Encontramos Lô Borges numa tarde quente em nossa cidade, Belo Horizonte, para rememorar uma BH de cinco décadas atrás. Naqueles tempos, um grupo se encontrava na esquina das ruas Divinópolis e Paraisópolis, no bairro Santa Tereza, para tocar violão. Chamavam o lugar de “clube da esquina” quase num deboche, porque um amigos mais abastados chamaram para irem num clube, e eles responderam que só tinham dinheiro para o “clube da esquina” mesmo. De lá pra cá, muito mudou: aqueles clubes não existem mais, mas o despretensioso Clube da Esquina, por sua vez, tornou-se patrimônio do cancioneiro brasileiro.
A música do Lô é do mundo. Seu som chegou até Alex Turner, que cita a faixa “Aos Barões” como inspiração para o álbum Tranquility Base Hotel & Cassino (2018), dos Arctic Monkeys. Há pouco, os norte-americanos do Wilco incluíram o disco Clube da Esquina (1972), assinado por Milton e Lô, em sua lista de recomendações para o verão de 2022.
Ao longo dos 50 anos de carreira, Lô Borges transitou por generos musicais distintos, compôs canções como “Dois Rios” com Samuel Rosa, tocou com Arnaldo Antunes, Ira!, entre vários outros. Atualmente, planeja um álbum com o irmão, Márcio Borges, e outro numa pegada mais roqueira, com César Maurício (da Virna Lisi, precursora do punk rock de BH). Como ele mesmo diz: “Na música, meu verbo é transitar”.
Lô, você conheceu o Milton através da música, né? Acho essa história tão bonita.
Eu nasci em Santa Tereza e aos 10 anos, me mudei para o centro de Belo Horizonte, no Edifício Levy. Morava no 17º andar e, um dia, minha mãe me pediu pra comprar pão e leite para o café da tarde. Fui descendo as escadas e, quanto mais eu descia, mais me aproximava de um som de voz e violão. Parecia um canto de sereia…
Quando finalmente cheguei perto da música, estava lá o Bituca. Ele tinha 20 anos, eu tinha 10. Mas não fez a menor diferença! Ele estava fazendo um som lindo, fiquei encantado. E a escadaria tem uma acústica especial, né? Dá um eco. Aí escutei aquela voz, cheguei e sentei ao lado dele. Fiquei ali um tempão. Ele tocava, parava pra conversar e eu falava: “Não, continua! Tá bonito!”.
Então, eu conheci primeiro a voz e o violão do Bituca. Naquele momento, já ficou bem claro que aquele cara teria fundamental importância na minha vida. Porque teve uma empatia muito forte. Anos depois, conversando sobre isso, constatamos que aquele encontro na escadaria foi fundamental pra nossa amizade ser tão forte, tão bonita como é até hoje.
A bossa nova foi a primeira referência que vocês tinham em comum, mas você também pincelou algumas influências do rock inglês na música do Milton. O que vocês gostavam de tocar até compor juntos?
Na mesma época que conheci o Milton, eu conheci os Beatles. O mundo inteiro se tornou beatlemaníaco e eu aqui, em BH, também. Então, minha interlocução naquele momento foi com outro cara da minha idade, o Beto Guedes. Foi aí que eu conheci Bituca, Beto e Beatles.
O Bituca tocava MPB, jazz, bossa nova… tocava com meu irmão mais velho. Eu aprendi a tocar pela bossa nova, que a gente ouvia muito em casa. E os acordes dos Beatles eram muito mais simples que os acordes do João Gilberto [risos]. Então, aprendi a tocar violão pelo lado mais difícil. Mas com o Beto eu tocava Beatles, a música deles era mais extrovertida que a introspectiva bossa nova.
Só fui tocar com o Bituca anos depois. Ele se mudou para São Paulo, participou do Festival da Canção, ficou famoso com “Travessia”.
E aí, quando ele voltava pra cá, chegava na casa da minha mãe e perguntava: “Cadê o Lô?”. E ela: “Ah, tá tocando violão onde eles chamam de clube da esquina”. Um dia, o Bituca chegou na esquina, eu estava tocando violão, e ele disse: “Tá bonito isso aí!’. Daí, eu falei: “Vamos tocar juntos! Pega lá seu violão!”. E ele já estava em exposição, na televisão… Aí ele falou: “Acho melhor a gente ir pra casa da sua mãe, aqui não vai ficar bem pra mim” [risos].
Foi aí que comecei a tocar com ele. Eu já tinha uns 16 anos. Fizemos “Clube da Esquina”, que está no disco Milton (1970). Eu fiz a harmonia, ele fez a melodia no violão. No final da tarde, chegou lá em casa o meu irmão, Márcio Borges. Ele viu a gente tocando e não acreditou. Pegou papel, caneta e começou a escrever a letra.
E tem outras músicas suas no disco…
Tem. “Alunar”, que é minha e do Márcio Borges, e a canção que me projetou: “Para Lennon e McCartney”, que fiz quando tinha 17 anos. Foi numa festa lá em casa, estava cheio de gente passando, eu concentrado no piano e ninguém prestando atenção [risos]. Aí passa o Márcio e o Fernando Brant, e eu falei: “Gente, eu acho que eu fiz uma música aqui”. Mostrei, eles falaram que era, sim, uma canção e era muito boa. Daí eles se ofereceram pra fazer a letra. E eu: “Pô, demorou” [risos]. Aí eles foram pro quarto, fizeram a letra. Depois, a festa inteira parou em volta do piano e ficou cantando “Para Lennon e McCartney” [risos].
O Milton gravou, foi um grande sucesso. E trouxe uma sonoridade um pouco diferente pra música que ele fazia tradicionalmente, que era genial e maravilhosa. Mas abrir o disco com essa música é abrir pra uma coisa mais pop, que era teoricamente diferente do som que ele fazia.
Que é um pouco da sua identidade no álbum, né.
Total minha identidade! Eu gosto muito dessa sonoridade. Foi o primeiro disco com o Som Imaginário, que trazia uma linguagem mais pesada, flertando mais com o rock.
Depois desse álbum, o Milton te chamou pra passar uma temporada no Rio de Janeiro e compor o Clube da Esquina (1972), num processo de criatividade intensa. Acho poético como o disco nasce numa esquina de Belo Horizonte e desemboca no Mar Azul, em Niterói, passando por espaços tão distintos. Como foi gravar entre o Rio e BH?
Eu, Beto Guedes e Bituca moramos em vários lugares do Rio – e éramos sempre expulsos [risos]. Éramos três cabeludos, na época da Ditadura, e ainda rolava um racismo com o Bituca. Jardim Botânico, Leblon, Copacabana… Em todo lugar era ou um síndico expulsando a gente ou abaixo-assinado de vizinho. A gente não era muito benquisto. Na Ditadura, isso acontecia muito.
Aí o empresário do Milton arrumou uma casa em Piratininga (Niterói), e fomos morar ali, onde a gente compôs. Mas eu não fiquei só no Rio. Eu tinha uma saudade siderúrgica de Belo Horizonte. O Bituca e o Beto ficavam mais lá, mas eu voltava pra BH de 15 em 15 dias. As músicas de piano que eu fiz pro Clube da Esquina foram compostas no piano da minha mãe. Do “disco do tênis” [também de 1972, o primeiro LP solo de Lô é homônimo, mas apelidado assim pela foto de capa] também. Ficava entre BH e Niterói, só fui voltar pro Rio na hora de gravar.
O Milton queria duas coisas inusitadas para a gravadora: um álbum duplo e dividi-lo com um adolescente desconhecido. Depois, ouviram as minhas composições e falaram: “É, o Milton não tá louco, o menino compõe legal” [risos]. E aí, a gravadora quis que eu lançasse um álbum no mesmo ano do Clube da Esquina. Mas as primeiras músicas que eu fiz já tinham sido gravadas! Primeiro no Milton, depois, no Clube da Esquina. Eu não tinha mais nenhuma música. Mas não falei isso pra eles, né? [risos] Assinei o contrato. Foi uma loucura, eu fazia a música de manhã, o letrista de tarde e à noite a gente já ia pro estúdio gravar.
E aí você só voltou a lançar outro álbum com o Via Láctea (1979).
Eu pensei: quando eu voltar a gravar, não quero mais essa pilha, porque, depois do “do tênis”, eu saí super desgastado. Fiquei anos sem ouvi-lo. Me traumatizou um pouco. A única foto que tem desse disco sou eu sentado, mal-humorado, porque não queria tirar fotos. Falei: “Bota meu tênis aí na capa, tá muito bem representado” [risos].
Aí eu peguei a estrada. Autógrafo até hoje esse disco [escrevendo]: “Com o pé na estrada”. Virei hippie em Arembepe, fui conhecer o Brasil viajando. Fui pras praias, pro litoral… fui viver o que minha geração estava vivendo. E fui, principalmente, me estruturar como compositor. Eu comecei a fazer música com calma, com paciência. Hoje, eu olho pra esse disco e falo que é ótimo! Mas não queria fazer outro nessa pressão.
Quando o Via Láctea (1979) saiu, eu liguei pro Bituca e falei: “Agora eu tenho condição de gravar de novo”. O Bituca tinha pensado que eu tinha brigado com ele, porque eu sumi do Rio de Janeiro, abandonei a gravadora, abandonei tudo. Não acompanhei nem a mixagem do disco do tênis, pra você ter ideia.
Mas você volta a esse álbum décadas depois, né?
45 anos depois, eu lancei o “disco do tênis”!
E foi uma recepção maravilhosa.
Foi. Nunca tinha tocado nenhuma música do “do tênis” em show. Eram só canções do Via Láctea (1979), Clube da Esquina (1972), Nuvem Cigana (1982)… Mas esse show [de 2018, que deu origem ao Tênis + Clube – Ao Vivo no Circo Voador] foi um barato. Reconstruímos criteriosamente sonoridade por sonoridade, tudo igualzinho. Foi um trabalho de ourives, de reconstruir um relógio que quebrou, sabe? Tenho de dar o crédito pro Pablo Castro, que ensaiou a banda e foi muito competente.
E aí foi uma viagem de ácido: eu comecei a tocar e todos os outros instrumentos faziam rigorosamente as mesmas coisas que foram feitas no disco do tênis. Até as notas erradas estavam iguais [risos]. Eu falava assim: “Essa nota aí eu errei, você percebeu, né?”. E ele: “Você não errou nada. Vamos tocar do jeito que está no disco”.
Depois disso, você ainda lançou muitos álbuns. Como é esse trabalho de composição?
Nos últimos cinco anos, lancei cinco álbuns de inéditas! De 2003 pra cá, dobrei minha produção do século XX. Na pandemia, eu compus quatro álbuns. Em 2022, decidi não compor para seguir a demanda da minha banda, do produtor, dos roadies, dos técnicos que tão precisando da estrada. E eu gosto muito de estar perto do público. Esse contato traz um grande sentido pra minha vida. Mas o sentido da minha relação com a música é a composição. Você pega o que não existe e transforma em algo que existe, é o poder da invenção. Você pega o silêncio e transforma numa música de 3 minutos e 40 [segundos], entende? Meu fascínio vem daí.
Eu acordo e penso: o que eu tô querendo hoje com a composição? Eu diversifico. Lancei um disco neste ano que eu compus todo no teclado, com som de órgão de igreja, o Chama Viva (2022), com letras de Patricia Maês. Um pouco depois, eu liguei uma guitarra com drive e fiz totalmente diferente do que tinha feito antes. Eu gosto dessa coisa de fazer um álbum diferente do anterior.
E ficar experimentando.
Sim. Sou um criador maluco, um cientista maluco da composição [risos]. E quando lanço disco, não quero ir pra televisão, não quero divulgar… Acho que sou um pouco diferente dessa ambição artística. Meu negócio é ficar quietinho, compondo, fazendo shows também… tá tudo certo.
Para fechar, queria retomar sua amizade com o Milton. Ele já disse que o Clube da Esquina não teria existido sem você, reiterando que sempre teve certeza da sua genialidade. Você, por outro lado, sempre declara que o Milton foi sua referência…
Foi um mestre!
Sim! É notável essa relação mútua de gratidão. Queria que você falasse mais sobre isso.
Bituca costumava falar: “Meu santo bate com o seu” [risos]. Tinha várias pessoas credenciadas pra dividir um disco com o Milton… Eu era, além de novo, inexperiente. Eu estava compondo minhas primeiras músicas e ele já gravou “Para Lennon e McCartney”. A música já estava presente no meu DNA, mas Bituca foi o cara que me levou pra gravar, que me bancou na gravadora, porque não queriam fazer o disco… Costumo dizer que devo tudo da minha carreira artística ao Bituca.
Esta matéria foi publicada originalmente na edição 128 da revista NOIZE, lançada com o vinil Milton (1970), de Milton Nascimento, em 2022.
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