Julio Reny: a estrela solitária

05/08/2014

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Cristiano Bastos

Por: Cristiano Bastos

Fotos: Divulgação

05/08/2014

Talvez você nunca tenha ouvido falar de Julio Reny, mas ele é um dos pioneiros do underground porto-alegrense. Sua primeira gravação, uma fita cassete chamada Último Verão (1983), vendeu apenas 15 cópias na época, mas hoje é objeto de culto e devoção entre os pesquisadores do rock gaúcho devido à originalidade de seu som. Para o lendário músico e produtor Carlos Miranda, esse é “o grande disco, o maior, uma das melhores coisas da música brasileira de todos os tempos”. Segundo Carlo Pianta, guitarrista da Graforréia Xilarmônica, “Julio Reny é o maior cancionista gaúcho”.

Apesar dos seus vários projetos, Reny nunca alcançou o estrelato na música e as histórias de sua vida são uma compilação de episódios trágicos e cômicos. Quando criança, ele era “brigadiano mirim”, algo como um pequeno membro da polícia militar gaúcha: “Aos onze anos de idade, servi à ditadura”, diz Reny comentando com bom-humor o episódio em que deram-lhe a ingrata função de distribuir os famigerados adesivos escritos “Brasil: Ame ou Deixe-o” durante a Copa do Mundo de 1970. Julio foi também goleiro infanto-juvenil do Sport Clube Internacional, ator de teatro e cinema (protagonizou dois filmes geracionais do cinema jovem porto-alegrense: Deu Pra Ti Anos 70 e Verdes Anos), experiente ladrão de discos (roubou mais de 300 LPs em lojas de Porto Alegre) e street fighting man (apelidado de “Pé Na Cova”, o músico era temido na cidade pelo seu envolvimento com gangues de rua).

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Em 2014, Reny está completando 35 anos de estrada. E, para laurear a data, o jornalista Cristiano Bastos planeja lançar uma biografia franca e autorizada do músico que contará com depoimentos de sua filha Consuelo Vallandro, além do produtor Miranda, Edu K, Carlo Pianta e outros. O autor cedeu um trecho do livro em que Julio conta sobre o primeiro show que fez na vida, em 1979, com a banda Uma Canção nas Trevas, em que, pela primeira vez, tocou as canções do mítico álbum Último Verão. Um show, aliás, marcado por ironias. Leia abaixo:

Reny interpreta Sid Vicious no curta "Vicious" (1988) de Rogério Ferrari - Foto: Fernanda Chemale

Reny interpreta Sid Vicious no curta “Vicious” (1988) de Rogério Ferrari – Foto: Fernanda Chemale/1987

A última música que compus para o [álbum] Último Verão foi “Super Homem está Esquecendo as Suas Melodias”, uma epopeia de quinze minutos. Bah, eu me chapei muito enquanto compunha. Li a Bíblia, não lembro se o Velho ou o Novo Testamento e, lá pelas tantas, parei para me masturbar – precisava aliviar a tensão acumulada. O detalhe “fisiológico” é que não ejaculei, senão provavelmente teria caído no sono e não a teria finalizado. Com as canções prontas, reuni os músicos da banda na barbearia do meu pai e demos início aos ensaios. Exortei os rapazes da banda: “Vamos fazer foto, repertório e botar a cara na rua, vamos para a luta!”.”. E eles se pilharam. Tinha um pequeno quarto no andar de cima da barbearia, onde eu estava morando na época, que fizemos de lugar de ensaio. Era lá que o Fred Lamachia, que seria percussionista da banda, todos finais de tarde comparecia com um baseado. “Uma Canção nas Trevas”, a primeira banda que tive, surgiu numa dessas inspiradoras tardes.

Julio no final dos anos 1970 - Foto: acervo pessoal

Julio no final dos anos 1970 – Foto: acervo pessoal

Com tudo em cima e bem ensaiados, arranjei uma data no anfiteatro da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que fica bem na ponta do Parque da Redenção, no coração do [bairro] Bom Fim. O mais estranho é que eu nunca mais soube de algum artista, além de nós, que tenha feito show naquele lugar. Estreamos em novembro de 1979. No repertório, algumas daquelas músicas que compusera naqueles oito dias. Foi um show foi muito louco. A iluminação, um luxo na época, improvisamos com latas de Leite Ninho. Quem deu a dica da iluminação foi o [músico e compositor] Nei Lisboa. Foi assim que nos conhecemos. Para obter o efeito de luzes coloridas, envolvíamos as latas em papel celofane. Conseguimos até descolar algum espaço de divulgação com foto nos jornais. Cumpri o ritual. Embora não fossemos musicalmente bons, senso de organização não nos faltava. Aquele momento precisava ser especial. Afinal, além de nossa estreia, era o “show anual”.

E, prova cabal de que o destino é mestre na arte de pregar peças, no meio da estreia, legitimando o nome da banda, aconteceria uma grande ironia: faltaria luz. Mal tocamos a primeira música e a luz se foi. Algum espírito zombeteiro rondava por ali… Toquei “Super Homem está Esquecendo as Suas Melodias” sozinho, com as luzes apagadas. Mas tive espírito de palco e driblei o imprevisto. Burlei o sacana do destino. Vi-me em meio à plateia tocando com o violão desplugado. Escuridão total. Coisas mágicas acontecem. Exatamente quando deveria entrar o eletrificado refrão de “Super Homem”, a luz voltou. Então me pluguei, a banda voltou com tudo e a música prosseguiu do ponto onde parara. O público presente nem se deu conta do que rolara, mas, para nós, foi lindo. Piramos. Ali, envolto em trevas e luz, estreava o Julio Reny músico e compositor.

Raro registro de Julio Reny ainda cabeludo junto com sua primeira banda em 1979 - Foto: acervo pessoal

Raro registro de Julio Reny ainda cabeludo junto com sua primeira banda em 1979 – Foto: acervo pessoal

Uma semana antes, num domingo, fizemos o único ensaio para esse show. Coisas curiosas também aconteceriam. Para começar, transportamos nossos equipamentos no carro da funerária do pai do Fred Lamacchia. Também levamos parte dos equipamentos “no muque”. Roadie nem pensar. Na incipiência do underground, este nível de profissionalismo não existia. Nesse domingo, após ensaiarmos, [sua mulher] Jaqueline e eu fomos inspecionar as câmaras mortuárias da Faculdade de Medicina. Invadimos as salas onde ficam cadáveres de mendigos e indigentes. O cheiro de formol empesteava o ar insuportavelmente. Chapados de maconha, vimos aquele monte de cadáveres empilhados – visão aterradora. Transamos ali mesmo, felizes. Não descarto a possibilidade de Consuelo ter sido concebida nesse lúgubre ambiente.

Julio e sua filha Consuelo Vallandro - Foto: acervo pessoal

Julio e sua filha Consuelo Vallandro – Foto: acervo pessoal

6 canções essenciais de Julio Reny

“Uma Tarde de Outono de 1973”
Música que marca a passagem de Julio Reny pelo hospital psiquiátrico, da qual resultaram as letras de Último Verão. “Uma Tarde de Outono de 1973” descreve um dia de “banho de sol” de Julio e dos internos do Hospital Espírita. Ele canta: “Eu estava sentado num pátio e me agarrava ao sol com / Todas as minhas forças / Enquanto alguém com olhos sem vida me dizia: no hospital você tem todo tempo do mundo”.

“Amor & Morte”
Separado de sua primeira mulher, Jaqueline Vallandro, que fora morar na Bahia, Julio percebeu que as canções de rock gaúcho eram extremamente machistas. Pediu, então, que Jaqueline lhe escrevesse uma canção cuja letra fosse vista pela ótica feminina. A canção chegou pelo correio, quando certo dia Julio foi conferir a correspondência. Em 20 minutos ele fez os arranjos da música, até hoje os mesmos. Esse clipe foi dirigido pelo jornalista Cunha Júnior (atualmente no programa de variedades Metrópolis) para o Jornal do Almoço, da RBS TV, que na época ele apresentava.

“Não Chores (Lola)”
Junto com “Amor & Morte”, o maior hino de Julio Reny – senão o maior. Pouca gente sabe, mas a Lola da letra é ele próprio…

“Mil Noites”
Julio Reny & Guitar Band. Julio escoltado por Carlo Pianta e Frank Jorge. Para mim, uma das canções mais lindas do Julio. Uma obra-prima composicional.

“Jovem Cowboy”
Formada em 1997 por Júlio Reny, Márcio Petracco e Frank Jorge, músicos que já haviam alcançado sucesso com suas respectivas bandas – Expresso Oriente, TNT e Graforréia Xilarmônica – os Cowboys Espirituais foram contratados pela gravadora Trama em 1998. Atingiram sucesso nacional com o hit “Jovem Cowboy”, cujo vídeo conquistou prêmio Revelação da América Latina do canal de TV country CMT1. O crossover perfeito – e improvável – entre o coury rock e o hip-hop. Nem mesmo os norte-americanos fariam melhor.

“Anita”
Verdadeira pérola videográfica de Julio Reny recém redescoberta graças ao youtube. O vídeo foi gravado na Rua Sete de Setembro, no centro de Porto Alegre. À época Julio andava flertando intensamente com os ritmos da música, muito graças ao prestigiado programa radiofônico que apresentava na Ipanema Fm, o Negras Melodias. “Anita”, na realidade, pertence ao seu segundo álbum, intitulado Expresso Oriente. É uma de suas canções mais emblemáticas, cuja letra verseja: “Anita colou um papel de parede / Atrás da sua mesa no escritório / Ela trabalha no cartório / E a paisagem é uma ilha dos trópicos”. Essa versão da música, pode-se dizer, é mais uma fusão improvável idealizada por Reny: uma junção do clima policialesco-noir do escritor Raimond Chandler com o ainda nascente hip-hop.

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05/08/2014

Jornalista, autor de "Julio Reny – Histórias de Amor & Morte" e coautor do livro "Gauleses Irredutíveis".
Cristiano Bastos

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