Larinhx na linha de ataque da cena underground e feminina de funk

06/08/2021

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Brenda Vidal

Por: Brenda Vidal

Fotos: @babisf/Divulgação

06/08/2021

Tentar cravar o momento específico em que o funk chegou na vida da Lara Dantas, artisticamente conhecida como Larinhx, é uma tarefa impossível, já que ela é cria da cidade Queimados, na zona periférica da Baixada Fluminense, onde o gênero é quase onipresente. Essa é a realidade da região como um todo, à qual ela se refere enquanto uma “fábrica de MCs”. É de lá, por exemplo, que vêm nomes gigantes, como Kevin O Chris, MC TH, Pocah e Ludmilla. Respirando o ar de uma cena tão fértil, a artista filosofa: “Eu não escolhi fazer funk, acho que foi ele que me escolheu na vida”.

Entretanto, no meio desse mutualismo, conseguimos espremer um marco quando invertemos a questão. O momento em que Lara chegou junto no funk aconteceu ainda na fase escolar, durante o ensino médio. Ela, que hoje tem 25 anos, lançou seu primeiro som por volta dos 14. “Comecei a me juntar com as minhas amigas pra fazer rima na sala de aula”, relembra. Ela prossegue: “Decidi botar isso na internet. Procurei um amigo, o Gabriel Ribeiro, que na época tinha um canal bombadão. Ele colocou uma música minha no YouTube e foi viral na cidade!”, descreve, ainda esboçando um ar surpreendido de quem nunca se acostumou com esse feito. A track em questão se chamava nada mais, nada menos que “Experiência Sexual”, e se tornou um clássico geracional na cidade de Queimados. “Não tem um da época da escola que não saiba, tá ligado?”, destaca.

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Desde então, pra nossa sorte, ela e o funk não se perderam mais de vista. DJ, produtora musical, compositora e cantora, Larinhx agora mora no Rio e integra o selo do Heavy Baile e o laboratório musical MangoLab. Em maio deste ano, a artista lançou o primeiro e icônico álbum Eu Gosto de Garotas. Colocando-se como uma espécie de anfitriã e agente cultural, a estreia solo de Larinhx soa como uma coletânea. Ao seu redor, organizam-se 11 nomes de artistas da cena underground carioca do funk, R&B, rap, poesia e o que mais couber nas intersecções de tudo isso. Estão no time de convidadas Deize Tigrona, Slain Rúbia, Ikinya, Ebony, slipmami, MC Lizzie, SHURY, DAMATTA, Ciana, Amanda Sarmento e Valen.

Só Camisa 10: A escalação do time

O que Larinhx nos apresenta em Eu Gosto de Garotas é um verdadeiro documento marginal dos desejos e afetos de mulheres periferizadas. Magras e gordas, trans e cis, LGBTQIA+ e héteros, e em sua maioria pretas, cada uma delas faz das texturas envolventes e quentes de Larinhx seus espaços seguros. As tracks se orientam por uma paleta temática versátil, autêntica e atrevida. Na celebração daquelus/daquelas/daqueles que gostam de garotas, cabem versos delirantes, linhas que articulam o melhor do funk putaria, desejos desbocados, sinceros e debochados. Cabem também gritos de guerra, hinos de empoderamento, sucesso, ambição, autonomia, vulnerabilidade, autoestima e afeto. Um registro que combina coesão com diversidade e que consegue se infiltrar em espaços alternativos e não necessariamente conectados ao funk sem que seja preciso dar as costas às suas origens e suas ancestrais. Larinhx brilha ao orquestrar de forma sagaz uma malha sonora contemporânea formada pelo funk, trap, drill baile, R&B e rap.

Esse potencial criativo foi notado pelo faro artístico do DJ e produtor musical Léo Justi, do Heavy Baile, e pela produtora cultural Ana Paula Paulino, que integrava o coletivo na época. Larinhx é quem nos situa no início do flerte artístico: “Quando comecei a tocar no eixo centro e sul [cariocas], eles observaram meu trabalho, principalmente a minha pesquisa de funk, que era diferente a galera daqui [do Rio], porque é uma parada que eu escuto desde que eu nasci”, pontua. O olhar atencioso da dupla se transformou na proposta de oferecer o suporte necessário para a artista se desenvolver musicalmente. A MangoLab colou junto como uma espécie de escritório de música, enquanto o selo do Heavy Baile contratou a artista para o time fixo, situação crucial para que Larinhx pudesse se dedicar à carreira. “Graças a Deus fui contratada um pouquinho depois do começo da pandemia, o que me deu um certo conforto em pensar nas minhas coisas com calma, sem o desespero de ‘caralho, preciso me matar pra fazer alguma coisa logo!’, saca?”, valoriza.

Larinhx começou como MC, mas acabou se encantando pela produção musical (Foto: Divulgação)

A conversa com Lara é bem-humorada e acelerada. Com um signo solar em Áries, a artista emana a energia criativa e impulsionadora 100% milgrau daquele que é o primeiro signo do zodíaco. Focada no desejo e na força de fazer acontecer, talvez ela tenha pouco tempo para pausas contemplativas capazes de fazê-la compreender a dimensão de tudo que criou até agora. Ela divide que o exercício de se enxergar enquanto produtora musical é algo recentíssimo e ainda não solidificado.

– Isso tá acontecendo agora porque eu tenho imprimido o meu ritmo e os meus códigos [nas parcerias] com as pessoas. Elas têm observado o meu trabalho com respeito, saca? E isso faz com que eu me enxergue como produtora. Elas me procuram pra produzir, falam comigo de uma maneira mais profissional, sabe?”

Larinhx ainda ressalta a formalização de alguns processos como um dos indicadores da virada de chave na profissionalização do seu trampo artístico, como a importância das tratativas por e-mail e o respaldo legal para si e suas parcerias. Processos esses que, muitas vezes estão distantes dos artistas periferizados. “Eu acho que, pelo menos aqui no Rio, o underground tá cada vez mais se organizando pra que a galera que produz e canta esteja mais ciente dos seus direitos e dos direitos das suas paradas. Eu acho que é isso que faz a gente se enxerga como profissional”, elabora.

Ao mesmo tempo que protocola processos e organiza sua criatividade, Larinhx ainda considera que algumas de suas melhores ideias nascem primeiro na esfera do abstrato. “Mesmo com a ausência do planejamento, a existência do afeto já faz com que eu crie minhas coisas malucas. E no final dá muito certo. Eu, primeiro, faço com o coração, antes de qualquer coisa”, define. O próprio projeto Eu Gosto de Garotas surgiu de forma despretensiosa, como uma reação em rede a uma faísca criativa que vislumbrava proporções bem menores. Com o estúdio da MangoLab à disposição, ela viu o início da pandemia como um momento interessante para focar em fazer som. Calhou dela receber o pedido para produzir uma track específica, que viríamos conhecer como “PRETA GORDA”, a sétima do disco, de DAMATTA. “A Marcelinha [DAMATTA] já queria fazer essa música comigo. Tínhamos perdido um amigo, que era artista do selo dela, e isso fez com que ela refletisse sobre o que ela precisava dizer. Ela sempre foi produtora cultural, mas achava que tava no momento de falar a verdade dela”, contextualiza Larinhx. “Ela disse que queria muito produzir comigo. Eu falei ‘amiga, bora! Tô numa fase criativa boa, a gente não pode ir pra lugar nenhum mesmo, bora ficar indo pro estúdio'”, propôs.

Na primeira sessão de gravação da música, DAMATTA levou Slain, dona da genial “GAROTAS AMAM MC REBECCA”, a primeira do álbum. “A Slain é uma mina muito melódica e que tem letra pra caralho!”, exalta a produtora. A identificação com várias das letras de Slain atiçou Larinhx a produzir muito mais coisa. As conexões com outras artistas foram aumentando através de dicas ou de alguém que decidia ir no estúdio acompanhada de mais uma amiga artista. “Quando vi, já estávamos em grupo fazendo o refrão [da faixa] ‘CAMISA 10‘, tá ligado? E, na moral, percebi que já existia alguma coisa ali, sabe? Já tinha juntado música pra caralho, um monte guias muito boas e feitas com pessoas que são amigas mesmo”, decupa. A faísca criativa virou fogueira e catalisou a formatação de um disco potente, depois de um julho e um agosto de 2020 totalmente dedicados às sessões de estúdio. O processo foi coletivo ao máximo, ao ponto de quase todas as composições serem colaborações conjuntas. A sonoridade arredondada do álbum parece se conectar com o ritual que elas tinham antes de cada nova gravação: “A gente escutava todas as músicas que tínhamos antes de começar a fazer a próxima, e todo mundo ia opinar. A gente se comunicava muito, tínhamos até um grupo no zap pra falar das sessões”, compartilha.

Porque gostamos de garotas

Cada faixa tem seu glow. Como um canhão de luz, Larinhx se projeta a cada artista envolvida, iluminando cada momento de autoafirmação artística, além de brilhar sozinha em “HIDROMASSAGEM”. Entre o boom bap e o batidão, ela mostra porque uma é uma produtora musical que merece protagonismo, exercendo a capacidade de mergulhar em diversos estilos sem perder sua marca. O deslizar de Eu Gosto de Garotas é orientado por nuances. A artista nos conta: “Pensei em momentos. Umas partes mais pista – porque eu toco, então, não penso em fazer músicas que eu não tocaria. Tem outra parte, depois da Ciana [a partir da faixa nove] que dá uma ’emburacada’. Tem partes mais românticas, outras que falam de putaria, outras que é só empoderamento”, comenta. Para chegar no resultado, foi necessário “dançar conforme a música”, como ela mesma fala. “Tem que ter esse tato, essa leitura. Escutar uma letra e pensar que sentimento ela traz pra você”, reflete. Além de já ter declarado em outras entrevistas que tem mulheres e LGBTQIA+ como ela em mente na hora de fazer suas tracks, ela conceitua seu som como “músicas quentes”, mas revela que não se prende a recursos específicos. Mas, se for par citar, ela elenca o rever e o delay como preferências. “Eu gosto dessa combinação, acho que qualquer coisa que você coloca reverb e delay fica por mais tempo no ar”, observa.

Não há como negar que um dos pontos mais instigantes do álbum é o próprio título “Eu Gosto de Garotas”, que contém a leveza e a potência que afeto entre garotas carrega consigo. “Vem muito de um lugar de amadurecimento pessoal, de entender que, pelo menos eu – enquanto uma mulher vinda de periferia – não fui educada para admirar outras mulheres, enxergar potenciais, tá ligado?”, analisa. Larinhx cobra da estrutura machista a responsabilidade disso, mas faz questão de salientar o quanto sua rede de apoio foi fundamental para ela inverter essa lógica: “Quando me dei conta, as pessoas que mais estavam abraçando o meu trabalho e fazendo com que ele reverberasse, eram as mulheres. Isso é fruto também de eu ter me aberto a elas”. A esfera da sexualidade também está contemplada no conceito: “Eu e umas 99% por cento das gatas do disco, acho que posso afirmar, gostam de outras garotas também nesse lugar da sexualidade”, assinala. “Todas nós gostamos de nós e de outras garotas também”, realça Larinhx, acompanhada de uma boa risada.

Na adolescência, Lara se dedicou ao futebol, jogando na posição de atacante. O que explica bastante seu jeito “direto ao ponto” de criar, produzir e planejar, mas que também a moldou a partir de uma lógica de organização coletiva. “Tá muito dentro de mim, mas olhando um pouco de fora, acredito vir do rolê do esporte. Basicamente, pra vencer, eu sempre precisei de mais pessoas”, declara. Larinhx vai além: “Me tornei uma pessoa de pessoas. É uma parada que levo pra tudo. Somos uma rede de amigas, todas são muito boas, por que não construir um bagulho juntas?”, provoca. O disco cresce ainda mais quando pensamos na força que ele tem ao potencializar a renovação da cena underground carioca, além de introduzir várias delas no mercado musical. Sobre essa dimensão, Larinhx discorre:

– A única coisa que eu acho que a gente fez foi enxergar potencial musical uma na outra. Tinha gente que, por exemplo, tinha uma letra, mas não a ideia de que aquilo poderia ser uma música, sabe? Hoje eu tô vendo várias pessoas descobrindo talentos no disco, chamando as meninas para fazer outras paradas. Isso tem sido muito foda porque, às vezes, o que falta é a gente olhar para o nosso lado e falar ‘você pode não ser boa agora, mas só porque você nunca teve incentivo’. Se a gente tira uns meses pra trabalhar na parada, têm um resultado maneiro, saca?

Eu Gosto de Garotas ainda entrega uma surra de clipes: um pra cada faixa do disco. E tudo fruto de uma empreitada ousada: aproveitar a estadia da diretora de arte Gabi Lisboa e do diretor de vídeo Felipe Gomes no Rio de Janeiro, subir com equipe mais todas as garotas do disco para a serra fluminense e gravar todos os clipes em um dia de filmagem. Larinhx, inclusive, é quem assina os roteiros e faz dupla com Gomes na direção. Ao comentar essa maratona, ela solta um bastidor delicioso: “Se você reparar com calma no clipe com a Shuri, estamos dentro de uma van, já voltando pro Rio. Foi foda, gravamos com a van em movimento, bagulho muito brabo, e tinha gente passando mal! A Amanda [Sarmento] tinha tido uma crise de pressão antes da gente começar a gravar, no meio da estrada. Se você perceber, ela levanta um Guaravita [bebida feita de guaraná] no meio do clipe (risos)”.

Funk: Fundamento, Motor e Liberdade

A produtora também gosta de garotas quando o assunto são referências. Ela elenca um tripé pouco provável, mas supreendentemente incrível: Valesca Popozuda (com quem produziu a faixa “Me Come e Some”), Alcione e Maria Bethânia. A última surge enquanto um ideal de gestão de carreira, à base de muita calma, reflexão e longevidade. Já Valesca e Alcione vêm de casa: “Basicamente culpa da minha mãe! Ela sempre foi do rolê de ir pra baile funk e roda de samba”. A artista carioca posiciona as duas cantoras em frente a dois pilares latentes de seu som: o romantismo e a putaria. Ela disserta:

– Valesca faz uma safadeza atemporal! ‘Quero Te Dar‘ vai atravessar o século, ninguém vai parar de dar nunca! (risos). Eu gosto dessas paradas que atravessam o tempo. Penso muito em construir coisas que cheguem a um determinado núcleo de pessoas e faça sentido por muito tempo. E a Valesca falou coisas num tempo onde mulheres não falavam de safadeza como ela; Valesca, MC Cacau, Taty Quebra Barraco, Deize Tigrona, todas essas mulheres mais antigas do funk. Já a Alcione tem um lugar em mim de piranha monogâmica, entendeu? Isso é foda… ela já traz meu lado romântico, aquilo de falar sobre amor como entrega, dedicação, numa vibe ‘só me importo com você’, ‘desço do meu salto e faço o que tiver que fazer pra te dar prazer’ (risos), essa coisa maluca.

A conexão com o funk é territorial, familiar, subjetiva. Muito da cartilha de sobrevivência do dia a dia periférico ela absorveu através das canções-veículo que os funks sempre foram e continuam sendo. Durante a conversa, tentamos juntas elaborar: o que a sociedade que tanto crítica o funk putaria ainda não entendeu? Para a produtora, quando ele é cantado por mulher, sem dúvida, fica mais difícil de ser aceito. Mas ela segue : “Eu gosto de putaria porque é uma parada sincera, sabe? É você cantar sua liberdade. As pessoas têm muito preconceito, isso é foda. Mas o funk [putaria] é a liberdade sexual, a liberdade do periférico, do favelado, é o lazer. É uma parada que movimenta muita coisa”.

Como uma boa entendedora da cultura brasileira, ela admira as fusões e misturas. Nos fones dela, passa de tudo, até mesmo coisas que ela afirma não se conectarem. Porém, na hora da produção, ela segue fiel ao feeling que cada música traz e ao seu fundamento: “Em tudo eu enfio funk. Seja no sample, no ritmo, nos elementos da percussão, eu sempre vou utilizar o funk, foi a primeira coisa que aprendi a fazer e a gostar”, diz. Sem dúvida, o funk se faz na metamorfose. É meio, mensagem, mas, sobretudo, veículo. Das mãos de Larinhx, ele se coloca à disposição da afirmação de identidades invisibilizadas, dos desejos ocultados, dos afetos repreendidos. Eu Gosto de Garotas é uma vitrine que faz questão de ostentar tudo aquilo que a parcela conservadora da sociedade não quer às vistas. Se depender dessa nova geração de artistas mulheres do underground carioca, esse é só o começo.

Larinhx durante os bastidores das filmagens de “Eu Gosto de Garotas” (Foto: @bibisf/Divulgação).

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06/08/2021

Brenda Vidal

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