa deixo a guitarra mais de canto, invisto no groove da bateria e baixo e deixo fluir tudo naturalmente. Muitas músicas continuam surgindo assim nessa quarentena, crio alguns grooves e fico improvisando passagens de notas, riffs, harmonias, tem sido um exercício massa! Foi assim que surgiu essa faixa.  Nela arrisco umas teclas, além do violão, baixo e guitarra. Nunca aprendi a tocar à vera, mas nesse período que me entoquei pude praticar e aprender mais criando arranjos de órgão, melotron para esse disco. Uma outra coisa interessante que experimentei em todo o álbum foram as harmonias vocais, gravar em casa me deixou mais livre para arriscar essas construções.

Nela falo em curar as feridas cravadas pelo tempo e pelo desgaste da busca por dias melhores. Na segunda parte da música há uma experimentação de texturas adubadas por delays e melotrons,  fazendo a cama para surgir assim um e o sample da voz de Curtis Mayfield falando “Sisters, niggers, whities, js and the crackers, don’t worry, if there’s hell below, we’re all gotta go”, uma mensagem que reforça que somos todos um, somos todos fruto de uma mesma origem, isso representa pra mim, igualdade .

SURFISTA DE TREM

Quando pivete, vivia pungando nos trens que passavam em São Cristóvão. Eles sempre passavam mais lentos, e eu e meus amigos corríamos juntos com o trem, e a gente se pendurava nas escadas do vagão. Não íamos longe, o trem andava por alguns minutos e descíamos quando ele voltava a pegar embalo.  Sempre fantasiei onde daria se eu não pulasse de volta, onde o trem me levaria, como sobreviveria, e acabei resgatando essa lembrança que guardo com tanto carinho e me traz um sentimento de liberdade e inconsequência que o tempo vai nos corroendo. Das minhas favoritas desse álbum.

CAÍPE NOVO

Essa faixa é tipo um interlúdio do álbum, momento de transição. Na segunda parte do álbum, ou no lado B como diria quem escuta música em  vinil, tem uma vibração diferente, com mais cor, com outras energias circulando. Axis: Bold as Love é um dos álbuns que mais piro, e  sem dúvida me ajudou a ter essa ideia.

OUTRORA

Para construir um álbum eu preciso de um tema, o fio condutor, uma inspiração que me toca a alma. “Ikê Maré” representa para mim a força que rege o tempo, o equilíbrio, o aprendizado. Quando canto “Gil me acerta, minha cisma passou” fará sentido por muitos anos pra mim, pois Gilberto Gil é um dos caras mais inspiradores da música brasileira, um ser de luz, espirituoso, que sempre deixou suas crenças e força impressa na sua música. Assim como Ednardo, assim como Zé Ramalho. Ave Cultura Nordestina! Ave Música Brasileira!

PARAMOPAMA/VAZA-BARRIS

A voz de Winnie! Que é que é isso! A música ganhou alma quando ela mandou a parte dela. Tenho algumas músicas instrumentais que não sabia onde utilizar, e com esse novo projeto me desprendi total e fui trabalhando mais nessa linha de som, com vocalizações, pouca letra. Eu batizei ela com esse nome por serem os dois rios que banham São Cristóvão, onde cresci, aprendendo dos corres da vida.

ROSIMARI

Essa é uma declaração para minha mãe. Demorei que só para fazer uma música à altura dela. Sou um cara acanhado, tímido muitas vezes ainda, tem casos que me expresso  melhor através da música. Um dia eu terminei a pré-mixagem e a chamei para escutar, ela amou! Mãe, que ser forte, né?  Amor incondicional. Ela nunca teve medo de falar o quanto me ama, o quanto torce por mim, e o quanto me incentiva, sou muito grato por tudo que me ensinou e hoje sou feliz por poder retribuir. Inclusive ela e minha sobrinha Ellen participam do coro nas faixas “Todo Santo Dia” e “São Cristóvão Via Níger”.

Assim, como em “Aonde Viemos Parar” e  “Eu São”, arrisquei uns arranjos de teclas aqui. Criei um arranjo de cordas sintéticas com melotron (plugin) para embelezar mais a canção. Curto que só o som de guitarra com fuzz que tirei nessa música. Como gravei em casa, pude usar quase todos meus pedais e guitarras. Foi a primeira vez depois de anos que faço isso, porque gravei os dois últimos discos da Baggios na Toca do Bandido, e lá é um paraíso das guitarras, pedais e amplificadores. Então, aproveitava a oportunidade de estar com tanto equipo foderoso à disposição.

PELEJAMOR

Aí me entrego por completo à cultura nordestina: tarol, sanfona, ganzá, triângulo e o groove envolvente de baião arrastado. Tudo isso faz parte das minhas origens, raízes. Tem muito disso nas que o Raul, Alceu, Arnaud Rodrigues faziam nos anos 70, principalmente. É uma música que narra minha euforia e amor no período junino,  que é um negócio mágico aqui, man! Muitas cores, muita dança, grupos de cultura popular por todos os cantos se apresentando. Amo muito!

SÃO CRISTÓVÃO VIA NIGER

Essa ainda está na vibe encontrada em “Pelejamor”, muito da música nordestina, desta vez mesclada às guitarras inspiradas nas guitarras do deserto do Saara. E nas poucas frases da música vislumbrar dias melhores, com mais sorrisos, mais música nas praças e mais empatia entre nós humanos. Conto com a participação da cantora e compositora sergipana Sandyalê, que mandou ver demais na interpretação dessa música e vem desenvolvendo um dos trabalhos mais interessantes da atual cena sergipana.

CAÍPE VELHO

Essa música me leva à beira de um rio num fim de tarde. Bem lá onde eu vi que os ciclos das marés, tem a ver com os nos dias ou fases da vida, que um passo dado já estamos em outro lugar. Bem lá onde pude notar a vida simples de um pescador solitário, onde eu pude agradecer pelo que sou e tenho, onde pude me perder para me achar.

Tem uma história no mínimo curiosa sobre esse lugar. É um povoado pequeno da minha cidade onde costumava ir tomar banho de rio, roubar frutas e fugir dos bichos. Em janeiro deste ano já tinha marcado de ir a um estúdio para gravar as baterias do álbum com o Ravy Bezerra, meu parceiro que toca em todo o álbum, mas um dia por acaso encontrei meu amigo Dudu Prudente numa festa e comentei do meu álbum e ele falou que estava indo passar uns dias produzindo uns sons numa casa na beira do rio VAZA-BARRIS, e que ficava justamente no CAÍPE VELHO. Não poderia casar tão bem! Gravamos a bateria numa casa de telha, sem tratamento acústico, mas em compensação o visual era demais. Antes eu chamava essa música de “Areia Branca” que é um povoado que fica do outro lado do rio, e naturalmente eu a batizei com o devido nome. 

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27/11/2020

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

Ariel Fagundes